Segundo ato escrita por Paulinha Almeida


Capítulo 5
Intermissão III




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POV Harry

 

Seria a primeira vez que ficaríamos no mesmo ambiente desde que saí de casa, quatro meses atrás, e a segunda que nos veríamos. Enquanto eu me vestia para o sempre pacífico jantar de natal na casa dos meus cunhados, fiquei imaginando se esse ano ele seria tão pacífico assim.

Eu não sabia qual versão da minha ex mulher encontraria nesse evento onde toda a família estaria reunida, inclusive seus pais, mas independente disso eu não conseguia negar a mim mesmo uma dose desconfortável de ansiedade pelo encontro iminente. Não que eu esperasse uma Ginny simpática e receptiva de alguma maneira, porque mesmo não sabendo o que me aguardava eu apostaria todas as minhas fichas na possibilidade de que não ganharia nem um aceno de longe, muito menos um sorriso, sequer uma cordialidade.

Ela sempre foi muito carinhosa, era até injustiça negar isso, mas o inverso também era verdadeiro a pessoas que não se enquadravam em seus padrões de merecimento de atenção. E eu passei a fazer parte desse grupo seleto no momento exato em que bati a porta.

Também era muito injusto dizer que eu não estava com nem um pouquinho de saudade.

Quatro meses e ainda era estranho acordar sozinho de manhã, não receber nenhum beijo de bom dia, fazer um caminho diferente depois de sair do trabalho, usar um elevador para chegar em casa e não ter ninguém para conversar. Foi só quando o silêncio se tornou uma condição por falta de ouvinte eu me toquei que nos últimos meses optava por ficar quieto, mesmo tendo uma companhia que escutava feliz tudo o que eu dizia. Pensar nisso me deixava com um pouquinho de remorso, porque talvez eu não desse mesmo muita atenção para ela ultimamente.

Não que fosse fazer alguma diferença agora, mas eu gostaria de conseguir precisar o momento em que tudo começou a desmoronar, apenas para saber se ela se tornou tão ciumenta quando eu parei de ser atencioso, ou se eu parei de dar atenção quando o ciúme ficou insuportável.

Se a resposta fosse a primeira opção e eu pudesse voltar no tempo, faria tudo diferente.

Sacudi a cabeça para espantar os pensamentos que não me levariam a lugar nenhum e fechei atrás de mim a porta do minúsculo apartamento que mal conseguiria acomodar duas pessoas. Entrei no carro e atravessei a cidade já escura, pontualmente iluminada com decorações alegres e festivas, que não condiziam com meu estado de espírito. Se passar o natal sozinho comendo pizza congelada e tomando uma cerveja não fosse algo que eu considero tão fundo do poço, teria recusado esse convite.

Quando estacionei na rua da casa dos meus amigos, olhei cuidadosamente ao redor, mas ainda não havia ali nenhum SUV branco, o que quer dizer que a predisposição nata para atrasar em qualquer evento que não envolva suas preciosas aulas ainda existia. O lado bom é que isso me permitiu cumprimentar aos outros presentes com naturalidade, distribuindo beijos, abraços e apertos de mão para todos eles.

—Harry, querido, como você está? - Minha ex sogra perguntou enquanto me apertava em seu abraço maternal.

—Muito bem, Molly, e você? - Respondi tentando ser totalmente convincente, mas ela me olhou de canto, desconfiada.

—Bem, bem, todos nós. - Falou sem tocar em qualquer outro assunto.

Decidi deixar a cargo de Ginny contar à família sobre nosso novo estado civil quando quisesse e com o nível de detalhes que julgasse conveniente. De certa forma eles eram minha família também, mas esse era um assunto que não estava listado nos meus favoritos e os Weasley tinham por convenção fazer muitas perguntas.

Conversei alguns minutos com Arthur, me detive entre os pais de Hermione por um tempo, fui simpático com um casal de amigos deles que eu já tinha encontrado algumas vezes, e quando todo mundo já havia sido devidamente cumprimentado fui até a cozinha apanhar uma bebida.

