O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 6
Capítulo 5: Cova do leão




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Capítulo 5

Cova do leão

Os talheres operavam cuidadosamente o prato de lagosta para maximizar o sabor de cada porção apanhada pelo garfo, Júlio de Almeida sendo tão preciso quanto um cirurgião conforme almoçava junto à mesa de vidro de seu escritório privado.

Saber aproveitar tão bem uma iguaria como aquela não era simples requinte gastronômico, mas valorizar um artigo raro e caríssimo. Cada vez menos produtos podiam ser extraídos do oceano desde que, com a mudança da matriz energética, as grandes refinarias vinham chantageando os governos mundiais ao afundar seus petroleiros em alto-mar – sem contar vir sendo mais e mais difícil distinguir uma lagosta natural das porcarias transgênicas inundando o mercado; e muitos se contentavam com os animais geneticamente modificados em seus pratos. Júlio não. E, felizmente, a PU não continha recursos quando o assunto era o bem-estar dos indivíduos mais competentes em sua hierarquia. Ainda mais o topo...

Os cozinheiros do prédio sabiam trabalhar bem com o sabor dos frutos do mar. E o comandante da PU percebia cada vez mais como a vida, no final, resumia-se a uma alternância de sabores. O doce de sua posição e da prosperidade em que se encontrava tanto sua família quanto a carreira profissional, por mais que sujar as mãos com o sangue dos indesejados – ainda que houvesse milhares de oficiais para fazer aquilo por ele – fizesse o gosto se tornar levemente acre; o salgado em excesso de como estava o país quando assumiram o controle, entregue à corrupção, populismo e demagogia, para então suavizarem o tempero e a carne crua atingir seu ponto ideal; até o amargo gerado pelos dissidentes que não viam o bem que faziam à nação, preferindo escolher o lado da desordem, da ideologia vermelha. Tal qual o juiz Pedro de Castro e seu apego ao Ministério Público...

Quando estava na metade da lagosta e seu tablet piscou informando possuir novo visitante, Júlio concluiu que o gosto ruim ainda se prolongaria mais algum tempo em sua boca.

O comandante interrompeu o almoço, selando a refeição incompleta sob a pequena redoma de uma estufa a vácuo que sempre utilizava naquelas situações, e apanhou um guardanapo para limpar a boca. Lá fora a tempestade dera uma trégua, deixando os sons do interior do edifício mais perceptíveis. Já podia ouvir os passos velozes sobre o mármore do corredor a muitos metros de distância – indicando que o sujeito, seja lá quem fosse, vinha com vontade. Escutou as vozes abafadas do lado de fora quando ele trocava palavras com sua secretária junto ao balcão da antessala, vislumbrando sua silhueta enevoada ao aproximar-se da porta de vidro fosco do escritório.

Ordens judiciais... sempre burlando o agendamento de horários— Almeida pensou consigo quando a entrada do recinto foi liberada num bipe da tranca eletrônica.

Não era o juiz Pedro de Castro novamente, o que fez Júlio eliminar a expectativa de uma conversa interessante com alguém de nível intelectual ao menos próximo do seu. O homem de terno amarrotado e cabeça calva surgiu com a testa banhada em suor; a mão esquerda, trêmula, erguendo um lenço para secá-la. Uma piada ambulante, sem qualquer sombra de dúvida. Viera ali por impulso, ou jamais teria subido àquele andar se houvesse parado para pensar. E claro, havia os sapatos. Dois ou três números maiores que os pés do imbecil – e o comandante da PU imaginou como ele conseguia andar sem tropeçar nos próprios calcanhares.

— A que devo a visita, senhor... – Almeida, calmamente, iniciou contato.

— Mário Valente, promotor público – a resposta veio ácida, ao mesmo tempo em que o sujeito ergueu um dedo em riste na direção de Júlio. – E não se faça de sonso, seu lobo em pele de cordeiro!

Ótimo, um paladino da justiça... Por um segundo, Almeida desejou que a metade restante da lagosta recuperasse a vida, arrebentasse a estufa e lhe cortasse a própria garganta com suas pinças.

— Acalme-se, por favor – ele sorriu. Nem convidou o promotor a se sentar, ele com certeza recusaria no estado de nervos em que estava. – O que eu fiz?

— Sabia que conseguimos acesso constante às suas contas no Banco Nacional?

— Verdade? – Almeida fingiu surpresa, o panaca acreditando ou não. – Pensei que o governo só permitisse esse tipo de procedimento em relação a pessoas envolvidas em rebelião... Você sabe, anarquistas, comunistas. Não sabia que eu me enquadrava no perfil.

