Perturba-me | Segundo Livro escrita por Laila Gouveia


Capítulo 2
lágrimas e chuva em Londres


Notas iniciais do capítulo

Assim como prometido, aqui está o cap da semana.
Quero agradecer aos leitores que apareceram nessa nova fase!



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Odeio vozes acusadoras na cabeça. Não se pode calar, a não ser com uma bala no crânio. Mas nada garante que ela não continue falando, a diferença é só que você não a escuta.

“Deveria mandar esse garoto irritante se calar. Sou a que menos está falando!”

Havia sido um ano inteiro aguentando minha própria consciência dar palpite sobre tudo. Na maior parte do tempo, eu ouvia inúmeros planos mirabolantes para fugir. Desde uma pequena brecha da janela, até a catastrófica explosão na clinica, eram ideias frequentemente cogitadas como solução.

Jaha, ou, como eu por muitos anos não chamava: padrinho Jaha, fez questão de dirigir seu carro luxuoso em direção da sua casa. Minha mãe, no banco do passageiro, sorria alegremente enquanto Wells, ao meu lado, tagarelava todas as novidades.

“Ainda existe tempo para meter uma bala no crânio dele.”

Fiz o maior esforço do mundo e simplesmente formei o que parecia ser um sorriso de entusiasmo por, finalmente, voltar a Londres. Wells contara sobre o quanto sentiu minha falta, e que a casa estaria mais agitada do que é comum. Isso, porque seu pai estaria noivo e o casamento seria ainda neste mês.

—Meus parabéns. —Felicitei, e meu padrinho correspondeu ao gesto olhando no retrovisor.

—Clarke, teremos muito que conversar. Seu avô está reluzente com sua chegada! Foi muito bom voltarmos pra cá. Você vai se sentir melhor também. —Mamãe falou.

—Já estou me sentindo melhor. —Afirmei e voltei a observar pelo vidro.

Londres é uma metrópole estimulante, cujo passado colonial está bem patente no seu presente multicultural. Uma caminhada por Londres pode revelar cabelos de todas as cores, roupas de todos os estilos, executivos de cartola e guarda-chuva no braço, soldados vestidos como no tempo de Henrique VIII, carruagens reais, indianos, árabes, tribos punks, darks entre outros.

A cidade de Londres é fabulosa, porque para além das suas igrejas barrocas e construções neogóticas, junta-se uma extraordinária oferta cultural, extensos parques onde é possível fugir à agitação urbana, bairros com uma marcada personalidade em ambas as margens do Tamisa e uma longa lista de mercados que fazem delícias dos amantes de compras.

—Torre; que angústia estar sozinho! ó alma  Que ideal perfume, que fatal. Torpor te despetala a flor do céu?

Olhei de soslaio para Wells. Ele citara um soneto assim que passamos pelo relógio Big Ben.

—Não me diga que ainda vive com Shakespeare em seu coração.

—Não é ele. —Meu primo riu. —Mas, se quer saber, eu ainda leio suas obras escondido. Acho que é pra matar a saudade de quando eu era romântico.

—Deixou de ser? —Sussurrei.

—Sou um homem corrompido. —Ele piscou.

Meu único alívio durante o trajeto foi que nenhum deles sequer tocou no assunto sobre meus dramas psicológicos. Era como se houvesse um combinado mutuo para deixar o passado recente, em seu devido lugar.

•••

 

A palavra ‘Casa’ não condiz com o significado que eu sempre dera, e de uma hora para a outra, tornou-se completamente modesto nomear o local em que chegamos de, simplesmente, casa. Entramos com o carro pelos portões gradeados, destacados com uma grande letra J; brancos e cheios de segurança. O jardim lá dentro era digno de cenários Hollywoodianos. A grama verdinha, recém-aparada, deveria estar sendo irrigada há pouco. As árvores eram podadas em inúmeros formatos e eu me perguntei quantos anos foram necessários para que meu padrinho transformasse sua residência, -já muito confortável e luxuosa-, em uma mansão.

Eles deveriam, agora, possuir dinheiro suficiente para esbanjar em qualquer parte do mundo. Gastar o valor de um salário mínimo em uma única peça de roupa. Fazerem o que quiserem!

—E vocês duas perderam toda a parte confusa. —Jaha falou, parecendo ler meus pensamentos. —Sua cara de surpresa está impagável, fios de ouro. —Completou.

No mesmo instante, os olhos do meu primo brilharam. Ele, -assim como eu-, ouvira seu pai me chamar pelo apelido de quando ainda éramos criança, e não conseguiu conter a alegria nostálgica em sua expressão.

Algumas empregadas fizeram questão de levar minha mochila. E Wells aproveitou o momento em que ficamos sozinhos para me mostrar, com entusiasmo, cada cômodo.

—Veja só, prima! —Apontou para a escada em espiral. —Imagine a quantidade de brincadeiras que poderíamos ter feito se vocês não tivessem ido embora, naquela época.