—Você veio! - Minha amiga exclamou surpresa e feliz assim que me viu.

—Claro que vim, eu disse que estaria aqui. - Confirmei, me adiantando para lhe dar um beijo no rosto. - Oi, Ron. - Troquei com ele um aperto de mãos.

—Tudo bem, cara? - Ele perguntou enquanto eu pegava na geladeira uma garrafa de cerveja.

—Uhum. - Confirmei voltando até onde eles estavam terminando de colocar em um prato alguns salgados. - Querem ajuda?

—Não precisa, obrigada.

Me encostei do outro lado da mesa e conversei com eles por alguns minutos, compartilhando como estavam sendo minhas pequenas férias de final de ano e ouvindo as maravilhas da última viagem que eles fizeram juntos, de onde retornaram na semana anterior.

—Já chegou todo mundo? - Ela perguntou quando ficamos em silêncio por um momento.

—Acho que sim. - Informei vagamente, me levantando da cadeira onde estava sentado. - Vou voltar para a sala, encontro vocês lá.

—Ta bom. - Ron confirmou sem dar muita atenção.

Me virei para sair dali e já estava perto da porta que dividia esse ambiente do meu destino quando ouvi uma risada muito conhecida, que fez meu estômago dar um salto inesperado e não tão bem vindo assim. Me encostei ao batente ao meu lado e fiquei olhando meio perdido enquanto ela cumprimentava a todos com beijos, abraços e sorrisos, se desculpando mais uma vez com a mãe por estar atrasada.

Vi perfeitamente o momento que ela captou minha presença ali, mas o sorriso, que não era para mim, não morreu e ela ignorou com louvor o modo como eu a encarava e retribuiu o abraço do pai.

—Cadê Ron e Mione? - A ouvi perguntando, parada entre ele e a mãe, de costas para mim.

—Na cozinha. Você está bem? - Molly respondeu, deslizando a mão por uma mecha do cabelo longo da filha e o colocando atrás da orelha.

Eu gostava de fazer aquilo também.

—Ótima. - Respondeu espontânea demais.

Ginny não jogava para perder, quase nem jogava de maneira justa, porque desde a postura até a escolha da roupa eu tinha certeza que eram propositais para me passar a mensagem clara de que ela estava ótima. E isso nem poderia ser encarado como convencimento da minha parte, eu via mais como prática na psicologia da mulher que dormiu e acordou comigo por anos.

Ela saiu do meio dos dois e sumiu um segundo pelo corredor à esquerda, de onde retornou sem a bolsa que estava segurando até momentos atrás e caminhando graciosamente em minha direção. Em direção à cozinha, na verdade, mas eu ainda estava no meio. Não saí de onde estava e olhei de propósito seu andar decidido, como se eu estar no caminho fosse o de menos, ignorável.

Virei primeiro o pescoço, depois o corpo todo, para continuar acompanhando com os olhos quando ela passou por mim e sorriu para as duas pessoas às minhas costas. Até senti vontade de rir, não porque era engraçado, mas porque a reação era bem típica da sua personalidade sempre tão orgulhosa.

—Oi, Mione. - Ela cumprimentou animada e deu um abraço rápido na cunhada, depois se virou para o irmão. - E aí?

Enquanto os dois se abraçavam notei um par de olhos castanhos muito astutos me encarando e troquei um sorriso meio amarelo, meio cúmplice, com minha amiga. Continuei meu percurso de volta para a sala pensando que eu não teria desperdiçado minhas fichas caso aquela aposta tivesse sido feita.

Coincidentemente, o amigo do Ron que estava ali era representante comercial de um dos meus clientes e isso nos deu o que conversar por longos minutos. Falar de trabalho na noite de natal não era o que eu esperava estar fazendo quando esse ano começou, mas minhas opções não eram muitas ultimamente se eu quisesse manter uma conversa menos depressiva.

