Segundo ato escrita por Paulinha Almeida


Capítulo 2
Primeiro ato




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/722691/chapter/2

Baby, slow down. The end is not as fun as the start.

(U2 - Original of the species)

POV Harry

Me despedi do porteiro que abriu o portão para nós e esperei a Helen sair na minha frente. Caminhamos alguns passos para longe das vistas dele e estiquei a mão para ela dar um toque de comemoração.

—É nosso! - Exclamou com um sorriso, abrindo a porta do carona e se acomodando.

—Conseguimos! - Comemorei também, me sentando ao lado dela e fechando a porta. - Você sabe que vai trabalhar pra caramba agora, não é? - Brinquei, ligando o carro e saindo dali.

—Por incrível que pareça estou empolgada.

—É bom estar mesmo, vou precisar muito de você. Mas vai ser ótimo para nós. - Comentei e ela assentiu. - O que acha de já começarmos amanhã?

—Por mim a gente podia começar até hoje. - Respondeu me fazendo rir. - Isso se não fosse tão tarde, não é?

—Que horas são?

—Sete e meia.

—Nossa, já? - Exclamei surpreso.

Surpreso e lamentando, porque eu já sabia bem o que esperar em casa.

—Quer que eu te deixe em casa? - Perguntei a ela.

—Se não for atrapalhar, por favor.

—Sem problemas, é meu caminho também.

Os vinte minutos de percurso passei explicando os relatórios, históricos e previsões que precisava que ela me enviasse no dia seguinte. Dado o tempo que trabalhávamos juntos, eu sabia que essa explicação seria suficiente para no começo da tarde do dia seguinte estar tudo em minha caixa de entradas.

—Pode deixar, amanhã mesmo te entrego. - Prometeu apanhando a bolsa e a pasta do banco de trás e se virando para sair. - Obrigada, Harry. Não quer entrar e jantar conosco? David essa hora com certeza já preparou algo para comer.

—Fica para a próxima, preciso ir embora. Mas obrigado, mande um abraço meu para ele e desculpa o horário, não imaginei que essa reunião se estenderia tanto.

—Sem problemas, até amanhã.

Nos inclinamos e trocamos um beijo no rosto, Helen saiu fechando a porta e continuei meu caminho até em casa, não mais do que dez minutos dali.

Ginny estava deitada no sofá quando cheguei, vestindo a camisola azul e curta com que dormiu no dia anterior e de cabelos molhados, e o jeito que me olhou já indicava o que vinha pela frente. O problema era minha paciência não estar ajudando em nada hoje.

—Oi. - Cumprimentei e me abaixei para lhe dar um beijo, mas meu selinho não foi correspondido.

Ignorei isso e deixei a bolsa com o computador no sofá ao lado.

—Onde você estava até agora? - Perguntou séria.

—Em reunião com um cliente. - Informei, desabotoando os punhos da camisa.

—Se eu perguntar de novo você vai me falar a verdade ou vai continuar mentindo? - Exigiu cruzando os braços e se sentando.

Eu já não encarava mais isso com surpresa nem incredulidade, agora já era só sem paciência nem vontade de participar do show, mesmo.

—Dá um tempo, Ginny. - Pedi já me virando e saindo da sala.

Tive dois segundos de paz sozinho no quarto, que foi o tempo que durou para ela ir atrás de mim e se encostar no batente da porta, braços cruzados e a expressão fechada.

—Quem estava com você?

—A Helen.

—Olha, agora você está sendo sincero. - Ironizou me encarando.

—Pelo amor de Deus. - Resmunguei me virando de costas e indo até o banheiro.

Fechei a porta ao passar, dando a entender que eu não queria companhia, e tomei um banho demorado na esperança de que estivesse tudo bem quando eu saísse. Voltei ao quarto meia hora depois, vestindo apenas uma cueca e passando a toalha nos cabelos para tirar o excesso de água, Ginny estava sentada na cama, com as costas apoiadas na cabeceira e me olhando da mesma forma.

