três de bastões escrita por themuggleriddle


Capítulo 14
O Beco Diagonal


Notas iniciais do capítulo

Depois de um ano, eu voltei.



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“Você está tendo mais tempo livre agora, da?” perguntou Yelena, se esticando contra o braço do sofá no qual ela estava sentada enquanto observava o tabuleiro de xadrez que ela e Frank haviam colocado entre eles. “Cavalo para C3.”

 

Feliks ouviu o barulho de algo quebrando e soube que uma das peças da bruxa havia acabado de acertar uma do jardineiro. No entanto, o médico não ergueu os olhos do artigo que estava lendo. Por mais que quisesse estar absorto em um dos livros sobre história bruxa que Yelena havia trazido para eles, o homem estava com o nariz enfiado em um estudo sobre a disseminação de melanomas através dos vasos linfáticos. Talvez não fosse tão divertido quanto história da magia, mas tinha um toque fascinante próprio à certos olhos.

 

“Aye.”

 

Ravenwood não havia contado sobre a sua demissão, mas acreditava que Bryce havia informado a mulher, a julgar pela presença quase constante dela nas últimas semanas. Yelena agora os vinha visitar quase todos os dias, lhes trazendo livros sobre magia, pedindo explicações sobre a tal patologia e jogando tempo fora com eles.

 

“Mas você ainda está no hospital?” ela perguntou, virando-se rapidamente para o olhar enquanto Frank pensava na sua jogada.

 

“Aye, mas não vou todo dia. Tento terminar o que tenho que fazer lá em três dias da semana e trago o resto para casa,” o médico explicou e acenou para a escrivaninha no canto da sala, sobre a qual descansava um microscópio. “As maravilhas de poder levar os seus pacientes dentro de uma caixinha.”

 

“Não seja mórbido,” Frank murmurou. “O bom doutor tem o péssimo hábito de, às vezes, voltar pra casa horas depois do apagão. Daqui a pouco vai virar a noite lá cortando tripas e se intoxicando com aqueles químicos.”

 

Desde a demissão, Feliks havia começado a passar mais tempo no hospital, algo que não passara despercebido para o amigo. Quando estava em casa, sozinho, a insegurança e ansiedade desencadeada pela perda do emprego voltavam a se fazerem presentes dentro dele. Como que por magia (ou talvez fosse uma maldição), a voz do Inspetor Chefe Webster voltava a soar em sua cabeça, acusando-o de não se rum bom profissional, dizendo que ele havia enlouquecido e sussurrando suspeitas sobre ele e Frank dividirem o apartamento.

 

“Torre para B5,” Bryce murmurou.

 

“O que você diria de um novo emprego?”

 

Ravenwood ergueu o olhar e viu metade de Yelena através das lentes de seus óculos e a outra, borrada. Ele empurrou os óculos sobre o nariz, fazendo a bruxa entrar em foco como um todo, e observou a expressão dela, vendo que ela não parecia estar fazendo uma brincadeira.

 

“Um novo emprego?” ele perguntou, vendo Bryce se ajeitar no sofá ao lado dela.

 

“Sim. Digo, não um emprego em período integral, já que você ainda está no hospital,” a bruxa explicou, virando-se para o olhar melhor. A julgar pela expressão de Frank, ele estava ciente dos planos dela. “Algo para te distrair.”

 

“Que tipo de trabalho?”

 

“Um dos garotos que estudou comigo em Hogwarts era filho do dono de uma loja no Beco Diagonal,” ela começou. “O comércio bruxo do qual já falei. Bom, eles estão procurando gente para trabalhar lá.”

 

“Mas eu sou um trouxa.”

 

“Sempre podemos dizer que você é um aborto.” Ela encolheu os ombros e apoiou a cabeça no encosto do sofá. “Ficar em casa não está te ajudando.”

 

“Eu posso ficar mais tempo no laboratório.”

 

“Virar a noite trabalhando pra depois dormir o dia inteiro não se encaixa em uma atividade saudável, parceiro,” disse Frank. “E a gente sabe que tirar o pó do estetoscópio não vai te deixar nada feliz. Sei que você se sentia confortável naquele necrotério e... sei lá, tinha alguma coisa naqueles pobres coitados que você sente falta, mas agora não dá pra voltar.”