Os três chegaram juntos à sala alguns minutos depois, cada um segurando uma bandeja e posicionando-as sobre a mesa já arrumada, indicando que o jantar estava servido. Teria sido um acontecimento muito comum e trivial, não fosse o brilho dourado que eu não esperava ver no dedo da minha ex mulher, mas que ainda estava ali, do jeito que eu coloquei.

Se eu bem a conhecia, aquilo era fruto de um esquecimento, um descuido, ainda que um descuido muito longo, visto a quantidade de meses que já não éramos um casal, mas não consegui me impedir de ficar um pouco saudoso da época em que eu também estaria usando a minha aliança e isso seria sinal de união, não apenas um hábito. Se antes já tinha sido difícil não acompanhar seus passos, depois disso nem tentei manter os olhos em outro lugar.

Ginny ria e conversava com todo mundo, mas sequer me olhava. Eu sabia que isso era proposital e que minha insistência em encará-la provavelmente a estava dividindo entre o incômodo e aquela satisfação secreta que nunca confessaria, mas nem me importei e continuei concentrado na curva do seu queixo quando sorria, nos cabelos compridos ondulando com o movimento e no balanço ritmado da saia azul que ia até metade das suas coxas, meu último presente de aniversário para ela, umas três semanas antes de brigarmos pela última vez.

A vi pedir licença para os pais de Hermione, com quem estava conversando, e seguir pelo corredor que dava acesso ao resto da casa não destinado ao evento. Sem pensar no que estava fazendo deixei minha garrafa de cerveja na estante a que estava encostado e fui atrás. A porta do banheiro estava fechada e a luz acesa do lado de dentro, entregando onde ela estava. Me encostei no batente e esperei até que abrisse, o que aconteceu dois minutos depois.

Ginny se assustou quando quase se chocou a mim, mas não dei muita atenção a isso e com a mão em sua cintura a empurrei para dentro de novo. Num movimento rápido, antes mesmo de conseguir falar alguma coisa, ela estava entre mim e o lado de dentro da porta que eu trancava.

Grudei minha boca na dela em um gesto impensado e sem nenhuma cerimônia espalmei as duas mãos sobre seus quadris antes de descer e alisar suas coxas. Foram sete anos fazendo tudo para agradá-la, então se uma coisa eu sabia muito bem era do que minha ex mulher gostava.

Ela correspondeu na mesma hora, com tanta vontade quanto eu a atacava, levando as mãos diretamente para dentro da minha camiseta e me puxando mais para perto. A sensação dessas unhas me arranhando do jeito certo, como agora, transformaram meu pouquinho de saudade em uma avalanche.

Segurei a parte de trás de suas coxas e as puxei para cima, acomodando ao redor da minha cintura sem quebrar nosso beijo, suas mãos subiram para os meus cabelos e arranharam minha nuca no caminho.

Quando comprei aquela saia imaginei que Ginny ficaria tão linda quanto realmente ficou e que seria um prazer tirá-la, mas as coisas aconteceram antes mesmo que ela usasse pela primeira vez. Aquele pedaço de pano em qualquer outro lugar que não ao redor da cintura dela era tudo o que eu conseguia pensar ao subir minhas mãos por dentro do tecido e apertar sua bunda.

Aparentemente os objetivos ali não eram os mesmos, porque nessa hora ela interrompeu abruptamente nosso beijo e forçou as pernas para baixo, voltando a colocar os pés no chão.

—O que você pensa que está fazendo? Tira a mão de mim. - Minhas mãos foram afastadas de dentro da sua roupa com um tapa tão brusco quanto o tom de voz.

Seus olhos faiscavam na minha direção, e eu tenho certeza que ela estava debatendo internamente se estava sentindo mais raiva ou mais desejo.

—Desculpe, eu estava com saudade. - Expliquei com as mãos paradas ao lado do meu corpo, mas sem me afastar um centímetro sequer.