—Harry, é sério, onde você estava? - Repetiu a pergunta, o tom de voz nada amigável.

—Caralho, Ginny, já disse que estava em reunião com um cliente.

—Para de falar isso! Quando eu estava saindo da faculdade vi você passar de carro com ela do lado, e só agora está chegando em casa. - Falou exaltada.

—Então você deve ter visto também que ela estava sentada no banco do carona, não no meu colo. - Respondi da mesma forma.

—Quanto tempo demorou pra ela mudar de lugar quando vocês chegaram sei lá onde? - Destilou, lançando mão de todo o sarcasmo possível.

—Ginny, eu passei as últimas cinco horas do meu dia em uma reunião do inferno que me rendeu só mais um monte de trabalho, mas um resultado ótimo, você não pode ficar quieta só hoje?

—Não, não posso. Por que você tem que arrastar aquela vaca para todo lugar do seu lado?

—A Helen trabalha comigo, o que você quer que eu faça? Enfie ela no porta malas? - Tentei manter o tom de voz, mas cheguei ao fim da frase algumas oitavas mais alto.

—Ah, me desculpe, não é uma vaca, é a Helen. - Me fuzilou ao dizer.

—É, não é uma vaca mesmo. - Encarei de volta. - Pelo amor de Deus, qual o seu problema com essa menina?

—Além de que ela tem muito mais sua atenção do que eu? - Argumentou magoada, mas isso não mudava o fato de que era um absurdo.

—Deve ser porque ela não conversa comigo só para falar um monte de besteira.

—Deve ser porque de alguma forma ela ainda consegue conversar com você, não te encontra só prestando atenção em outras coisas. - Acusou, dando um passo na minha direção.

Terminei de vestir a calça do pijama que estava pegando no meu guarda roupa e me virei para ela.

—Por favor, será que eu posso descansar agora? - Pedi sério, mas ela não saiu da minha frente.

—A Helen, que não é uma vaca, deve ter exigido muito de você hoje, não é? - Ironizou.

Optei por não responder essa sandice, coloquei as mãos em sua cintura e a tirei da minha frente para passar. Estava a caminho da porta para ir até a cozinha comer alguma coisa quando ela falou de novo.

—Deixa eu ver seu celular. - Não era um pedido, era uma exigência.

—Vê a merda do celular, vê o que você quiser e não enche o saco. - Falei sem dar atenção.

Era uma situação desgastante, porque essa não era a primeira nem a décima vez que ela fazia um escândalo sem motivos. Ginny há um tempo isso ficou insuportável. Bastou a primeira festa da empresa para ela ver que a Helen era bonita e extrovertida, e então cismar que eu passava os dias inteiros fazendo qualquer outra coisa que não planilhas e mais planilhas e participando de inúmeras reuniões.

Ela passava o dia na faculdade com seus livros e fórmulas cheias de letras, ensinando outros futuros mestres de exatas a decifrar e entender os números que ela tanto amava, o lado ruim é que isso envolvia apenas alunos e uma sala de aula, não um ambiente corporativo onde o contato com outras pessoas é necessário e ficar trancado numa sala com alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto significa que vocês estão trabalhando provavelmente em uma coisa chata, não tirando a roupa.

A vida em casa virou uma montanha russa de esporádicos dias ótimos, fins de semana relativamente bons e dias úteis conturbados quando eu me atrasava cinco minutos, assim já se vê o tamanho do problema quando chego quase duas horas depois.

Eu queria que ela confiasse em mim, na minha palavra e na minha conduta dos últimos sete anos, que em nada alimentava esse monstro que estava nos separando a cada dia. Para não estender as brigas eu sempre fazia o que ela queria, seja ver o celular, o notebook ou, ainda pior, sentir o meu cheiro de um jeito que ela julgava ser bem disfarçado, mas que era óbvio que a única intenção era ver se havia outro perfume ali.