 

“Eu posso procurar outros legistas-chefes-“ o homem começou a falar, mas logo se interrompeu ao ver os dois se entreolharem. “O que foi?”

 

“Webster talvez tenha falado sobre você para outros chefes e inspetores,” disse Yelena, franzindo o cenho. “O que é bem pouco ético, se for me perguntar.”

 

Feliks sentiu um vazio surgir em seu estômago e olhou de um amigo para o outro, abrindo e fechando a boca enquanto procurava as palavras que queria falar.

 

“Como você sabe disso?” ele perguntou, estreitando os olhos. Não sabia se estava irritado pelo que havia acabado de descobrir ou por saber que seus amigos estavam lhe escondendo tal informação.

 

“A gente tem o nosso jeito de saber das coisas,” disse Frank, como se aquela resposta lhe explicasse tudo o que queria saber. “Agora não dá pra falar, parceiro.”

 

“Mas-“

 

“Estou lhe perguntando sobre esse trabalho porque sei que você não tem estado bem depois que saiu do necrotério.” Yelena atraiu a sua atenção outra vez. Ela o encarava com o rosto sério e os olhos azuis quase brilhando. “Quem sabe você vai voltar a trabalhar com isso um dia, talvez até mais cedo do que espera, mas agora você precisa... Ocupar o seu tempo? Com algo diferente?”

 

“Eu estou me ocupando.” Ravenwood sacudiu o artigo que tinha em mãos. “E tem os livros que você traz.”

 

“Ler sobre patologia não ajuda muito,” Frank resmungou.

 

“O que queremos dizer é que estamos preocupados com você. Frank disse que você continua sem dormir direito. Na verdade, nenhum dos dois está.” Ela estreitou os olhos para o jardineiro. “Você ainda está se culpando pela demissão e está... de luto pelo trabalho, o que dá para entender. Mas... Aquele dia em Robin Hood’s Bay, quando você nos falou sobre as estrelas? Você pareceu tão confortável e satisfeito, como quando você fala de autópsias ou lâminas.”

 

Feliks olhou do jardineiro para a bruxa, se perguntando se eles estavam de olho nele desde a sua demissão e ele não havia percebido isso. Claro, Frank lhe fazia companhia quando ele não conseguia dormir de noite por conta da insônia e era comum Feliks pegar no sono na cama do outro homem, depois de se deitar lá para ouvir Bryce falar sobre as plantas que ele estava estudando... Mas isso havia sido o suficiente para fazê-los se preocupar com eles? Não era algo tão fora do comum, a única diferença era que agora ele tinha para onde correr quando era atingido em cheio pelo medo da solidão e percepção da sua situação.

 

“Que tipo de trabalho?”

 

***

 

“Por que estamos encarando uma parede?” perguntou Frank Bryce, parado no meio do quintal frio atrás do pub para dentro do qual Yelena os havia arrastado. Pub, aliás, que ele e Feliks não haviam notado de primeira, apenas quando a bruxa os fez prestar muita atenção nas fachadas das lojas e repetir diversas vezes que, sim, havia um bar ali.

 

“Por que não espera para ver?” ela perguntou, cutucando-o com o cotovelo para que ele se aproximasse da parede e então puxando a varinha do bolso.

 

A bruxa tocou uma sequência de tijolos com a ponta da varinha e esperou, um sorriso presunçoso repuxando os seus lábios. Feliks estava quase perguntando o que eles estavam esperando quando viu os tijolos começarem a se mover, girando e se ajustando uns contra os outros até não haver mais parede, mas um arco que dava acesso à uma rua cheia de lojas por onde caminhavam bruxas e bruxos em roupas chamativas.

 

“Que infernos-“ Bryce começou a falar, mas se interrompeu e sacudiu a cabeça. “Eu não sei porquê ainda fico surpreso!”

 

“Esse é o Beco Diagonal,” Voronova explicou, atravessando o arco e caminhando rua acima. “É o centro mágico de Londres, sabe? Se alguém quer comprar ou trocar algo mágico, é muito mais fácil vir até aqui do que procurar em outro lugar. A maioria das crianças que estudam em Hogwarts compra os seus materiais escolares aqui.”