Valente, que do adjetivo em seu nome não tinha nada, estufou o peito e piscou rapidamente. Compreendia agora estar emaranhado no jogo de Júlio, e se possuía um mínimo de amor por sua vida e posição, começaria a fazer de tudo para escapar feito um peixe fora d'água. Quase todos eles agiam assim, a comida na mesa dos filhos falando mais alto que qualquer idealismo. Questionou-se se aquele paspalhão, no caso, teria filhos... ou uma mísera mulher que um dia lhe dera atenção.

— Ouça, canalha! – tristemente, o promotor escolheu a reação errada. – O que tenho comigo pode fazer você ir servir de cozinheiro na Amazônia pelo resto da vida! Provas de enriquecimento ilícito. Expropriação de bens. Extorsão. Nem o governo poderá salvá-lo desta vez. Você conhece os slogans anticorrupção melhor do que eu!

Então esse aí alcançou um pouco mais além da ponta do iceberg...— Júlio ponderou. Pena não possuir metade da habilidade do juiz Castro. E nem um terço da discrição quanto a manter sua vida privada entre quatro paredes. O comandante, subitamente, não viu mais graça em continuar jogando com aquele idiota. Atirar as cartas na mesa faria, ao menos, com que não ficasse ainda mais entediado.

Procurou se lembrar do sobrenome. Valente... Valente. Toda uma ficha digital veio-lhe à mente como se a estivesse acessando mesmo via computador. O implante do sistema de aprimoramento de memória que fizera anos antes na Noruega vinha sendo útil em todas as funções relacionadas ao seu trabalho. E talvez aquela fosse uma das principais.

— O senhor fala em penas na Amazônia com tamanha propriedade... – Almeida estalou os dedos. – Deve estar familiarizado com os campos de trabalho para associais. Não que eu o tome por homossexual, não me compreenda mal. Só de tê-lo diante de mim, consigo concluir muito bem ser um hetero convicto. Um homem de bem. Mas possuir literatura ateísta em casa pode trazer problemas a qualquer um. O governo é muito preocupado com a maneira como ideias ateístas podem afetar a sociedade, promotor. Causar desordem.

O incrível refluxo sanguíneo causado pela adrenalina subindo e a pressão caindo, deixando a pele pálida feito neve. Júlio estava tão habituado a provocar tal efeito nas pessoas que quase conseguia sentir os efeitos em si. Valente ficou tão branco que o comandante até temeu que realmente o houvesse transformado numa estátua de gesso, os olhos arregalados compondo expressão facial tão apavorada a ponto de torná-la aquisição útil para espantar outras visitas indesejadas do escritório, posicionando-a ao lado da porta. O corpo, entretanto, continuava tremendo, e o suor seguia a escorrer. Em algum recanto profundo da alma agora quebrada do promotor, ele vivia.

Quando os lábios voltaram a se mover, a voz saiu sumida e oscilante:

— O Ministério Público pode reanalisar os dados das contas, se puderem ser justificados...

— O Ministério pode ter certeza de que a justificativa será dada – Almeida apoiou-o em tom amigável. – Compreenda que determinados recursos relacionados à PU precisam ser movidos em caráter extraoficial para não violar a confidencialidade de nossas operações. A segurança nacional não pode ser colocada em risco por procedimentos burocráticos, promotor.

— Sim, isso é certo! – os ombros de Valente relaxaram, e a mão com o lenço voltou à testa para remover mais líquido. – A segurança do país é prioritária, e também trabalho para o benefício dela.

No momento você só está trabalhando para o benefício de sentar a bunda num sofá e poder ler Rabelais sem ser incomodado...— Júlio remoeu enquanto, medindo cada segundo, julgava ter chegado o momento de acompanhar o visitante até a porta e mostrar-lhe a saída.

Após Valente deixá-lo e seu vulto finalmente desaparecer atrás do vidro fosco, Júlio retornou à mesa e abriu a redoma da estufa num apertar de botão, podendo agora finalizar a lagosta e, com sorte, livrar-se do gosto amargo restante tanto em sua língua quanto em seu ego...

Enquanto se sentava e pegava novamente os talheres, porém, deu conta de que talvez o sabor ruim ainda se prolongasse por mais algum tempo... até que conseguisse algo para usar contra o enigmático juiz Castro, do mesmo modo que todos os demais nomes na lista de inimigos da PU.

Ele, sim, era alguém que merecia uma parcela maior de sua cautela.


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