Eu avisei inúmeras vezes que um dia isso me cansaria, e esse dia chegou assim que ela se virou após minha frase e saiu em direção ao criado mudo, onde meu telefone móvel estava carregando. Não fazia parte dos meus planos passar a vida inteira assim, então eu tinha que tomar uma atitude alguma hora, e não esperaria nem um minuto a mais.

Voltei a passos rápidos para dentro do quarto e antes que Ginny alcançasse meu celular enrosquei sua cintura e a prendi, apanhando o aparelho antes dela.

—Quer saber, você não vai ver porra nenhuma. Ou acredita em mim ou não. - Determinei e o guardei no meu bolso.

—Me dá! - Exigiu tentando pegá-lo, mas foi fácil segurar suas mãos e impedir.

—Não. É em mim que você tem que acreditar, Ginny. - Reafirmei e ela se afastou.

—O que tem aí que eu não posso ver?

—Não tem nada aqui que você não possa ver, então não tem pra que você ver. - Falei e me virei novamente para sair dali.

—Eu duvido que não tenha, ou você não faria isso. - Continuou falando enquanto me acompanhava até a cozinha. - O meu celular fica o tempo todo ao seu alcance, eu nunca liguei para isso.

Nós sempre deixávamos um sanduíche feito para o outro quando chegávamos em casa mais cedo, encontrei o meu quando abri a geladeira.

—Fica mesmo, cheio de cantada dos seus alunos preferidos. - Acusei colocando o prato sobre o balcão. - Se aquilo fosse no meu você já teria feito o que? Cometido um crime passional?

—Eu não levo nenhum deles para baixo e para cima comigo. - Se defendeu.

—Nem precisa, você já passa quatro horas por dia de costas para eles escrevendo no quadro e se abaixando para tirar dúvidas. Como é que eles te chamam? Sonho de consumo? Professora gostosa? Eu adoraria saber. - Fui tão irônico quanto ela era ao me acusar.

—Pare de ser ridículo, Harry, são meus alunos. - Ignorou o que eu havia dito.

—É, são seus alunos sim. E você deve ser o fetiche de todos eles, quem não quer levar a professora gostosa pra casa? Não é difícil pra mim imaginar o que passa na cabeça de quem te vê de costas a manhã toda, mas só você tem motivos para sentir ciúmes e eu não posso me incomodar. - Empurrei o prato para o lado e me sentei. - Perdi a fome.

—Eu deveria sonhar mais alto e querer meu chefe então? Ser igual a Helen? - Voltou o assunto à minha colega de trabalho.

Senti o sangue ferver com isso, e antes mesmo de dizer a próxima frase eu já sabia que ela ia encarar aquilo como um tapa:

—Talvez se você fosse só um pouquinho como a Helen a gente vivesse melhor.

Vi seus olhos se arregalarem e brilharem na minha direção quando as lágrimas se acumularam, mas era óbvio que Ginny não deixaria nenhuma cair.

—Você não vai mesmo deixar eu ver seu celular? - Insistiu, mudando de assunto.

—Já disse que não. Isso não é normal, Ginny.

—Não é normal? - Riu sarcástica, mas o tom de voz foi ofendido. - Não deu tempo de ver que eu era assim antes de querer se casar comigo?

—Assim? - Questionei cético, apontando para ela. - Desculpe, mas você não era nem perto disso. Antes era controlável, até bonitinho, agora é só sufocante e ridículo mesmo.

—Quando foi que você ficou tão idiota? - Perguntou magoada.

—Quando foi que você ficou tão louca e insegura?

—Talvez quando você parou de achar que eu merecia mais sua atenção do que a TV, do que o celular, do que a Helen ou qualquer outra coisa. - Falou mais alto do que o necessário.

