As Crônicas dos Amaldiçoados, Caimitas escrita por Elias Pereira
Inglaterra, Londres, março de 1878
Eu caminhava pelas ruas observando as pessoas com seus afazeres. O doutor tinha mandado fazer algumas compras. Frutas, temperos e afins. O sol ainda não estava a pino, devia ser umas oito horas da manhã.
Aos domingos tinha poucas pessoas pela rua, a maioria estava indo para as igrejas. A hipocrisia era incrível. Durante a semana roubavam, estupravam, matavam, se prostituiam, mas ao domingo todos se reuniam para adorar a Deus.
Chego à feira, uma senhora velha me olhava meio receosa. Ela devia achar que eu queria roubá-la.
—Bom dia senhora. – Ignoro o olhar dela. Olho a placa com o valor de cada mercadoria. – Preciso disso aqui. – Entrego a lista para ela.
A senhora começa a colocar os itens em uma sacola. Limpo o suor da testa e observo a movimentação das pessoas. A mulher termina de encher a sacola, entrego o dinheiro e sigo de volta para casa.
Sigo por algumas vielas, ando rapidamente, pois se demorasse muito para fazer o almoço eu seria castigado brutalmente.
O doutor não estava passando pelos seus melhores momentos. Sua clinica começou a ter problemas financeiros após um processo sobre um dos seus pacientes ter morrido após sua cirurgia. O doutor vinha bebendo constantemente, vivia embriagado. E sempre que a bebida não resolvia, me castigar era um agrado para ele.
Viro a esquerda em um beco e me esbarro com dois homens, eles se chocam um no outro e o da frente cai no chão.
—Olha por onde anda seu crioulo. – Ele levanta e vem para cima de mim.
O homem me segura pela gola da camisa e soca meu rosto. Sinto meu nariz quebrar em seu punho e o sangue descer quente.
Caio no chão e recebo um chute no rosto. Eles me pisoteiam e batem enquanto riem e fazem piadas e insultos. Após algum tempo eu já não sentia mais dor, apenas percebia minha consciência desaparecendo aos poucos. Minha visão ficando escurecida e turva até que desmaio.
Não sei quanto tempo tinha passado, mas já estava escuro. Abri lentamente os olhos e via a rua vazia após o beco. Minha bochecha tinha grudado com o sangue seco no chão.
Tento levantar, mas uma dor imensa me atinge nas costelas. Tinha quebrado algumas. Consigo pegar um pedaço de madeira que estava encostado na parede e uso como apoio para ficar de pé. Sigo lentamente me esgueirando nas paredes até chegar a casa.
Sigo vagarosamente até a porta principal, uso o peso do corpo para abrir. Sentia todo o corpo doer. Quando a porta abre, eu me desequilibro e caio no chão de madeira. Eu acabo sem querer gritando com a dor do impacto e as risadas que ouvi nesse meio segundo de queda acabaram silenciando.
Ouço passos apressados descendo para o térreo. Tinha mais de uma pessoa com o doutor. Ele descia as escadas cambaleando e com uma garrafa de vinho em suas mãos. Tinha cinco mulheres com ele, provavelmente prostitutas.
—Não sabia que tinha um pretinho com você doutor. – Uma das mulheres fala e sorri me olhando.
—Ele é o criado. – O doutor falava embolado e ria da cena de ter um garoto sangrando e machucado em seu chão.
—Podemos nos divertir com ele? – Uma das prostitutas pergunta rindo e alisando o braço do doutor.
—Maldito crioulo. – O doutor desce as escadas e para em minha frente. – Eu peço a você algo simples e volta neste estado. Meu assoalho vai ficar manchado. Segundo preto que suja meu chão.
—Não ouse tocar no nome de Joseph. – Eu falo com ira. Não tinha forças para levantar, mas a raiva foi mais forte e tentei me erguer.
