O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 1
Prólogo




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O Juiz da Verdade

Prólogo

 

Aquele que instrui ao mofador a si mesmo se faz injúria: e aquele que repreende ao ímpio, a si mesmo se desonra. Não repreendas ao mofador, para que ele te não aborreça. Repreende ao sábio, ele te amará.

Felipe leu o texto na tela do tablet com a visão enevoada – a luz do aparelho sendo uma das poucas coisas a separá-lo da total escuridão – e adentrou o beco, esticando um braço para apoiar-se numa das paredes e assim se salvando de cair de cara numa poça d’água.

Nem se lembrava mais de como a citação fora parar no pequeno computador pessoal. Decerto fora baixada do site dos Arcanjos da Salvação, para os quais Marina vivia tentando empurrá-lo no intuito de livrá-lo do vício do álcool – a pobre irmã nem suspeitando já ter ele passado para coisas bem piores. Ou então era um mero spam de algum site que acessara visando baixar pornografia ilegalmente – só Deus sabia o quão vinha sendo difícil conseguir uma mera foto de seios à mostra depois dos novos firewalls, ironicamente o mesmo Deus que diziam amá-lo, mas que o enviaria de pronto ao inferno caso gastasse seu tempo se masturbando. O “Senhor dos Exércitos” bem poderia livrá-lo daquela situação inserindo uma nova mulher em sua vida. De preferência uma que não implicasse com o que fizesse ou deixasse de fazer em suas visitas à Baixa Lapa.

Havia uma pequena referência no término da mensagem. “Provérbios 9, 7 a 8”. Era mesmo uma citação bíblica, embora não se surpreendesse se os números que a demarcavam na verdade constituíssem algum tipo de código, ou no mínimo uma sequência à qual deveria se atentar. O lado professor de Matemática ainda dormente em seu cérebro, constantemente reprimido naqueles longos anos após a exoneração compulsória por suposta ligação aos comunistas, revisitou-se resolvendo enigmas e charadas em sala de aula com os alunos. Pena que, naquele caso, a numeração não contribuiria para a “educação pública universal” ou qualquer outro tipo de baboseira em que um dia se acreditara ser capaz de transformar o país. O problema aritmético diante de si teria como recompensa apenas o alívio às suas veias pulsando na exigência de mais droga.

Só então, em seu estado grogue, atentou-se para, num clique, verificar o remetente da mensagem de texto:

           

Malandro do Samba

 

O desgraçado estava ficando debochado, divertindo-se à custa do vício alheio. Todos sambavam conforme sua música, afinal – não havia muito que fazer. Quando alguém em crise de abstinência, entretanto, lhe enfiasse uma bala na fuça, seria tarde demais para se arrepender.

Primeiro foram os números enviados na forma de supostas coordenadas de latitude e longitude. Depois, uma brincadeira com a data do dia, da qual deveria depurar mês e ano. E agora um texto da Bíblia com capítulo e versículos. Um desavisado pensaria que o Malandro estava tentando converter seus clientes, talvez ambicionando tornar-se pastor. Será que continuaria a oferecer o Céu ao seu rebanho em doses homeopáticas, a troco de depósitos cada vez mais altos?

Tropeçando pelo beco cheirando a néon, Felipe meteu o braço no cano de uma calha numa esquina da passagem. O membro latejou como se os ossos fossem substituídos por brasas, porém a vontade era tanta que se sobrepujou à dor, forçando-lhe os pés adiante. Num sofá todo rasgado e cheirando a mofo, duas moças de chapinha e correntes nos peitos injetavam-se entre risadas. Num canto escuro mais à frente, um careca com cara de poucos amigos cheirava pó laranja através de um canudinho.

 

Os fundos da antiga Fundição Progresso nunca estiveram tão distantes quanto naquela noite.

A porta de acesso estava vigiada por dois brucutus armados com Smithneys, como de costume.  Deixaram-no passar sequer com um aceno de cabeça, ali estando para resguardar a casa de shows abandonada dos olhos da lei, não das avermelhadas íris dos viciados. Quase caiu no primeiro corredor, lutando contra os instintos e a torradeira que seus miolos estavam se tornando sem a devida recarga. Um mulato de jaqueta e calça de nanofibra brancas lançou um olhar de escárnio em sua direção, os implantes nos braços e pernas revelando pertencer à gangue dos Zumbis – conclusão que convenceu Felipe a não revidar. Até porque o tempo não permitia...