—Para, por favor, de enfiar a Helen nessa conversa. - Pedi exasperado, o rosto enfiado nas mãos.

—Desculpe se não posso tocar no nome da sua diversão. - Respondeu sem se intimidar.

E para mim foi o que precisou para eu saber que ela nunca mudaria. Eu poderia pedir desculpas, por nada, como das outras vezes e ir dormir. No final de semana ela nem tocaria nesse assunto e eu muito menos, para que as coisas continuassem boas, mas isso só duraria até o próximo motivo ridículo.

—Quer saber? - Falei depois de respirar fundo. - Para mim já deu essa vida.

Sem parar para pensar no que estava fazendo fui até o quarto, peguei minha mochila de acampamento e abri o guarda roupa. Não me virei para ver a expressão dela, mas eu sabia que estava sendo observado enquanto tirava as primeiras peças que via pela frente e embolava ali dentro. No banheiro passei a mão na minha prateleira e derrubei dentro da mala tudo que estava pela frente.

Não precisei pedir licença ao passar pela porta, ela saiu da minha frente com o olhar estarrecido, dividida entre a raiva e a descrença.

—Harry. - Me chamou com o tom comedido e eu me virei para olhar para ela, mas não disse nada. - Eu não vou pedir nem muito menos te implorar para ficar, mas se você sair eu não vou atrás de você e nem adianta tentar voltar amanhã. Tem certeza que não quer pensar um pouco?

—Pensar? Essa não era a vida que queria quando me casei, Ginny. Nem tem o que pensar. - Confirmei antes que a coragem fugisse e deixei sobre o sofá as coisas que peguei, ao lado da minha mochila com o notebook da empresa.

Voltei ao quarto tempo suficiente para vestir uma camiseta e calçar meu tênis, apanhei minha chave e sem nem falar tchau puxei minhas duas bolsas de cima do sofá e bati a porta atrás de mim com raiva.

Antes de chegar à porta do carro meu nome foi chamado, me fazendo pensar que o "nunca" da minha esposa era breve demais. Me virei e esperei que ela caminhasse decidida até mim, as mãos estendidas.

—Você não vai ver meu celular. - Repeti sem paciência, ainda com os braços cheios de coisas.

—Engole essa merda de celular. - Respondeu sem se importar, enfiando a mão no meu bolso mesmo assim e tirando minhas chaves de lá. - Você não precisa mais disso.

Essa atitude conseguiu me surpreender, e por vários segundos continuei olhando para a porta que ela bateu na minha cara quando entrou.

Agora estava feito, não tinha mais como voltar atrás.

Respirei fundo e engoli qualquer resquício de dúvida, me convencendo de que era impossível viver como estávamos.

Entrei no carro e fui embora, levando comigo uma culpa imensa pelo que estava fazendo. Eu tinha jurado amá-la e protegê-la por todos os dias da minha vida, mas ao contrário disso estava indo embora e deixando para trás a dor que seu olhar raivoso não conseguia esconder. Eu estava desistindo, e desistir é uma coisa horrível, mas engoli o nó na garganta junto com a vontade de voltar e continuei em frente.

Mal vi as ruas passarem pela janela enquanto dirigia até meu único destino possível, que por ironia era a casa do meu próprio cunhado. Buzinei quando parei em frente ao portão e aguardei que ele e Mione saíssem para me receber. Minha grande sorte é que ela era discreta, porque se fosse só o Ron aqui eu teria preferido dormir na praça do centro da cidade do que enfrentar sua maré de perguntas.

Os dois surgiram sorridentes, mas as expressões ficaram confusas assim que me viram sozinho. Tirei as duas bolsas do banco de trás e parei em frente ao portão aberto.

—Que merda você fez pra minha irmã? - Ron perguntou antes que eu sequer pudesse dizer oi.

Mione me poupou de responder, dando uma cotovelada nele.

—Ronald, cala a boca. - Mandou em seu habitual carinho para com o marido. - Agora diz, Harry, o que aconteceu?