—Preto desgraçado. – O doutor chuta minha cabeça e pisa em minhas costas. – Vou te ensinar a me respeitar. – Ele começa a me bater e rir, as prostitutas se aproximam e participam também.
Uma delas se aproxima para estapear meu rosto, consigo segurar seu cabelo e dar um soco em seu nariz. O sangue desce, ela levanta de vez e deixa o palito que prendia seu cabelo em minhas mãos.
—MEU NARIZ! – Ela gritava enquanto pressionava o sangramento.
—Seu desgraçado preto. – O doutor soca meu rosto e vira-me de costas. – O segurem. – Quatro se aproximam enquanto uma estava sentada no chão com o nariz sangrando.
Elas seguram meus braços e pernas, o doutor puxa minha calça para baixo. As prostitutas riam alto daquilo, eu me debatia e tentava me soltar.
—Você vai sentir agora tudo o que tenho para ti preto. – O doutor se aproxima de mim, em um ataque de desespero consigo me soltar e chutar-lhe para longe.
Empurro as prostitutas e levanto, a dor que eu sentia era imensa. Sigo até o doutor, ajeito minhas calças e sento ao seu lado. Estava tão bêbado que nem conseguia levantar.
—Eu fiz de tudo para te agradar! Tudo! – Eu ergo o palito de cabelo acima de seus olhos. – Você não ligou para a morte de Joseph. Sempre me odiou sem motivo algum. Eu irei matá-lo doutor.
Eu podia ver o desespero no olhar do homem. Ele sabia que iria morrer ali. As prostitutas estavam paralisadas observando a cena. Desço o palito no olho esquerdo dele. Seu globo ocular é atravessado cegando-o.
—PRETO MALDITO! DESGRAÇADO! - O homem urrava e gritava com a dor
As mulheres começaram a gritar. Puxo o palito do seu olho e atravesso a sua garganta. Ele sufocava se afogava no próprio sangue até que finalmente morre.
—É a vez de vocês agora. – Caminho lentamente e mancando devido a dor em todo meu corpo.
Eu podia sentir que algo se rompeu em meu ser. Conseguia ver tudo de um jeito diferente e novo. Cansei de ser vitima de todos, agora todos serão minhas vitimas. Cansei de ser o que é machucado, serei então o que é temido.
Elas correm para a cozinha e fecham a porta. Sigo andando até lá. Giro a maçaneta e vejo que trancaram. Sigo então até o corpo do doutor. Próximo dele tinha a garrafa de vinho. Despejo perto da porta. Em uma mesinha perto da porta encontro mais algumas bebidas. Despejo todas e espalho pela sala e um pouco em cima do cadáver.
Encontro no bolso do homem alguns fósforos. Risco e jogo no chão, o fogo começa a crescer vagarosamente. Em pouco tempo toma todo o local. Ouço a porta dos fundos sendo arrombada, alguém estava ajudando as mulheres. Saio da casa e encontro alguns policiais retirando todas dali.
—Foi ele! – A do nariz quebrado apontava para mim. – Nos atacou e tentou nos queimar vivas.
—Prendam-no! – Um policial dá a ordem e outros três me pegam pelo braço.
Fui algemado e lançado no fundo da carruagem. Meu corpo todo estava machucado. Os policiais anotam tudo o que era dito pelas prostitutas. Seus nomes e informações. Após alguns minutos sinto a carruagem começar a se mover.
Encosto em um canto e fecho os olhos. Fico quieto apenas ouvindo o som exterior. Literalmente do nada sinto algo atingir de vez a carruagem e impulsionar meu corpo para o lado, me choco na parede do lado oposto a que eu tava. Ouço gritos e então sinto a carruagem tombar para o lado e girar algumas vezes comigo dentro até ela bater em algo e parar de vez.
O sangue escorria de minha cabeça, minha visão estava turva e então a porta se abre.
—Olá garoto! – Era Caim. Encaro seus olhos amarelos e desmaio.
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