Engaiolada escrita por Bibelo


Capítulo 1
Capítulo único - Engaiolada




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Capítulo único – Engaiolada

[...]

“Você só sabe fazer as coisas erradas. Só mente e engana! Você é uma vadia!”

“Eu precisaria sair de casa pra ser uma vadia, mas estou sempre presa aqui nessa maldita casa.”

Um tapa. E em seguida lágrimas de ódio. Essa tem sido minha vida atualmente. Engaiolada e aprisionada dentro de minha própria casa, sem ter para onde ir. Às vezes sentia vontade de morrer.

“Que notas são essas? Não permito filha burra dentro da minha casa. Não quer ser alguém na vida? Não vou sustentar filha vagabunda”.

Algumas palavras são como adagas, elas rasgam sua pele enquanto você sangra, pouco a pouco, pela ferida aberta. Não uma ou duas, mas dezenas. Centenas. Profundos cortes na pele, que mesmo quando se fecham as marcas continuam lá.

Desde pequena eu tinha sonhos. Desejava ser cantora, dançarina, vestia as roupas da minha mãe e saia pulando pelos móveis da minha pequena casa de dois cômodos. Minha mãe ria toda vez quando eu tropeçava nas roupas largas que varriam o chão.

Na época não havia câmeras à disposição de todos, então são imagens gravadas na memória. Me lembro de brincar assim quase todos os dias. Queria crescer logo.

Nessa época eu não tinha ninguém para brincar. Meu irmão de criação havia saído do país, e eu estava sozinha. Não ia ao pré e nem mesmo podia sair na rua brincar. As ruas são perigosas demais para se andar nelas.

Quando se é criança não percebe, mas depois que cresce as coisas começam a clarear. Não podia sair de casa, não podia brincar com as crianças da rua, não podia sair pelo portão da minha própria casa.

Aprisionada.

Nunca aprendi a andar de bicicleta. Não podia brincar na rua. O quintal era irregular, eu bateria direto no portão de casa e me machucaria. Não pode se machucar, crianças não podem cair. Você não pode se expor.

Sempre que caía apanhava. Depois de um tempo aprendi a não caí mais.

“Ir na casa de amigos? Por que? Não conheço os pais, eles podem ser estupradores!”

Era engraçado como as desculpas eram tão abrangentes. Nunca eram focadas em algum assunto certo. Sempre respostas genéricas. Eu nunca recebia um motivo plausível para não sair de casa. Eram sempre as mesmas coisas.

Não conhecia os pais, não conhecia a criança. Estupro, drogas, mundo. “Não precisa disso, você tem tudo que precisa dentro de casa, pra que sair?”

Murada.

Uma vez pedi para ir à casa de uma amiga brincar de boneca. Foram quase três anos pedindo para poder ir, e só podia se minha mãe fosse junto. Levou mais um ano para me deixar ir no carro da mãe dela.  

Motoristas loucos, bêbados. Você vai morrer. Muito boba, ignorante, burra, inocente, mente fraca.

Facilmente enganável.

Frágil.

Bonecas de porcelana nunca foram minhas prediletas. Sentia como se elas fossem quebrar a qualquer toque. E sempre quebravam. Às vezes os braços, ou as pernas. Uma vez ela quebrou ao meio, acho que havia desistido de viver, ela caiu da prateleira.

Festas de aniversários? Por quê? Não precisa disso, não precisa sair, não precisa ir em aniversários.

Não precisa de amigos.

Amigos não são confiáveis, vão te magoar, vão te machucar. Você vai quebrar.

Delicada.

Nunca fui em uma festa de aniversário quando nova. Nunca me deixaram ir, a menos que fosse da família, caso contrário não podia ir. Era perigoso demais.

“Me ligue de cinco em cinco minutos. Se não o fizer nunca mais sai de casa!”

Já nunca saía. O que era mais uma ameaça? Eu ligava, meus amigos zombavam. Eu explicava, eles me olhavam estranho. Tinha algo errado, mas eu nunca vi. Era dependente demais dos meus pais.

Inútil.

Não entendia as conversas, as piadas. Não tinha internet em casa. Não sabia das fofocas, televisão só se fosse desenhos de criança, mas sem teor diabólico.

Nunca vi Pokemón quando pequena. Dragon Ball, Cavaleiro dos Zodíacos. Lavagem cerebral. Destroem a sua mente.

Manipulada.

Quando finalmente resolveram colocar uma internet na casa, todos os sites eram monitorados. À noite o histórico era lido para ver o que eu pesquisava. Isso durou por anos, talvez até meus quatorze.

 Na época eu era sozinha. Tinha medo do que meus pais falariam sobre mim.

Eu mentia.

Eu minto.

Eu escondo coisas.

Eles me pegavam na mentira.

Eu apanhava.

E o ciclo era o mesmo. Sempre que eu fazia algo que meu pai não aprovava eu omitia, mas era ingênua. Ele sempre pegava. E eu ia pro coro.

Notas? Nunca menor que sete. Se tivesse, apanhava ou ficava de castigo.

Uma vez falsifiquei a assinatura da minha mãe. Me pegaram.