 

Era impossível não olhar ao redor fascinado. Havia lojas de todas as cores e variedades dos dois lados da rua de pedras. Um estabelecimento vendia vestes, outro tinha corujas e gatos expostos em gaiolas; uma bruxa estava colocando um cartaz anunciando uma promoção de ingredientes de poções na Apotecaria e um bruxo estava organizando uma vitrine cheia de vassouras. Havia uma pilha de caldeirões em frente a uma loja e tabelas na janela de outra, anunciando o preço para passar ‘uma temporada com dragões’ na Noruega. Havia tantas lojas e tantos produtos que era impossível prestar atenção em tudo ao mesmo tempo, por mais tentador que fosse.

 

“Tem certeza de que é uma boa ideia?” perguntou Feliks, seguindo Yelena de perto e tentando não se distrair com todo e qualquer sinal de magia que lhe chamava a atenção enquanto cruzavam o beco.

 

“Sim,” ela falou, sorrindo e apontando para uma loja. “Olhe, ali é onde comprar as varinhas!”

 

A fachada da loja era escura e a vitrine continha apenas uma almofada roxa, em cima da qual havia uma única varinha a mostra. O letreiro desgastado acima da porta dizia: “Ollivander’s: Fabricante de Varinhas de Qualidade desde 381 A.C.”.

 

“Você comprou a sua aí?” perguntou Frank.

 

“Não. Minha família conhece alguns artesões de varinhas na Rússia e a maioria das varinhas da família foram feitas por esses artesões, encomendadas e feitas com materiais pelos quais nossa magia tem afinidade, ou foram feitas por nós mesmos,” ela explicou, encolhendo os ombros. “Antes da fabricação de varinha virar uma profissão de verdade, era comum bruxos e bruxas fabricarem as suas próprias varinhas ou pelo menos pegar a madeira e núcleo para que outra pessoa o fizesse.”

 

“Do que a sua é feita?” perguntou Ravenwood, observando a varinha solitária na vitrine. O homem se perguntava como seria entrar naquela loja, que tipo de magia veria ali dentro.

 

“Bétula e cabelos de rusalka,” ela explicou. “Dado de bom grado. A magia é mais potente quando elas dão os fios por vontade própria... É como a pena do pássaro-de-fogo: se você o mata, as penas deixadas para trás queimam e viram cinzas, e se você as arrancar a força, elas vão te queimar. Se você encontra uma pena deles, a magia permanece útil. Agora, se um pássaro-de-fogo lhe dá uma pena, a magia dela vai ser muito mais poderosa.”

 

“Você já ganhou uma dessas?” perguntou Bryce. “E esse Ollivander? Como são as varinhas dele?”

 

“Não, mas meu avô certa vez ganhou uma de um pássaro que ele alimentou durante algumas semanas,” ela falou, sorrindo. “Ollivander trabalha com algumas madeiras e núcleos específicos. Se me lembro bem, os núcleos dele são fibras de coração de dragão, pena de fênix e pelo de unicórnio. Ele é muito bom, um dos melhores fabricantes do mundo, dizem.” A bruxa olhou em volta e apontou para um beco escuro entre duas lojas. “Ali é a Travessa do Tranco, que é conhecida por ser... um lugar meio suspeito.”

 

“O que você quer dizer por suspeito?”

 

“Pessoas que gostam de magia negra também gostam de passear pela Travessa, Frank,” ela falou. “Mas tem algumas coisas interessantes ali, pra ser sincera.”

 

“Vou entender isso como precisar ter cuidado do que faço perto de ti,” o jardineiro falou, estreitando os olhos, mas sorrindo de lado. “Espero não ser amaldiçoado ou azarado por ganhar uma partida de xadrez.”

 

“Não se preocupe, você está seguro.” A moça riu e apontou para outro espaço entre as lojas. “Ali é o Mercado Carkitt. De vez em quando tem gente cantando ou contando histórias ali. Oh, e aqui é o nosso banco.”

 

Yelena apontou para o maior prédio no beco, feito todo de mármore branco e parecendo meio torto para um lado. Nas grandes letras de metal sobre a entrada lia-se “Banco Gringotts” e havia dois goblins sentados ao lado da porta, os quais pareciam muito mais sérios e ranzinzas que o Sr. Coppersnout, o goblin jogador do Black Siren.

