Chão e Tela – Um Amor Impossível escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Por incrível que pareça, esta história é baseada em fatos reais. É uma tragédia da modernidade que acomete a muitos de nós.

Laura, a garota mencionada, sou eu. A culpa e o pesar me assolam, e pensei que talvez, registrando esta história, eu teria algum alívio. Recomendo ler já com uma caixa de lenços ao lado enquanto ouve "Mad World" do Gary Jules para entrar mais no clima.



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Eu era um iPod Touch como qualquer outro. Caro. Frágil. Viciante.

Quando Laura me ganhou, ela ficou muito feliz. Por muito tempo havia me desejado. Ao longo de três anos, colocou 1.030 músicas e quase 8.000 fotos em mim. Ela me usava para conversar, ler, escrever, jogar e checar as redes sociais. Como vocês podem imaginar, logo eu estava com a bateria viciada. Durava apenas algumas horas antes de morrer. Vida de iPod não é fácil e costuma ser curta. Mas minha tela, pelo menos… Ela estava intacta. Era um caso extraordinário. Com apenas uma pequena rachadura perto do botão, daquela vez em que Laura sentou no chão de concreto do pátio da escola comigo no bolso traseiro, ela estava quase perfeita.

Então eu percebi… Minha tela andava flertando muito com o chão do quarto, lançando-lhe olhares discretos e apaixonados enquanto Laura caminhava comigo na mão. Aquele não era um chão de tacos de madeira ou carpete… Não. Era de azulejos de cerâmica, áspero e duro. Qualquer batidinha naquele maldito chão seria o fim.

— Tela, minha filha, por que fica olhando tanto para o chão?! - perguntei, sem conseguir conter minha irritação.

— É que… ele é bonito. Tão limpinho. Tão diferente dos outros. É dividido em quadrados e tem um padrão tão lindo… E eu acho que ele retribui meus olhares.

Dei uma boa examinada no piso, mas não consegui entender o que Donatella (esse é o nome da tela) via nele. Ele era frio e inexpressivo. Nem era tão bonito. Pelo amor da Apple, quem vê beleza num chão?! Ela só poderia estar louca.

— Bem, acho melhor você parar. Ele nunca vai corresponder. Estamos muito longe, em mundos diferentes. Por que não passa mais tempo com aquele lenço de papel, o Samuel? Já notei a forma como ele te alisa.

— Mas eu não gosto dele! Eu gosto do chão!

Suspirei. Ter uma tela adolescente é muito difícil.

— Entendo. Mas fico decepcionado. Não te conservei por tão tempo para você me dizer que quer dar uns beijos no chão!

— Você é meu pai, não meu dono!

— Enquanto continuarmos juntos, não posso deixar você fazer o que bem entende.

Com isso, Donatella começou a chorar baixinho e eu achei melhor ficar em silêncio.

***

Donatella andava muito quieta. Muito contemplativa. Tive medo de que ela estivesse ficando com a sensibilidade diminuída ou algo assim, portanto decidi ter uma conversa atenciosa com ela.

— Telinha querida, como você está?

— Mais ou menos. Como você não me deixa mais olhar para o chão, fico olhando para a parede. Ela é bonita também.

— Melhor assim. Acho que a parede vai lhe causar menos mal.

Houve, então, uma longa pausa.

— Sabe, Laura estava mexendo em mim na aula hoje e eu ouvi um pouco da matéria…

— E qual era?

— Gravidade. - revelou ela em tom sinistro. - Sabia que ela atrai qualquer coisa para baixo? Qualquer coisa mesmo. Basta não ter nada segurando.

— Não estou gostando desse assunto…

— Tudo bem, pai. Foi você que resolveu falar comigo.

— Pare de pensar nisso. O chão não te quer. Vários pés passam por ele todo dia.

— Ok… - disse ela com a voz um pouco embargada.

— Vá fazer alguma coisa. Tocar uma música alegre, sei lá.