—O de sempre. Eu avisei que isso me cansaria uma hora. - Respondi, sabendo que ela entenderia e eu não precisaria falar mais nada.

Ron abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas ela o deteve novamente e me deu passagem. Os acompanhei até a sala de estar e com a porta já devidamente fechada me virei para ambos.

—Posso ficar aqui uns dias? Prometo que será bem rápido mesmo.

—Claro, fique o quanto precisar. - Ela confirmou e eu agradeci com um aceno. - Já comeu?

—Não estou com fome, obrigado.

Pelas expressões à minha frente eu sabia que nenhum dos dois sabia o que dizer para mim, tampouco eu a eles.

—Mas será que já posso me deitar? Estou um pouco cansado.

—Claro. Eu levo ele, amor, pode deixar. - Ron se adiantou e me seguiu até o quarto de hóspedes.

Meu cunhado era o tipo irmão ciumento cuidadoso, mesmo Ginny já tendo vinte e oito anos, mas também era meu amigo. A dúvida sobre como se comportar estava estampada em seu rosto, então agradeci quando ele ficou em silêncio e me entregou um cobertor e dois travesseiros.

—Você está bem, cara? - Me perguntou parado na porta, assim que agradeci.

—Não, eu não estou bem. - Fui sincero e passei as mãos pelos cabelos, nervoso. - Mas vou ficar.

—Claro que vai. Se precisar de algo me avisa.

—Obrigado, Ron. De verdade. - Agradeci de novo e ele me deixou sozinho.

Não havia nada que eu quisesse fazer nesse momento, então tirei a camiseta, o tênis, estiquei as cobertas e esvaziei os bolsos para me deitar. Quando toquei o aparelho moderno que de certa forma desencadeou tudo isso, repreendi a vontade de estilhaçá-lo na parede e coloquei de qualquer jeito sobre a cômoda.

"Tudo por uma merda de celular", pensei amargurado, me forçando a fechar os olhos assim que apaguei as luzes e me acomodei.

Alguns minutos depois ouvi a voz da Mione dizer "Ginny? Sou eu, você está bem?" E a porta do quarto dela, do outro lado do corredor, se fechar abafando o som.

É óbvio que ela não estava bem. Eu não sabia se deveria me sentir mal por ter certeza disso ou idiota por me importar.

Em síntese, foi uma noite péssima e quase nem dormida

Primeiro pensei em como aquele dia tinha amanhecido tão normal e virado uma merda completa.

A saudade quase me engoliu quando pensei naquele cabelo comprido e chamativo na minha cara, deixando minhas noites de sono muito mais cheirosas, no “sim” entusiasmado quando eu a pedi em casamento, em todos os milhares de planos que fizemos e nunca sairão do papel.

Mas depois de tantos momentos bons inevitavelmente cheguei também na primeira explosão por nada, anos atrás. E daí foi um pulo para o meu cérebro deliberadamente repassar em detalhes todas as nossas primeiras vezes, o que me deixou meio depressivo.

A primeira vez que a vi, no aniversário do Ron quando ele ainda era meu colega de faculdade, nosso primeiro beijo, uma semana depois em um pub quando ela topou sair comigo, a primeira vez que fizemos sexo, no fim daquele mesmo mês na minha casa e a partir daí eu soube que não queria fazer isso com mais ninguém.

Pensando mais recentemente, no entanto, eu nem lembrava quando tinha sido a última vez que transei com a minha esposa. Minha ex esposa.

Mas aquela que eu deixei não era mais a mulher com quem eu quis passar o resto da vida. O que ela disse também indicava que eu não sou mais o homem que ela escolheu.

—Que merda, Ginny, como isso aconteceu? - Murmurei alto o bastante para conseguir ouvir, limpando as lágrimas de frustração que eu já sentia escorrer.

 

POV Ginny

Até o barulho do carro dele sumir ao longe eu tive esperanças de que Harry desistiria e voltaria. Era isso o que eu queria que acontecesse, mas não aconteceu.

Fechei os olhos por um minuto e olhei a chave que eu tinha tomado dele, dando um fim definitivo para aquela situação e o impedindo de voltar para casa. A nossa casa, de onde ele não deveria ter saído.

A sensação que fechou minha garganta não era nem tristeza, era quase desespero.

Ofeguei algumas vezes olhando em volta, como se a resposta para o que fazer fosse surgir em alguma daquelas paredes. Larguei as chaves dele no sofá como se de alguma forma elas me machucassem e coloquei as duas mãos sobre a boca para reprimir a vontade súbita de dar um grito. Andei de um lado para o outro, vendo o cenário ao meu redor cada vez mais borrado com as lágrimas que se acumulavam e pisquei, liberando as primeiras delas.

As primeiras de muitas daquela noite.

Fui até o quarto apenas para me certificar de que não era uma brincadeira de mau gosto da minha memória e encontrei as portas do armário realmente abertas, com conteúdo de menos dentro e a prateleira do lado direito da pia do banheiro vazia.

Sentei no chão em um canto que me permitia ver completamente a cama meio desarrumada e o guarda roupa dele e me deixei chorar tudo o que eu tinha vontade, encarando o cenário de todo o estrago que tinha virado minha vida. Sem nenhuma plateia, me senti a vontade para soluçar até meu estômago doer, perder o ar, tremer o quanto eu quis naquela situação que eu nunca queria ter chegado. Não me importei em desgrudar os fios de cabelos da bochecha nem em limpar o rosto, cada vez mais vermelho, só fiquei naquele estado letárgico até o som estridente do meu celular soar do outro lado do cômodo, sobre a cama. Respirei fundo algumas vezes e fui até lá, sabendo no fundo que não seria ele do outro lado da linha.

—Oi. - Atendi após ver o nome da minha cunhada no identificador.

—Ginny? Sou eu, você está bem?

Sua voz estava soando tão preocupada que dissipou minha vontade mal educada de perguntar em que universo ela imaginava que eu ficaria bem com aquilo.

—Sim. - Respondi sem vontade, em meio a outro soluço.

—Estou falando sério, quer que eu vá até aí?

—Não precisa. - A frase saiu entrecortada novamente.

—Gin, é sério. Eu vou até aí.

—Hermione, não precisa. Obrigada. - Neguei incisiva, não precisando de nenhum esforço para parecer mal humorada.

—Tudo bem, me ligue se mudar de ideia. - Cedeu por fim.

—Tá, tchau.

Deixei o aparelho de lado e me sentei na ponta do colchão, dizer que eu me sentia perdida era brincar com meus sentimentos. Eu não sabia nem por onde começar, sequer como continuar minha vida subitamente mais vazia.

Deixei o olhar vagar pelo quarto ao meu redor, notando os detalhes do que ficou: a camisa que ele usou no trabalho jogada sobre edredom ali perto de mim, a calça no chão ao lado do guarda roupa, um monte de roupa limpa e ainda dobrada lá dentro, o carregador do celular ainda na tomada, do jeito que ficou quando ele puxou apenas o aparelho.

E eu nem queria considerar o vazio, que apesar de eu não conseguir ver era o que estava mais presente.

Me estiquei o suficiente para alcançar a peça de roupa que ele usou durante todo o dia e afundei o rosto nela, me deixando envolver por aquele cheiro tão familiar e reconfortante. Quando me afastei, notei o tecido molhado com as minhas lágrimas.

Afastei o cabelo do rosto e fui até o interruptor de luz ao lado da porta, depois de tudo escuro subi na cama novamente, ocupando dessa vez o lado que normalmente era dele, afundei o rosto no seu travesseiro e abracei sua roupa, aí chorei até dormir.

O dia seguinte já começou com uma dor de cabeça impossível de ignorar, então nem cogitei a ideia de ir trabalhar. Estiquei o braço para alcançar o telefone e fiz uma ligação rápida para a secretaria do campus, informando que eu não estava me sentindo bem e ficaria em casa.

Consegui dormir por mais um tempo e acordei com a dor mais suave. O relógio mostrava que já se aproximava das onze da manhã, e eu sabia que não podia continuar nessa morosidade a vida inteira, então respirei fundo para encarar o que vinha pela frente, joguei no chão ao meu lado a camisa ainda enroscada em mim e me levantei. A pessoa que me encarou de volta no espelho não parecia comigo, nem com quem eu quero ser.

Lavei o rosto com cuidado, dissipando um pouco das manchas deixadas pelo choro do dia anterior e esperei que isso também amenizasse meu inchaço. Prendi o cabelo no alto e tentei organizar meus pensamentos, porque eu já sabia o que tinha que fazer, só precisava de coragem.

Busquei no quarto de hóspedes a mala grande que Harry usava em nossas viagens longas, arrastei até o lado da nossa cama e a abri no chão. Tudo o que ainda havia em seu armário foi jogado lá dentro com o máximo de cuidado que eu consegui ter, e que infelizmente não foi muito. O que eu achava que seria uma atividade até relaxante, pois consistia basicamente em arremessos, se tornou uma passagem por presentes, roupas usadas em ocasiões especiais, peças da cor preferida dele e mais uma série de coisas que eu não queria ver, mas não pude evitar.

Eu estava falando sério quando disse que não adiantaria voltar no dia seguinte, porque de nenhuma maneira eu permitiria que minha vida virasse um eterno entra e sai. Ainda que a pessoa que saiu fosse Harry, o que significava muito.

Troquei a camisola pela roupa que estava sobre a cômoda, era a mesma que usei no dia anterior, mas também era a que estava mais fácil e agora que comecei eu estava com pressa para acabar. Arrastei porta afora duas malas e uma caixa cheia de tudo o que era dele: roupas, sapatos, livros, objetos pessoais e até a caixa com todos os cartões que eu dei ao longo de todas as datas comemorativas que passamos juntos.

Disquei o número da minha cunhada e esperei que atendesse, o que aconteceu poucos toques depois.

—Ginny, tudo bem? - Foi sua primeira pergunta.

—Tudo. Mione, você está em casa?

—Estou.

—Ele está aí também? - Perguntei sem rodeios.

—Não.

—Ótimo, estou indo aí.

Encerrei a ligação e joguei o aparelho no banco do carona, liguei o carro e saí. O percurso foi feito enquanto eu me concentrava em manter os pensamentos vazios, porque em algumas coisas é melhor nem pensar, e cheguei à casa do meu irmão sem derramar nenhuma lágrima nova. Não precisei nem anunciar minha chegada, porque uma Hermione ansiosa estava me esperando no portão.

—Oi, tudo bem? - Cumprimentei com um beijo no rosto assim que desci do carro.

—Como você está? - Ignorou minha pergunta e me olhou preocupada, se detendo nas marcas da noite péssima estampadas no meu rosto.

—Como eu poderia estar, Mione? - Respondi, me encostando na lateral do veículo e já sentindo meus olhos arderem de novo. - Foram sete anos e tudo acabou numa briga de uma hora, como eu deveria me sentir?

Ela teve o bom senso de entender que eram perguntas retóricas e não dizer nada, apenas encostou do meu lado pelo tempo que eu também fiquei calada e me acompanhou com os olhos quando limpei o rosto e fui até a traseira do veículo.

—Me ajuda aqui, por favor? - Pedi levantando a tampa do porta malas e exibindo o conteúdo.

—Ginny! - Foi a única coisa que ela falou quando viu, seguido de um olhar cauteloso na minha direção.

—Nem comece, não tem o que pensar. - Me antecipei, sabendo que ela perguntaria se eu já tinha pensado bem sobre aquilo. - Ele quis ir embora, Mione, ele! - Falei em meio ao esforço de arrastar a primeira delas para a garagem. - Eu avisei que não adiantaria querer voltar no dia seguinte e ele foi mesmo assim, não diga que eu ainda tenho o que pensar.

—É tão definitivo assim? - Perguntou, trazendo a segunda.

A pergunta me fez parar, porque a palavra "definitivo" não era uma que eu quisesse encaixar em um contexto sem ele. Mas aparentemente havia muitas coisas que eu precisaria aprender a encaixar num contexto sem ele, essa tinha que ser a mais fácil delas.

—Ele desistiu de tudo, é definitivo o suficiente para mim. - Confirmei abrindo a porta de trás e puxando com mais cuidado a caixa com as coisas mais delicadas. - Você entrega a ele, por favor?

—Claro.

—Obrigada. E diga também que se ele sentir falta de algo é para me mandar uma mensagem e que se eu achar mais alguma coisa trago depois. - Informei batendo a porta. - E que não precisa se preocupar, porque eu sou só uma louca insegura, não uma louca que fica com as coisas do ex marido. - Essa última parte foi dita com mais ressentimento do que raiva, não atendendo totalmente ao meu objetivo.

—Pode deixar, eu digo. - Confirmou sem demonstrar nada além de uma expressão imparcial.

—Obrigada, já vou.

—Não quer entrar? - Perguntou enquanto eu já contornava o veículo para adentrá-lo.

—Não quero estar aqui quando ele chegar. Tchau, manda um beijo pro Ron.

Ela assentiu e acenou quando eu arranquei com o carro para fazer o caminho inverso.

Fechei a porta da sala atrás de mim e olhei em volta, decidida a tirar da minha frente tudo o que pudesse me lembrar de algo que eu não tinha mais. Todos os porta retratos sorridentes e felizes foram sendo empilhados no meu braço enquanto eu fazia uma inspeção minuciosa, dali o próximo destino deles foi o lado agora vazio do guarda roupa que me aguardava ainda com as portas abertas e agora nenhum conteúdo dentro.

Eu tinha uma quantidade consideravelmente maior de roupas do que ele, então metade já ficava no armário colocado no quarto de hóspedes, ao fim do corredor, levar o resto para lá foi muito mais rápido do que eu esperava que seria. Meus artigos de higiene pessoal, maquiagens, perfumes e todo o resto também foram alocados em outro banheiro.

Me debrucei sobre a cama para apanhar meu travesseiro e me choquei com o dele também, me encarando ainda da mesma forma que ficou quando o deixei ao acordar mais cedo. A dúvida me corroeu internamente, porque olhando para aquele objeto ao mesmo tempo tão significativo e banal eu me perguntei se conseguiria me livrar de tudo ao mesmo tempo, da mesma forma que se tira um esparadrapo.

Fechei os olhos com força ao assumir para mim mesma essa pequena e única derrota, peguei os dois e fechei a porta ao passar. Ali tinha sido nosso canto, o cenário de um milhão de momentos que eu não queria esquecer e nem corromper com novas lembranças, então se fosse para não ter nada dele, não teria nada meu também.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!
Esse capítulo é pesado e difícil de digerir, mas acreditem em mim: ele é necessário! Para todo mundo que já teve um relacionamento e até mesmo para quem idealiza um, o que eles fizeram enquanto casal até agora não é o sonho de convivência de ninguém, né?
Para quem acompanha meu grupo, eu avisei que essa história seguiria uma ordem completamente diferente de tudo que já escrevi.
Estou louca para saber as opiniões de vocês, e por favor vamos pegar leve nas ameaças haha
Comentem, me deixem saber o que vocês mais gostara.
Beijos e até semana que vem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Segundo ato" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.