 

“Um banco mágico,” Frank murmurou, surpreso. “Eles tem um banco mágico, doutor.”

 

“Eu ficaria surpreso se eles não tivessem um banco mágico,” disse Feliks, observando as mãos dos goblins na entrada e sorrindo ao ver uma magia que parecia cair delas, como raspas grossas de metal.

 

“Ele é administrado por goblins,” Yelena explicou. “Tem bruxos que trabalham aí, mas a maioria do trabalho é dos goblins. Eles são bons com dinheiro e qualquer tipo de trabalho em metal, o ser perfeito para cuidar de um banco.” Ela apontou para duas ruas, originadas de uma bifurcação causada pelo banco. “Ali é o Beco Horizontal, onde vendem uma cerveja amanteigada deliciosa, e essa outra leva para o Mercado Carkitt também. E aqui estamos!”

 

A bruxa fez uma curva para onde estava indicando ser a entrada do mercado e sorriu enquanto apontava para uma loja cuja fachada era pintada de azul com estrelas douradas. A vitrine era cheia de ampulhetas e uma grande variedade de instrumentos de metal e vidro. Yelena avançou na direção do estabelecimento, entrando e segurando a porta aberta para os trouxas. Acima da entrada, havia uma placa com o nome do local: ‘Equipamentos Bruxos Wiseacre’s’.

 

“Oh.” Foi tudo o que Feliks conseguiu falar ao entrar.

 

O interior da loja também era pintado em azul, com as paredes e teto cobertos por estrelas douradas de diversos tamanhos e formatos. Havia telescópios e lunetas pendurados por todos os lados, algumas pequenas e delicadas, outras grandes e cheias de botões e alavancas. Em uma parede havia uma estante cheia de ampulhetas de vários tamanhos, formatos e cores; em outra, uma pilha de livros com títulos como ‘O Universo e o Além’ e ‘Os Segredos das Constelações’. Havia também globos de todo que é tipo de material, inclusive um enorme e metálico logo acima deles, coberto por desenhos de constelações e envolto por aros indicando as órbitas dos planetas ao redor da Terra.

 

“Yelena, querida!” Um homem alto com cabelos e barba escuros apareceu atrás do balcão e atravessou a loja para cumprimentar a bruxa. “Como posso lhe ajudar hoje?”

 

“Na verdade, hoje sou eu que tenho algo pra você, Art.” Voroniva esticou uma mão para alcançar Feliks, puxando-o para perto de si. “Esse é o amigo sobre o qual lhe falei.”

 

“Oh, o aborto?” o homem falou abruptamente, mas logo pareceu notar que não devia ter falado aquilo. “Desculpe, eu não... Yelena me disse que conhecia alguém que poderia trabalhar aqui. Ela disse que você não consegue fazer magia e eu disse que tudo bem, preciso de alguém para me ajudar com os clientes, não encantar as minhas coisas. Oh, sou Artemus Kotzias.”

 

Ravenwood franziu o cenho e se virou para olhar a moça. Ela parecia satisfeita consigo mesma, com um sorriso enorme no rosto e os olhos brilhantes enquanto olhava do bruxo para ele.

 

“Feliks Ravenwood. Desculpe, senhor... Mas não sei se seria a melhor opção,” o médico falou, vendo o sorriso de Yelena tremer. “Sua loja é especializada em astronomia e outros equipamentos mágicos, e eu não tenho nenhuma experiência com isso.”

 

“Yelena me disse isso, mas ela também me contou que você tem interesse por astronomia. Não é um trabalho em tempo integral e eu não preciso de um especialista. Só preciso de alguém que me ajude a organizar as coisas e atender os clientes,” ele explicou. “Posso lhe ensinar uma coisa ou outra sobre os nossos produtos, se quiser. Minha família costumava ser cheia de astrônomos antigamente, mas agora a gente só vende as coisas – as melhores no mercado, aliás -, mas ainda dominamos algumas coisas da área.”