— Eu só quero dormir…

Deixei que ela se apagasse. Estava ainda mais preocupado com Donatella, mas, mesmo assim, jamais achei que ela fosse ser capaz de fazer aquilo… POR QUE, STEVE JOBS, POR QUÊ?!

Enfim… Era uma manhã de segunda-feira. Laura me deixou carregando em uma tomada perto da cama. Como de costume, às 6:30 eu soei o despertador para acordá-la. A garota ergueu a mão para me pegar e selecionar a opção de soneca… e… senti algo me puxando para baixo. Donatella havia escapulido – e estava me levando junto. Laura mal teve tempo de reagir. Caímos de cara no chão, naquele maldito chão. Só ouvi o som de algo quebrando, junto a um suspiro de prazer.

— Donatella… - sussurrei.

— Finalmente juntos, Abraão… - disse ela para o chão, que não parecia se importar.

— Donatella. Você está… RACHADA!

À essa altura, Laura já havia nos pegado e encarava a tela, perplexa de tanto horror.

— Nem doeu. Valeu à pena. - afirmou minha insana filha, recuperando o fôlego.

Eu queria matar aquele chão. Mas não tinha muita chance contra ele. Então apenas lamentei. Minha telinha… Tão linda… Tão virginal… Marcada para sempre.

Porém, é como dizem os Nokias: nada é tão ruim que não possa piorar. Donatella atentaria mais uma vez contra si mesma. Logo no dia seguinte.

Laura já havia se acostumado com a rachadura e continuava nos usando com a mesma frequência. Ela nos deixou em cima da cama enquanto ia ao banheiro. Eu estava perdido em pensamentos, quando percebi que minha filha falava sozinha:

— Eu não posso desistir do nosso amor…

— Telinha…? Do que você está falando?

— Desculpe, pai. Se apenas você tivesse permitido…

Ela começou a deslizar pelo lençol.

— Eu não permiti porque isso vai te matar!

— Não me importo em morrer… Se é o que preciso fazer para que fiquemos juntos, não me importo…

Antes que eu pudesse gritar “não!”, já estávamos caindo. Torci para que o impacto fosse na parte metálica, mesmo que me machucasse mais. Mas foi na tela. Novamente, o som de algo se estilhaçando. Outro suspiro deleitoso vindo de Donatella. Era impossível que aquilo não estivesse doendo.

— Eu te amo, Abraão…

Finalmente, o chão se pronunciou:

— Pare com isso, sua maluca! Eu já falei! Estou noivo do ventilador! EU SOU GAY!

— Não precisa mais mentir, meu amor, meu pai já sabe de tudo…

— Não quero nada com você!

Eu apenas ouvia, estupefato. Porém, nesse momento, um palavrão bem alto ressoou. Laura tinha voltado do banheiro. Ela me pegou com cuidado e olhou a tela, que estava ainda mais rachada do que antes. Começou a tremer de raiva.

— De novo?! Menos de um dia depois?! Quer saber…?!

Então ela nos atirou longe. Atingimos a parede com um estrondo e depois voltamos a cair no chão. Caquinhos se espalhavam. O cristal líquido vazava. Donatella estava morta. Tudo por causa de um amor incorrespondido que ela mesma havia inventado! Durante todo aquele tempo, ela não precisava de disciplina, e sim, de tratamento psiquiátrico.

— Cara… Foi mal… Eu não podia fazer nada… - lamentou Abraão em voz baixa. - Você está bem, senhor?!

Não… Minha tela era parte essencial de mim. Eu não poderia viver sem ela. Tudo ficou escuro enquanto minha bateria destruída emitia uma última faísca.


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Notas finais do capítulo

As únicas coisas que não aconteceram na vida real foram os objetos inanimados falarem e eu atirar o iPod longe (mas bem que eu tive vontade.)

E aí, gostaram do plot twist? A quem possa interessar, a Donatella tinha um transtorno mental específico chamado erotomania.



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