Tomei uma surra.

Andei com calça por uma semana. As marcas na perna eram grossas e feias. Doíam. Minha boca também ardia, a pimenta era forte. Muito forte.

Toda surra vem com diálogos, um mais doloroso que o outro.

“Puta. Vadia. Vagabunda. Inútil. Vergonha da família”.

Todas ficaram cravadas no meu peito. Sangram até hoje. Não vão se curar nunca. Meu coração escureceu.

Depois disso vinham as desculpas, pelos tapas e pelas palavras.

“Desculpe, mas você sabe que eu estava certo e que era para o seu bem. Tinha que aprender”.

Na hora da raiva só saem verdades, não há motivos para desculpas.

Eu passei a acreditar nessas mentiras.

Eu era puta. Eu era uma vadia. Eu era uma vagabunda, uma inútil. Era a vergonha da família. As pessoas riam de mim.

“Se eu pudesse eu te trancaria em casa e nunca mais te deixaria sair”.

Essa frase foi cômica, porque dias depois ele ficou bravo quando uma de minhas tias insinuou que eu era a Rapunzel a espera do príncipe para me resgatar. Mas o príncipe não veio. Ainda estou presa.

A partir desse momento, dessa frase, que comecei a pensar que algo estava errado. Eu era o que? Uma prisioneira?

Encarcerada?

“Você esta destruindo nosso casamento. Se eu e sua mãe nos separarmos, a culpa será toda sua”.

Eu já era grande quando ouvi isso. Quinze anos, talvez. Doeu. Ainda dói. Nesse ano eu pensei em suicídio. Pensei que deveria sumir, talvez eles não terminassem. Talvez continuassem se amando.

Tinha escrito uma carta.

Mas desisti da ideia. A rasguei e joguei fora.

Nunca mais pensei em me matar.

Os anos se passaram e as coisas pioraram. Eu queria sair, queria viver, mas não podia. Não tinha permissão para sair.

Engaiolada.

Conseguia ver o céu, os pássaros voando me chamando, respirava o ar puro, mas minhas asas não se abriam. As grades eram estreitas, as correntes apertadas. Estava morrendo, pouco a pouco.

Não pude seguir meu sonho. “Médica? Pra que estudar anos para isso? Precisa de dinheiro, de um trabalho que te sustente, não vou criar filha vagabunda.”

Tive uma tentativa. Não alcancei a cota. Entrei em um curso qualquer um ano depois. Até hoje me joga na cara que perdi um ano. Desperdicei um ano. Sou um fracasso.

Faculdade? Paga. As outras são longe demais de casa, e não posso sair, não posso morar no campus. Vou me drogar, beber, engravidar. Não sou confiável.

Não sou confiável.

Não quis mais aniversários. Comemorar mais um ano próximo da morte? Pra que? Ridículo.

Eles me xingaram por isso. “Está com algum problema, nos diga. Você nos odeia? Eu te dei de tudo, você não precisa de nada. Se não gosta da sua vida quer que eu termine ela pra você?”

“Eu te pus no mundo, eu te tiro!”

“Se nos odeia tanto então diga que vamos embora”

“Quer ir morar sozinha? Não sabe nem pegar um ônibus”.

Nunca pude ir para a escola sozinha. Não sei andar de transporte público. Não sei me virar sem meus pais. Sou dependente, sou inútil.

Quero ser livre.

Quero respirar.

Quero gritar.

Quero ir embora.

As malas estavam prontas, o dinheiro? Não tinha. Precisava de um plano, precisava de um lugar para morar.

Precisava ir embora. Viver minha vida.

“Viva a sua vida, ela é curta demais para ser vivida pelos outros”.

“Eu decido a sua vida, você não sabe fazer isso”.

A inconstância doía. Um fio de esperança num emaranhado de desilusão. Tudo em vão.

Num sussurro. Um grito de desespero. Lágrimas salgadas descendo pelo rosto. Uma ultima olhada para trás. Os portões fechados, o bilhete colado na geladeira.

Celular desligado.

E um ultimo desejo.

Liberdade.

A gaiola estava aberta.

Eu voei.

E nunca mais olhei para trás.


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Notas finais do capítulo

Depressão: é uma doença que se caracteriza por mudanças no humor e pela perda de prazer em atividades cotidianas, que antes eram prazeirosas ou motivadoras.

Algumas pessoas são quebradas por dentro, mas ninguém nunca soube.

As pessoas dizem que quem tem depressão quer atenção, quer que te notem, mas é o contrário. Querem sumir, tanto que muitas vezes as pessoas não sabem a menos que elas lhes contem.

Se fosse somente atenção não teriam suicidas.

O que vocês leram são relatos, algumas partes ficção que somente uma amiga minha sabe onde eu aumentei ou não.

Mas o que quer que vocês tenham sentido, me digam. Tem algo a me falar? Sou toda ouvidos. Não gostaram do que leram? Sinto muito. Te desejo tudo de bom nesse caso.
Se identificou? Me diga. Vamos conversar.

Ninguém nunca soube que ela estava quebrada.
ninguém nunca se importou.

Então ela sumiu.



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