—Realmente! —Sorri.

—É surreal, mas, eu me adaptei facilmente com tudo isso. —Ele piscou travesso. —Quem não se adaptaria, né?

—Deveríamos ter tido mais contato. Se eu me lembro, você não respondia mais as minhas cartas.

—Confesso... —Ponderou por uns segundos. —Fiquei com ciúmes! A verdade é que, você se mudou com seus pais e antes mesmo que pudéssemos nos acostumar com esta distância, comecei a receber cartas recheadas de estórias e fotos dos seus dois amigos. Da sua nova vida... Eu era imaturo e não queria aceitar que você tinha arranjado, tão de repente, novas amizades. Fiquei com raiva dos adultos por terem encontrado emprego nos Estados Unidos, e fiquei com mais raiva de você por ter ido com eles, sem ao menos protestar.

—Você sempre será meu primo. —Tentei justificar o que ele revelara. Afinal, eu fui a principal responsável por nos mudarmos anos atrás. Havia sido insistência minha e não dos meus pais.

—S-sua mãe contou o que aconteceu... —Ele quase gaguejava, indicando seu desconforto em iniciar esse assunto delicado. —E-eu queria te dizer que não sou mais birrento como antes. Você pode contar comigo para o que der e vier. Entende?... Se sentir, hm, qualquer coisa... e-eu...

—Está tudo bem. —Coloquei a mão em seu ombro. —Acho que agora eu só preciso descansar. —Quis sair daquele tipo de conversa o mais rápido possível.

—Ah, claro! Você viajou e deve estar exausta. —Wells entendeu meu bloqueio.

Caminhamos até o quarto de hóspedes que tinha sido designado a mim. Fiquei imensamente agradecida pelo tratamento VIP que eu estava recebendo desde que sai da clinica.

—Obrigada. É um quarto muito bonito! Parece que estou num hotel cinco estrelas. —Falei admirando as cortinas e a cama imensa.

—É só partir do principio que somos tantos e plurais, então, por que não? Pode ter certeza de que existe muita gente que pensa igual a você. Que te aceitaria como é. Que não te julgaria por detalhes e também não te interpretaria mal na menor das circunstâncias. Sua vida não se resume apenas a aquele grupo fechado, que fizeram questão de te colocar para baixo. Somos sua família, e muitas coisas boas está por vir. Você voltou e eu não via a hora de isso acontecer. —Meu primo argumentou confiante.

Ele não deixou que eu abrisse a boca para explicar nada, simplesmente saiu. Uma pontada em meu coração foi a resposta muda.

Fixei meus olhos no espelho. O que vi não me agradou, porém, também não me surpreendeu. Uma expressão completamente desolada cobre cada traço do meu rosto. Meu cabelo, normalmente liso e bem arrumado, agora faz parecer que cada um dos meus “fios de ouro” entrou em grave conflito um com o outro. Meus olhos, entreabertos, estão opacos e repletos de angústia. No entanto, o estado terrível em que meu rosto se encontra nada se compara ao estado em que está meu interior.

Sentei-me mais reta na cama, fechei os olhos e respirei profundamente. Enquanto minha face parece inerte, meus pensamentos voam para longe. Precisamente para aquela noite.

Eu aprendi que a vida é feita de sucessões de agoras e parei de pensar demais no futuro. Um agora que surpreende em plena segunda-feira chuvosa, pode fazer com que minha bússola de direção enlouqueça. Talvez pela repetição dos dias trancada ao lado de psicóticos, perdi o viver do presente. O agora parece o eco de outro dia, que foi mais interessante.

Mas não consegui aprender que o passado deve ser esquecido. Não consigo descartar! Eu sei, de alguma forma, que minha vida e problemas em Londres estão apenas por começar.

 

◘◘◘◘

Senti o hálito quente contra meu peito e um corpo se mexendo em meus braços. Eu sabia onde estava, sabia que não deveria estar ali, mas eu sabia, principalmente, que não deveria querer continuar ali.

E quem me condenaria por tal desejo? Suas asas me cobriam, e formavam um ninho de proteção. Ele me atraia de um jeito nada ortodoxo.

Queria continuar ali o abraçando, sentindo sua respiração tão próxima de meu corpo. Infelizmente, não posso!

Chamei-lhe baixinho. Deslizei meus dedos por seu cabelo - que viera ganhando comprimento -, acariciei seu rosto e refreei a insistente vontade de beijá-lo que retorcia meu estômago. Murmurei seu nome no ouvido, acariciando suas costas gentilmente.

E então ele abriu os olhos, sonolento.

—Preciso soltá-lo, para que possa voltar. —Falei contragosto. —Ou acabarei prendendo-o comigo.

Emitiu um som de concordância, sem, no entanto, mover-se ou me soltar. Duraram minutos até se afastar.