Ginny quebrou nosso contato visual e arrumou a própria roupa no lugar, só então voltou a olhar para cima e me encarar.

—Desculpe, mas quando você foi embora eu entendi que suas questões emocionais não são mais problema meu. - Devolveu como um tapa.

Aceitei com dignidade o mal estar que a frase me causou, então só dei a ela um pequeno aceno com a cabeça, deixando claro que entendi.

Ela se virou de costas e girou a chave com raiva, sem parecer nem um pouco incomodada em precisar se encostar em mim quando deu um passo atrás para abrir a porta e depois batê-la atrás de si, me deixando sozinho.

Me encostei até onde pouco tempo atrás ela estava e fechei os olhos com força, me sentindo meio estúpido.

—Idiota. - Murmurei alto o suficiente para conseguir escutar, sem saber direito se eu estava falando dela ou de mim mesmo.

 

POV Ginny

 

Quando bati a porta atrás de mim eu já sentia a raiva me envolvendo em bolhas sufocantes. Raiva dele, pela petulância, e de mim mesma por estar com uma vontade considerável de dar meia volta e entrar lá de novo, sabendo muito bem o que me esperava.

Dizer que estava com saudade foi um golpe baixo, porque isso era tudo o que eu também sentia ultimamente. De qualquer forma, não muda o fato de que ele simplesmente foi embora.

Atravessei a sala sem falar com ninguém e me apoiei na pia assim que cheguei à cozinha, respirando fundo para controlar o coração descompassado e as pernas bambas em cima da minha sandália anabela.

—O que aconteceu? - Ouvi a voz da minha cunhada e abri os olhos, encontrando sua expressão alarmada.

—Harry. - Falei como se isso explicasse tudo, mas seu semblante não se suavizou. - Acabou de me agarrar no banheiro, e agora não sei se estou com mais vontade de voltar lá e quebrar a cara dele ou continuar o que começamos. - Expliquei de uma vez, fazendo-a abrir a boca surpresa.

—Oh!

—É, oh! - Concordei, subitamente irritada com sua única manifestação.

—Use o banheiro do meu quarto, para qualquer que seja sua decisão vocês terão mais privacidade lá. - Falou como um conselho e terminou a frase rindo.

Olhei de canto para ela, completamente séria, indicando que não tinha achado engraçado, mas antes que uma de nós dissesse alguma coisa Ron apareceu na porta e a chamou, então fui deixada sozinha de novo. Sem nenhuma pressa tomei um copo de água, dei mais uma olhada para minha roupa, me certificando de que estava tudo no lugar, e voltei para a sala.

Eu queria não ter varrido o ambiente à procura de certa pessoa, mas foi tão involuntário que quando dei por mim já o tinha encontrado, também me olhando. Desviei rápido o olhar e fui até a mesa, onde coloquei alguns petiscos em um prato e me acomodei entre meus pais no sofá para conversar com eles enquanto comia.

Fui questionada a respeito do trabalho, eu estava evidentemente de férias, mas eles queriam saber se eu já tinha determinado quantas turmas teria no próximo ano, se já estava planejando voltar a estudar, porque eu estava adiando o início do doutorado desde que terminei o mestrado há dois anos, e, claro, sobre meu casamento.

—Que casamento, mãe? - Me virei para ela, parando uma mini coxinha a meio caminho da boca e transmitindo nessa frase toda minha falta de vontade de tocar nesse assunto.

—O seu, oras. - Explicou como se fosse óbvio.

—Não tenho mais um casamento. - Falei enquanto mordia meu salgadinho.

—Tem sim. - Teimou e eu a olhei cética. - Qual o seu nome? - Perguntou com ar de sabedoria.

—Ginny. - Falei simplesmente, não dizendo o que ela queria ouvir, embora eu soubesse exatamente o que era.

—Seu nome inteiro. - Insistiu.

—É isso, então? Um papel e um sobrenome me fazem ter um casamento? Porque para mim o que precisa é outra coisa. - Argumentei emburrada.