 

Ravenwood olhou a bruxa outra vez. Ela lhe deu um sorriso pequeno e encorajador. Ele se perguntou se Yelena realmente via uma boa oportunidade nesse trabalho: ela havia feito tanto suspense, dizendo que ele iria amar e acabar se divertindo, mas... Ele ainda não sabia se era uma boa ideia. A verdade era que Feliks estava apavorado com a possibilidade de falhar naquilo. O homem não conseguia sequer imaginar como iria se sentir caso percebesse que a única coisa para a qual servia era a boa e velha patologia.

 

“Acho que vale a pena tentar, parceiro,” disse Frank, que havia permanecido em silêncio até agora.

 

“Sim, você pode ver se gosta,” o dono da loja falou, sorrindo. “Se não achar que é bom para você, eu encontro outra pessoa. Queria te dar a chance porque Yelena me falou de você e ela é boa em julgar as pessoas.”

 

O médico olhou de Yelena para Frank de novo. Eles estavam esperando que ele aceitasse e a proposta realmente era tentadora. Seria bom se distanciar um pouco da Medicina, mesmo que apenas por algumas horas durante o dia. E era um trabalho no mundo mágico, entre bruxos e bruxas, com a possibilidade de ser outra pessoa além do Dr. Ravenwood.

 

“Certo,” ele falou, vendo o sorriso de Voronova se alargar.

 

Quando se virou para Bryce, o homem se surpreendeu de vê-lo sorrindo também. Não o sorriso convencido do Tenente Bryce, mas um sorriso genuinamente satisfeito e calmo.

 

 

***

 

O resto do dia no Beco Diagonal foi cheio de dúvidas sobre o mundo bruxo e dinheiro gasto em comidas (sorvete de cerveja amanteigada, frutas cristalizadas, doces que faziam um buraco na língua das pessoas, varinhas de alcaçuz, bolos de caldeirão, sapos de chocolate... uma quantidade de açúcar que os dois trouxas não esperavam ver tão cedo desde que o racionamento havia começado). Também haviam gastado em itens mágicos um tanto inúteis, apesar de Frank insistir na utilidade de um peão que anunciava quando havia algum inimigo por perto e Feliks ter se recusado a deixar para trás uma caixinha de música que havia encontrado em uma loja de antiguidades.

 

Yelena estava extasiada. Ela os levou à Floreios & Borrões, a livraria mágica onde Frank perguntou se era aceitável comprar um livro de azarações para colocar em vizinhos enxeridos e onde ela comprou livros para eles (um manual de astronomia para iniciantes para Feliks e um guia de plantas mágicas do norte do Reino Unido para Frank), dizendo que se tratavam de presentes de Natal atrasados. Em troca, Ravenwood comprou para a bruxa um grampo de cabelo enfeitado com um lírio feito de pedra azul (o objeto não tinha nenhuma utilidade mágica, de acordo com o dono do antiquário, mas Feliks viu pequeninos fios de magia dourada se enroscando nele e teve a esperança de que aquilo soasse de uma forma bonita aos ouvidos de Yelena) e, para Bryce, uma cópia de ‘As Aventuras de Sherlock Holmes’, a qual encontrou na livraria ao lado do bar que dava entrada para o Beco Diagonal.

 

“Acho que agora vamos ter que levar ela em algum lugar trouxa,” disse Frank, ao fim do dia, enquanto descansavam na calçada do Mercado Carkitt, vendo um grupo de bruxos encenar um dos contos de Beedle, o Bardo, (alguma coisa sobre um coração peludo) com bonecos.

 

“O que?” Yelena arqueou uma sobrancelha e desviou o olhar da peça.

 

“Você com certeza conhece alguns lugares interessantes em Londres, não, doutor?” perguntou Bryce, olhando Feliks.

 

“Eu conheço lugares, mas não sei dizer se são interessantes.” O homem riu. Ele havia pensado em ir no Black Siren naquela noite, mas fazia sentido eles levarem a moça para conhecer algum lugar sem magia, para que ela pudesse ver um pouco do mundo deles também.

 

“Por favor, não me levem para nenhum lugar que eu possa me arrepender de ter ido depois,” ela murmurou, tirando a varinha do bolso e, com um aceno, fez as sacolas que carregavam desaparecer.

 

“Não se preocupe, querida Yelena. O pior que você pode ter que encarar é uma pista de dança lotada,” disse Frank, se apoiando na sua bengala para se levantar e então esticando uma mão para ajudar a bruxa.