Diante do lamento cortante de dor que ele emitira em um gemido baixo, eu o olhei, mas não encontrei seus olhos. Afastava-se, com cuidado, até que o único contato entre nós era minhas mãos que seguravam o fino tecido de malha branca que o cobria. Então ele acariciou meus dedos, instigando-me a soltar.

◘◘◘◘

 

“Estes teus sonhos já deveriam ter acabado. Aprenda comigo e supere!”

Acordar em um quarto com o dobro de tamanho do seu, e com o som de violinos preenchendo o ambiente, não era o que planejei para o começo daquele mês. Todavia, o novo modo de despertar me agradou.

Não fiz questão de olhar para o relógio e descobrir a hora, ou sequer escovar os dentes... preferi correr até a cozinha e beber uma jarra de água. Minha boca ficara seca, e um aperto no peito, – conhecido como: saudade-, me obrigou a sair desprevenida por aquela casa que ainda era-me desconhecida.

Por Deus, eu realmente estava desprevenida!

—Não sabia que você gosta de acordar tarde. —Wells disse tão do nada, que eu quase esqueci de pisar no próximo degrau da escada.

—Acostumei a acordar com gritos de uma mulher lá na clínica. Acho que meu corpo quis se dar ao descanso no completo silêncio de sua casa. —Falei, controlando a respiração ofegante.

Notei, tarde demais, que eu havia pronunciado a palavra proibida da vez: “Clínica”. Porém, consegui notar, - mais tarde ainda -, que não éramos os únicos ali. Um belo rapaz parado ao lado do meu primo nos encarava. Enquanto Wells coçava a nuca.

Franzi o cenho, vacilando sem entender o que exatamente estava acontecendo. Afinal, metade de mim ainda dormia.

Os olhos azuis se suavizaram ao observar mais atentamente o estado deplorável em que eu me encontrava. E que olhos azuis! Chegavam a superar até os do meu pai. Mas não eram somente os olhos cristalinos que chamavam atenção, o rapaz era em um todo, lindo demais. Uma beleza hipnotizadora, ao ponto de ser comparado com modelos inalcançáveis de filmes e fotos.

Não soube dizer se minha bochecha ficou vermelha por eu estar diante de uma beleza estonteante, ou se foi à forma como ele me avaliava. Parecia até um fazendeiro vistoriando uma vaca a ser comprada.

Desci meu olhar esquecendo-me completamente da timidez. Ele se vestia descompromissado, mas de um modo elegante. Certamente é um jovem rico!

—Devia estar num sono muito profundo mesmo! —Meu primo quebrou o silêncio constrangedor.

Porém, este silêncio violado teria sido menos constrangedor se eu não percebesse o que ele tentou expressar. Eu estava com a roupa do dia anterior toda amassada, e meu cabelo possivelmente estaria pior. Não poderia sequer chegar perto deles, pois sempre fora comum eu babar em sono.

“Nosso bafo então... Melhor corrermos.”

—É sua prima? —O Ken humano manifestou-se.

—Ah sim. —Wells parou de coçar a nuca, ficando alerta. —Essa é minha prima, Clarke Griffin. Ela vai ficar um tempo aqui em casa.

“Espero que pouco!”

—E Clarke... Esse é meu melhor amigo, Randall. —Continuou, apresentando-nos.

—Prazer! —O amigo estendeu a mão. E eu não tive opção, senão descer o último degrau e cumprimentá-lo educadamente.

—Prazer. —Respondi embaraçada.

—Estávamos saindo agora, Clarke. Eu e Wells vamos ao clube de golfe.

—Nada como um esporte durante as férias. —Meu primo brincou com o taco de golfe, simulando no ar.

“Esporte de riquinho. Tinha que ser!”

—Gostaria de ir conosco? —Randall perguntou.

“Pelo menos este cara é tipo um Gentlemen. Diferente do outro babaca.”

Bem, a minha mente não consegue pensar muito rápido quando tem uma voz enchendo o saco desse jeito. Por isso a coisa mais cabível que saiu foi:

—É-é, eu n-não posso ir... V-vou visitar meu Vô. Ééé eu vou visitar ele. —Foi a mentira mais bem bolada que eu inventei.

—Tudo bem. Você não iria gostar mesmo. —Wells disse divertido. —Vamos, cara! A gente vai chegar atrasado.

O melhor amigo do meu primo lançou um sorriso educado, porém arrebatador na minha atual situação. E eu entendi que ele estava tentando disfarçar as possíveis gargalhadas que surgiriam após ambos saírem.

Droga!

Caminhei até a cozinha. Bebi o restante de água e coloquei o copo na pia, esticando as minhas costas e escutando-as estalar. Por um segundo, me senti uma piada. Mas ao lembrar-me do que minha mãe falara no carro, resolvi que aquela mentira inventada aos dois, iria de fato acontecer. Visitar meu avô seria uma ótima forma de melhorar o meu dia.

 


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Notas finais do capítulo

A Clarke está num processo adaptativo.
E o Wells?
O melhor amigo dele? O que acharam?
Estarei esperando vcs nos comentários.

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