Ela abriu a boca para dizer algo mais, mas meu pai, sentado do meu outro lado, interferiu:

—Deixe a menina, Molly. - Pediu, fazendo carinho no meu braço.

—Obrigada, papai.

Ela o olhou com insatisfação, mas não falou mais sobre isso. Comi o restante dos meus aperitivos em meio a uma conversa muito mais amena e agradável, aproveitando a companhia acolhedora deles, e ao fim me levantei para deixar meu prato na pia. A porta estava encostada, mas me permitiu perceber que Hermione estava dizendo alguma coisa que não consegui entender, o que me chamou atenção foi a resposta que se seguiu:

—Eu sei, Molly e Arthur fizeram um ótimo trabalho mimando a filha. - Harry falou, parecendo meio frustrado.

—Você não acha isso de verdade. - Minha cunhada interveio, sempre conciliatória.

—Eu acho sim, mas n... - Parou a frase no meio e se virou quando entrei.

—Desculpem interromper. - Falei olhando apenas para ela. - Só vim deixar isso.

Os dois me olharam quando passei pelas cadeiras onde estavam sentados, fiz o que tinha em mente e saí dali, fechando a porta novamente e já sem nada nas mãos.

Eu queria que ouvir aquilo tivesse me deixado brava, arrancado de mim uma resposta grosseira ou então nem me incomodado, mas só me senti magoada ao voltar para onde acontecia o que deveria ser nossa festa de natal. Era a deles, pelo menos, para mim era apenas uma noite que eu queria que acabasse logo.

—E o meu presente? - Ron perguntou, parando à minha frente e interrompendo meu caminho.

Me encostei de frente para ele em uma das paredes da sala antes de continuar a conversa.

—Está lá em casa, o seu, da Mione, do papai e da mamãe. E o meu?

—Guardado.

—Já posso levar hoje ou só amanhã no almoço?

—Amanhã eu levo para a sua casa na hora do almoço, porque não vou entregar sem ganhar antes. - Respondeu desconfiado, me fazendo rir.

Fiquei ali com ele pelos próximos minutos, arrancando risadas e fazendo fluir meu lado irônico e divertido que estava aparecendo cada vez com mais frequência depois da pior fase, que foram aquelas primeiras semanas em que absolutamente nada além do trabalho prendia minha atenção sem que eu a desviasse para aquele fatídico momento, tentando achar uma brecha sequer onde eu pudesse encaixar alguma frase que o faria ficar, e que uma onda de decepção desesperadora me encobria sempre que eu via meu celular sem nenhuma chamada não atendida e a segunda vaga da garagem vazia quando chegava em casa mais tarde.

Não que estivesse tudo completamente bem, mas chorar por isso era uma coisa que eu já não fazia a tempo suficiente para não conseguir recordar com precisão qual foi a última vez, me acostumei com a falta de notícias e já não sentia mais aquela necessidade tão urgente de saber onde ou com quem ele estaria em momentos aleatórios, normalmente nos finais de semana. Morar na nossa casa, onde tudo de bom e mau aconteceu, teve o lado ruim de me fazer recordar uma coisa marcante em cada canto que eu olhasse, mas também teve o lado bom de me fazer acostumar com isso e passar a ver apenas como minha casa, onde agora eu morava sozinha.

Quando o relógio indicou que faltava apenas dois minutos para a meia noite fui até o quarto onde estava minha bolsa e voltei trazendo o celular, que eu usaria logo depois de cumprimentar todo mundo. Recebi beijos e abraços de todos os que ali estavam, mas evitei deliberadamente esbarrar em meu ex marido entre um cumprimento e outro. As últimas pessoas para quem desejei um feliz natal foram meus pais, com quem dividi um abraço duplo antes que eles se virassem para abraçar um ao outro.

Antes que eu conseguisse dar um passo para longe dali senti uma mão apoiada no fim da minha coluna e um beijo estalado na bochecha.