 

“O que mulheres trouxas usam nesses... lugares?”

 

“Bom, vestidos,” Feliks respondeu e viu Voronova lhe lançar um olhar que gritava ‘não me diga’. “Mais curtos que os seus e feitos de tecidos mais leves, na maioria das vezes.” Ele apontou para a saia cinza e a capa tartã que ela usava ao redor dos ombros. “Sem capas. E o cabelo é todo... cacheado e preso.”

 

Yelena o encarou por um momento, como se o julgasse pela sua descrição terrível da moda atual. Frank, ao seu lado, tentava conter uma risada.

 

“Certo. Volto em um minuto. Preciso de um espelho.”

 

***

 

Feliks ainda era um aluno na escola médica quando se arriscou em um salão de dança pela última vez. Na época, ele estava tentando aproveitar uma noite com os colegas, mas acabou decidindo que aquele tipo de coisa realmente não lhe era muito interessante. Enquanto os outros rapazes se aglomeravam ao redor das garotas, tentando chamá-las para dançar e, quem sabe, passar algumas horas com uma delas, Ravenwood queria aproveitar a bebida e a conversa. Suas conquistas durante a escola médica foram quase inexistentes e nunca feitas em lugares como aqueles. Fora uma surpresa para ele se divertir tanto no Black Siren: os momentos no bar não pareciam uma tortura lenta, mas sim horas divertidas e confortáveis com amigos e conhecidos.

 

O salão escolhido naquela noite, uma sugestão de algum cirurgião que certa vez tentara convencer Feliks de acompanhar um grupo de médicos em uma festa, tinha muitos estudantes, mas a maioria dos clientes eram jovens de uniformes militares. As garotas pareciam fascinadas por terem tal companhia e os soldados, felizes por aproveitar uma noite de folga com moças bonitas. Era curioso ver os estudantes (a maioria com rostos quase infantis, irritados com a presença dos militares) serem deixados de lado, mesmo quando eles tentavam impressionar as garotas falando de seus estudos e trabalhos.

 

“Você devia ter trazido o uniforme,” disse Feliks, olhando Frank, que observava os casais dançando.

 

“Acho que não preciso dele hoje.”

 

“Moças gostam de uniformes.” Ravenwood sorriu. “Mas acho que nem todas ficam impressionadas com homens do exército, hm?”

 

Frank lhe deu uma cotovelada e Yelena, que estava ao lado do médico, suspirou e riu. Antes de deixarem o beco, a bruxa havia transfigurado as suas roupas, fazendo a sua capa tartã virar um vestido curto com um cinto preto (um resquício da sua blusa preta), muito parecido com as roupas das garotas do salão de dança. A saia cinza também havia sido transfigurada e agora era um casaco, o qual Yelena já havia tirado por conta do calor dentro do local.

 

“Nossas festas não eram tão grandes,” disse Frank, estalando a língua, indignado. “Só que a nossa base era em Catterick.”

 

“Você era um desses homens, da?” perguntou Yelena, indicando um grupo de soldados conversando e rindo.

 

“Sim.” O homem encolheu os ombros. “É tudo diversão até você levar um tiro.”

 

Um jovem de cabelos loiros e sorriso brilhante se desvencilhou do grupo de soldados e se aproximou deles, segurando um copo de bebida, indo na direção de Yelena. O uniforme estava extremamente alinhado em seu corpo e sua postura orgulhosa não deixava dúvida de que ele se sentia superior a qualquer outro homem que não estivesse usando um uniforme como o seu.

 

“Olá, boneca,” o jovem falou com um sotaque claramente americano. “O que me diz de uma dança? Acho que ainda não a vi por aqui, logo, acho que é meu dever lhe oferecer uma primeira dança de verdade.” Ele riu, dando um tapinha leve na própria testa. “Quanta grosseria da minha parte! Soldado John Truscoat ao seu dispor.”

 

“Yelena Fomitchna Voronova,” a bruxa respondeu, oferecendo um sorriso frio ao ver o sorriso do outro tremer por um segundo. “Eu adoraria aceitar, Sr. Truscoat, mas eu estou acompanhada do Tenente Bryce aqui, ponimáiesh?” Ela cutucou Frank no ombro, antes de enroscar um braço no dele. “Ele é meu noivo.”