Praticamente jogou-se dentro do antigo camarim convertido na sala dos armários, recinto todo pichado e iluminado por poucas lâmpadas de mercúrio no teto, dominado pelas fileiras de compartimentos retangulares que o Malandro alugava de graça aos seus clientes pelo simples vínculo de comprarem sua droga. O braço que atingira a calha estava sangrando mais do que pensara, empapando-lhe a manga do moletom, mas continuou ignorando. Vagueou pelo local transformado em labirinto até identificar seu armário decorado com o pôster da Hatsune Miku, antiga paixão virtual da adolescência. A luz verde acesa no painel indicava que o Malandro já recebera o pagamento de mil e quinhentos reais-novos. Só restava inserir a senha de acesso.

Os dedos trêmulos digitaram “9-7-8” com o fervor de um crente. E Felipe quase bradou um “Amém, aleluia!”, disposto a deletar toda a pornografia de seu tablet, quando a porta do armário foi despressurizada e se moveu. A penumbra da sala não contribuiu para que o interior do compartimento pudesse ser visualizado, o viciado estendendo a mão direita dentro dele e tateando loucamente em busca das seringas.

Praticamente entregou as pontas e preparou-se para o surto quando não as encontrou. Sentado de cócoras no piso sujo e grudento da sala, continuou varrendo o armário com os dedos a ponto de quase pressionar as unhas contra o metal... até que seu punho agarrou um objeto plástico. Não possuía a textura ou grossura de uma seringa, mas sua caixinha de misericórdia não estava vazia, afinal.

Trouxe o objeto para fora. Era um frasco branco de remédio fechado com tampa. Agitando-o, Felipe constatou haver nele comprimidos – voláteis como se possuíssem vida própria e implorassem para sair.

Agora ele julgava compreender a citação bíblica do Malandro. Estava prestes a atravessar o Mar Vermelho. A Perestroika não mais seria fornecida para eletrizar seu sangue. Subira um degrau na escada do vício e na dependência do fornecedor – a equação de segundo grau subitamente convertida numa de terceiro. Não que estivesse em posição de protestar ou reclamar. Seu próprio corpo o traía – e sabia que um dia chegaria a tal ponto, desde que fizera sua escolha meses atrás.

Girou a tampa e abriu o frasco. Erguendo-o até o halo de uma das lâmpadas do teto, verificou que os comprimidos eram pequenas cápsulas metade brancas e metade azuis, sentindo-se repentinamente privilegiado. Era a droga nova. O negócio que vinha sendo distribuído a apenas alguns clientes seletos – segundo alguns, os mais antigos e fieis ao Malandro. Invenção nacional, criada a partir de todo o conhecimento que o fornecedor obtivera de suas conexões estrangeiras. Composto poderosíssimo...

A tal “X-Mind”.

A pressão nas veias de Felipe era tanta que achava que logo os membros explodiriam. Não queria mais perder tempo com questionamentos ou como aquela porcaria tornaria seu corpo preso a mais uma fórmula química. Bastaria tragar o comprimido e pronto. Ainda assim, a mesma mão nervosa voltou para dentro do armário, tal qual uma voz sabe-se lá de onde alertasse ter esquecido algo nele...

Puxou para fora, desta vez, um panfleto impresso razoavelmente grosso, parecido com as brochuras de igrejas que voavam pelas ruas e vielas de todo o Rio de Janeiro. Iluminando-o, concluiu na verdade tratar-se de um livro, coisa cada vez mais rara naquelas últimas décadas dominadas pelos tablets e a leitura digital. Algo mais além do pôster de Miku, afinal, conseguiu remeter-lhe à juventude – principalmente pelo fato de aquela obra ser agora proibida pelo governo. Lera-a nos tempos de escola; e fora responsável por lhe desmitificar a ideia de que todos os autores brasileiros eram chatos. Um sorriso aberto entre espasmos nervosos surgiu em seu rosto conforme leu o título: “Noite na Taverna”, de Álvares de Azevedo.

Como o Malandro poderia saber?

Ainda perdendo-se no passado, mal notou quando a tela de seu tablet voltou a acender. A citação bíblica havia desaparecido. Em seu lugar surgiu uma mensagem curta que poderia ser facilmente confundida com uma notificação de erro do aparelho. “Malandro do Samba” não mais constava como remetente. Em seu lugar, um intrigante “XXX” conseguira burlar os protocolos de segurança do aplicativo.

Tomando mais uma vez o frasco de comprimidos em sua mão, Felipe leu o pequeno fragmento de texto, o qual ecoou em sua mente de forma mais profunda que qualquer devaneio químico auto-infligido até então:

Hoje todos os seus sonhos irão se realizar.


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