—Feliz natal. - Harry falou, me olhando tempo suficiente para terminar a frase.

—Para você também. - Desejei, me detendo um segundo a mais do que o necessário nele se afastando para abraçar a Hermione.

Sacudi a cabeça e olhei para o telefone em minhas mãos, me lembrando do que ia fazer. Saí da sala e passei direto pela cozinha, abri a porta que me levaria ao quintal do fundo, onde havia um pequeno jardim, e me sentei em uma das duas poltronas de palha, posicionadas uma ao lado da outra. Disquei meu numero de destino e esperei que atendesse.

—Feliz natal, Gin! - A voz do meu amigo soou empolgada assim que atendeu, me fazendo rir porque ele provavelmente estava já um pouco alegre.

—Feliz natal, Nev! E não exagera na cerveja. - Recomendei, fazendo-o gargalhar.

—Como é que está aí? - Perguntou interessado, sabendo onde e na presença de quem eu passaria essa noite.

—Um pouco confuso, mas até agora sem gritos, socos e sangue. - Brinquei.

—Estou gostando de ver você evoluindo. - Zombou e eu ri.

—Luna está por perto?

Ele demorou um segundo para responder, provavelmente olhando em volta.

—Estava aqui agora mesmo, mas sumiu.

—Tudo bem, diga a ela que mandei um beijo.

—Direi, pode deixar. Diga ao Harry que mandei um abraço. - Provocou.

—Nem ferrando. - Neguei sem rodeios e ele gargalhou.

—Preciso desligar, Gin, depois nos falamos.

—Ok, divirta-se e juízo. - Recomendei em meu tom que ele classificava como de mãe.

—Beijos. - Se despediu e a ligação foi encerrada.

Soltei o celular sobre as penas cruzadas e apoiei os cotovelos nos apoios ao meu lado, deixando as mãos descansarem sobre o tecido fino da minha regata, pensando em quanto tempo ainda eu precisaria ficar aqui antes de ir embora sem parecer mal educada e chatear os anfitriões.

Meu momento de paz solitária durou poucos minutos, porque a porta foi aberta um tempo depois e a cadeira vazia do meu lado esquerdo ocupada. Não precisei nem desviar o olhar para saber quem estava ali, também não soube definir se eu achava aquilo muito legal ou muito sádico da parte dele.

—Desculpe por hoje mais cedo. - Pediu, adicionando mais uma coisa à nossa lista de primeiras vezes: a primeira vez que ele se desculpava por me beijar.

—Tudo bem. - Respondi sem alongar o assunto, subitamente irritada com a pauta da conversa.

O silêncio que se instaurou não foi confortável, pelo menos para mim.

—Você não sente saudade também? - Perguntou depois de um tempo e eu mais senti do que vi seu rosto virado para mim.

Isso foi suficiente para eu decidir que era só muito sádico, nem um pouco legal.

—Harry, minhas questões emocionais também não são mais problema seu. - Contestei, ainda olhando para frente.

Sem aviso senti a mão dele pegar a minha mão esquerda e me virei por reflexo quando ele a puxou, parando em frente ao rosto.

Internamente me dei um soco quando notei para o que ele estava olhando. Ensaiei milhares de vezes tirar aquilo do meu dedo, a coragem sempre me faltando quando eu começava a puxar para longe. Uma coisa era continuar usando diariamente, longe dos seus olhos, outra bem diferente era esquecer completamente e vir com ela para o evento onde ele também estaria.

—Você ainda usa sua aliança. - Constatou me olhando de novo, e dessa vez eu o encarei de volta.

Sempre odiei demonstrar vulnerabilidade para quem quer que seja, então me impulsionei a agir e puxei minha mão de volta. Sem que Harry esperasse me inclinei sobre seu corpo e levantei sua mão esquerda, do mesmo jeito que ele fez com a minha, e a encontrei tão vazia quanto eu esperava. Bufei ao voltar para minha posição original, ainda olhando para ele.

—Aliança, Harry? - Soltei uma risada forçada, mostrando que aquilo não fazia sentido. - Sozinha e sem comprometimento é só um anel bonito. A aliança mesmo fica dentro das pessoas.

Olhei para minha mão por um tempo, captando a imagem do contraste do brilho com a minha pele e tomei uma decisão repentina. Antes de desistir ou que ele entendesse o que eu estava fazendo, tirei do meu dedo e coloquei no seu colo.

—Mas foi você que comprou, então pode ficar. - De canto de olho o vi abrir a boca para protestar, mas eu já estava de pé e saindo dali. - Tchau.

Passei direto pela cozinha e pela sala, entrei pelo corredor ao lado e voltei já com a bolsa no ombro e a chave do carro na mão. Avistei Hermione do lado oposto e fui até ela com pressa.

—Mione, já vou. - Anunciei assim que ela se virou para mim e não dei tempo para que questionasse. - Espero vocês lá em casa amanhã para almoçarem, e não esqueça meu presente. - Tentei sorrir ao final, mas não sei se chegou aos meus olhos.

—Não vou esquecer, fique tranquila. - Respondeu, tendo a empatia de entender que esse era o momento de falar sobre qualquer coisa banal.

—Dê um beijo no Ron e nos meus pais para mim, por favor. Até amanhã. - Beijei seu rosto e saí dali sem olhar em volta.

Contradizendo as leis que dizem que a ausência de algo subtrai seu peso, minha mão estava mais pesada do que nunca sobre o volante. Fiz o percurso no menor tempo possível dentro dos limites normais de velocidade, a calmaria da madrugada ajudando nisso, e cheguei em casa pouco depois da uma da manhã.

Não tinha se passado nem meia hora e eu já me sentia arrependida de ter aberto mão da única coisa que eu ainda tinha do tempo em que, como disse para minha mãe, havia um casamento. Sem dar atenção ao orgulho e livre de qualquer outro olhar que pudesse me julgar de alguma forma, tranquei a porta atrás de mim e fui direto ao quarto que era nosso, onde eu nunca entrava. Abri o guarda roupa e revirei os porta retratos jogados ali a procura de um específico, que antes enfeitava o aparador da sala de jantar.

O encontrei exatamente como eu me lembrava, a moldura branca e adornada tão impecável e linda quanto o vestido que eu estava usando na foto, Harry atrás de mim com os braços ao meu redor e nós dois sorrindo radiantes para a câmera que registrou tudo daquele dia que eu achava que era o primeiro de uma vida inteira. Apaguei a luz ao sair e o levei comigo para o meu quarto, onde o coloquei sobre o criado mudo, numa posição em que essa foi a última imagem que eu vi antes de cair no sono.

Quando acordei no dia seguinte, antes mesmo de ir até o banheiro tirei aquilo do meu lado e enfiei de volta no lugar onde deveria ficar, só então comecei o meu dia, como se a noite anterior nem tivesse existido. Tomei café da manhã pensando na conversa breve que tive com a minha mãe, e cheguei à conclusão de que ela tinha razão.

Como eu tinha dito na noite anterior, sem comprometimento aquilo era só um anel bonito e não uma aliança, do mesmo modo o contrato assinado no cartório quase três anos antes também era só isso, um contrato, porque para ser um casamento as mesmas coisas eram necessárias. Um anel e um contrato não fazem um casamento, e se o primeiro não deveria existir, o segundo também não.

Sem querer me estender sobre a implicação da palavra "definitivo" nesse tópico, decidi que assim que passassem as festas, pediria à Hermione que me ajudasse com isso.


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Notas finais do capítulo

E esses dois que não se querem, mas também não se largam? hahah
Essa situação deles está longe de parecer resolvida, não? Ambos culpam o outro sem olhar pra si mesmos, e esse não é o caminho, não é mesmo?
Ansiosa para saber a opinião de vocês, então não deixem de me dizer o que acharam.
Beijos e até o próximo.



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