 

“Oh. Tenente.” John Truscoat bateu continência para o outro homem, antes de desviar o olhar para Feliks. “E o outro senhor...?”

 

“Meu irmão, Feliks.”

 

“Vocês não são daqui, não é mesmo, senhorita?” o jovem perguntou, olhando rapidamente para Frank.

 

“Somos russos,” ela explicou. “Bom, Frank não. Ele é inglês mesmo.”

 

“Não somos comunistas, se é disso que está com medo,” disse Feliks. “Apesar de que eles são seus aliados agora.”

 

“O que? Não, não, eu não-“ Truscoat começou a falar.

 

“Foi um prazer conhecê-lo, Soldado Truscoat.” O jardineiro sorriu de forma educada, afastando-se e levando Yelena e Feliks com ele. “Esqueça o que eu disse. O pior que você pode ter que encarar são os yankees. Eu tinha esquecido deles.”

 

“Não gosta de americanos?” perguntou Ravenwood.

 

“Só acho que eles podem tentar parar de exibir o dinheiro que têm e agir como se estivessem nos salvando com os seus chicletes e Coca-Cola.”

 

“Coca-Cola?” Yelena franziu o cenho.

 

“Parece cerveja amanteigada,” Feliks explicou.

 

“Oh...” Voronova olhou em volta, observando os casais dançarem e então puxando Frank pelo braço. “Então, vai dançar comigo ou não, Tenente Bryce?”

 

“Ah, claro.” O homem entregou a bengala para Feliks, que mordeu o próprio lábio inferior para não rir de como o rosto do outro ficou vermelho. “Segura pra mim, parceiro?”

 

“Claro. Vão lá e se divirtam, crianças.” O médico riu e foi procurar por um lugar para ficar. Acabou por se encostar contra o bar para observar a pista.

 

Não era difícil encontrá-los entre os outros dançarinos, já que a magia de Yelena brilhava não apenas ao redor de suas mãos, mas ao redor dela e de Frank como um todo. Feliks suspirou e se permitiu relaxar, observando as pessoas. De vez em quando, ele encontrava um soldado britânico e se perguntava o que teria acontecido caso Bryce não tivesse sido ferido... Ele estaria em seu belo uniforme naquele salão? Ou quem sabe em Catterick? Ele teria sobrevivido até o final da guerra ou outra bala teria tirado a sua vida? Quem Little Hangleton culparia pela morte dos Riddle se o maior suspeito deles estivesse no continente?

 

De uma coisa ele estava certo: se aquele projétil específico não tivesse encontrado o caminho até a perna de Frank Bryce, o homem não estaria em um salão cheio de garotas e militares naquela noite, dançando com a única bruxa entre todos eles.


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Notas finais do capítulo

1) Ponimáiesh: "entende", em russo (pronúncia: pa-ni-MA-esh);

2) Os pontos do Beco Diagonal foram inspirados pelos locais em Orlando, na Universal, do Beco. No Carkitt Market, realmente tem apresentações de bonecos dos contos do Beedle (eu chorava toda vez) e números musicais da Celestina Warbeck, tem sorvete de cerveja amanteigada e tem a fachada de uma agência de viagem bruxa e a Wiseacre's sempre será a minha loja preferida. Quando vi ela a primeira vez lá, em 2014, a primeira pessoa que me veio em mente foi o menino Feliks;

3) Hoje eu vejo esse capítulo e fico "como assim, feliks, como você vai dar conta de trabalhar no laboratório e na loja!?" porém acho que ele não perde tanto tempo de deslocamento quanto eu e devia ter menos volume de trabalho que o nosso laboratório, então... sem contar que a patologia naquela época era mais simples, em questão de não se ter tantas especificidades em relação a imuno-histoquímica, estadiamento tumoral, etc etc.


Queria pedir desculpas pela demora para postar. Confesso que a própria residência me desmotivou a escrever qualquer coisa, além da falta de tempo. Junte nisso a minha falta de vontade de /parar/ de escrever esses personagens um dia e eu me enrolo todo. De qualquer jeito, espero que tenham gostado e, por favor, digam o que acharam (: