Aquela frase fez eu e Imma simplesmente ficarmos parados, olhando aquela cena. Nisso, não demorou muito até nós dois sermos descobertos.

— O que fazem aqui? — rosnou Utae. — Está tarde. Deveriam estar dormindo.

— Acontece que não somos bebês — respondi malcriada.

— Eles estavam preocupados com você, Utae. Acharam que eu tinha te sequestrado.

Arqueei uma sobrancelha e meu primeiro pensamento foi: ah, ótimo, agora vão me dizer que ela também consegue ler mentes?, pensei e quase revirei os olhos.

— Por que diabos ela ia me sequestrar? — Utae estava exasperado.

Toda aquela falta de paciência dele me tirou do sério.

— Porque a princesinha aqui chegou toda bonitinha de sorriso meigo dando em cima de você e como se não bastasse, enfeitiçou todos da cabana também. Não sei se você sente, mas ela emana tanto poder quanto um Elemental, mas não possui colar nenhum, o que me levou a crer que ela só poderia ser uma ameaça já que no corpo dela não tem nenhuma indicação de que ela é filha de Zeus. O que mais me deixa brava nessa história é que ainda sou mal recebida por um idiota que só está bravinho porque atrapalhei uma conversa idiota que estava tendo com sua irmã. Então, dá próxima vez que for se arriscar, trate de não me matar do coração porque a retardada aqui já conseguiu te tirar de uma prisão com um leão gigante de guarda. Agora será que dá pra ser um pouco mais agradecido ou eu vou ser obrigada a aguentar suas reclamações infantis só por causa de uma conversa boba? — quando terminei de falar tudo aquilo, estava sem fôlego.

Acho que tanto Utae quanto Imma nunca tinham me visto tão brava. Cravei minha cimitarra em meio a neve e cruzei os braços, sentindo o rosto ferver por causa de todo aquele discurso. Jogar tudo pra fora não tinha me deixado com menos raiva.

— Kary, desculpe pelo mal-entendido — Alexia parecia realmente sentida. — Não sou ameaça pra nenhum de vocês. Pelo contrário, estou aqui pra ajudar. — O sorriso doce voltou aos seus lábios.

— Você disse que é uma deusa, certo? — Imma retomou o assunto anterior enquanto abraçava meu ombro.

Era por esse motivo que ele tinha se tornado meu melhor amigo. Alexia confirmou com a cabeça.

— E por que está aqui? — Utae perguntou, mas eu percebi que ficou incomodado com todas as verdades que eu tinha jogado na sua cara.

— Para ajudar vocês, como eu já disse. — Um suspiro. — Ainda me pergunto porque você não consegue entender algo tão simples, Utae.

— Não existe nenhuma deusa Alexia na mitologia grega — argumentei.

— É porque eu fui deixada de lado — Alexia não pareceu feliz ao dizer aquilo. — Os estudiosos foram quase instintos e aqueles que ainda existem, sabem quem eu sou. Faço parte da Quarta Geração Divina. Nunca ouviram falar dela?

Nós três negamos com a cabeça.

— Só existiu até a terceira que é a geração atual de Zeus, Hera, Poseidon, Deméter... — digo. — E mesmo se existisse outra geração divina, não faria diferença. Todas são iguais.

— Você pode ser muito inteligente, filha de Quione, mas não. Não são iguais. A primeira se resumia apenas aos deuses primordiais. Eles foram os criadores do universo em que vivemos. São os meus bisavós. — Ela abriu um sorriso tímido. — Depois vieram os Titãs, onde surgiu Cronos, meu avô. Por fim veio a terceira geração. A mais moderna até então, onde surgiram meus pais. Em cada geração se era controlado algo diferente. As duas primeiras os deuses surgiam para coisas “materiais” já que não existiam seres humanos. Quando chegou a terceira, os seres humanos vieram junto e com eles, os deuses passaram a ter mais flexibilidade, porque, você sabe, começaram a surgir os semideuses.

— Isso não explica a sua existência — contra-argumentei.

— Sou a chamada “anomalia” entre os deuses. Só que não a única. Vocês sabem que não tem mais como surgir deuses diferentes porque não há mais no que eles possam se transformar porque no fim, acabam sendo a mesma coisa. Nisso surgiu uma anomalia estranha em que ao invés de dois deuses se juntarem pra formar um diferente, seus poderes acabaram se fundindo pra tornar um só. E assim deu início à Quarta Geração Divina. A Geração dos Guardiões.

Toda aquela história só deu um nó no meu cérebro.

— Tudo bem, essa é a maior bobagem que Gilbert já criou. — Balancei a cabeça. Havia recebido muita informação.

— Que viagem, cara — comentou Imma. — Aposto que ele fumou antes de pensar nisso.

Utae nada disse. Parecia sério e pela sua expressão, percebi que ele tentava achar alguma coerência nas palavras de Alexia.

— Existe uma explicação mais fácil que isso: eles são semideuses, só que deuses, entendeu? — tentei explicar pra Utae. —  Semideus é uma junção de humano e deus que fundem ambos os poderes e o guardião é uma junção de deus e deus que fundem ambos os poderes também.

— Não me chame de semideusa! — exclamou Alexia, parecendo ofendida. — Existe uma clara diferença entre guardião e semideus. Até porque, a era dos guardiões existiu antes mesmo dos semideuses!

— Então por que ninguém nunca escreveu sobre essa parte da história? — Não, eu não estava nem um pouco convencida daquilo.

— Os seres humanos vieram da Primeira Era dos Guardiões. Foram seres criados semelhantes aos doze donos para se reproduzirem na Terra. Eles foram chamados de Guardiões Primordiais e até possuíam poderes semelhantes aos doze deuses do Olimpo. Os deuses estavam cansados de si mesmos e queriam uma diversidade de deuses, só que não queriam que eles tivessem poderes para serem fáceis de manipular. Embora de começo tudo começou a dar certo, os guardiões se rebelaram ao perceberem que os deuses, a cada nova geração que nascia na Terra, iam tirando seus poderes e transformando-os em seres normais. Isso gerou uma guerra terrível que resultou na apreensão dos guardiões na Terra pra sempre e aos poucos os seres humanos foram surgindo da mistificação entre os guardiões primordiais.

Se meu cérebro já estava com um nó antes, agora havia ficado pior.

— Então você está me dizendo que todos os seres humanos têm poderes? — Utae questionou depois de um tempo.

— Pode parecer estranho, mas sim. Só que os deuses trancafiaram esse poder dentro de cada ser humano pra não gerar mais guerras de revolta. É por isso que os semideuses são destaques nas histórias, filmes e livros. Porque dentro de si, eles não têm os poderes trancafiados. São livres para ser o que quiserem.

— E tem algum jeito de destrancar o poder? — Até Imma parecia entender a lógica da coisa agora.

— Só um guardião humano destrancado é capaz de fazer isso — respondeu Alexia.

— Mas se não existe um guardião destrancado, então isso torna todos os seres humanos... normais? — disse Utae.

Alexia confirmou com a cabeça.

— Será que eu sou a única que não estou entendendo nada? — digo impaciente, bufando. — Se você é uma guardiã, deusa, sei lá, então quero que prove — havia desafio no meu tom de voz.

Ouvi Utae e Imma prendendo a respiração.

— Provar? Pois bem, como quer que eu prove? — sua voz estava neutra.

Falei a primeira coisa que me veio na cabeça:

— Traga Kameel de volta.

O pedido fez o clima ficar pesado e falar o nome do meu ex doeu. Por um momento eu até tinha esquecido o quanto sentia saudade dele. A expressão da deusa se tornou doce como se soubesse o que eu estava sentindo naquela hora.

— Eu sei o quanto você sente falta dele, Kary, mas se tem uma coisa que os deuses não podem interferir é na morte. Nem o próprio Hades pode trazer alguém de volta.

— Não é justo! — gritei com raiva, sentindo lágrimas encherem meus olhos. — Se é assim tão poderosa como diz, devia ter um jeito! Por que levaram ele de mim então? Se vocês são tão justos na morte de alguém, por que não podem ser em vida também?

— Kary, não é assim — sua voz estava doce. — Você não sabe o quanto é complicado para um deus...

Alexia ia tocar meu ombro, mas eu a afastei com um tapa.

— É como as histórias dizem, não é? Não importa de que droga de geração vocês fazem parte, todos são iguais. Todos têm um ego maior que a cara e só se importam com os seres humanos quando vocês têm interesse — todas as palavras saíram gritadas.

— Kary, se acalme por favor. — Senti mãos em meus ombros e logo descobri que eram as de Imma.

Só que eu estava irritada demais pra compaixão dele.

— Eu não to nem aí pra sua historinha de ser guardião, deusa, ou qualquer ****** que você disse que era. Só queria ele de volta, mas não é do seu interesse, né? Ele morto ou vivo. Que diferença faz? É uma deusa, tem tudo o que quer e vive pra sempre. O que são os pedidos dos mortais comparados à sua vida boa?

Me soltei de Imma com brutalidade.

— Não me peça pra ficar calma! — exclamei para ele. — Eu não to calma e não vou ficar enquanto ela não fizer alguma coisa!

Eu encarava Alexia agora, com os punhos cerrados.

— Kary, eu juro que se pudesse, faria alguma coisa para...

— Você pode! — vociferei.

Minha respiração estava acelerada e lágrimas quentes corriam por minhas bochechas. Eu estava alterada, triste, com raiva e saudade. O rosto de Alexia parecia inalterado com meus ataques. Ela continuava a manter aquele sorriso triste e doce como se entendesse.

Não aguentei, dei um soco na bochecha divina.

Tudo o que houve a seguir foi Imma me segurando pelos braços enquanto Utae ia socorrer sua irmãzinha. Aquilo só me deixou mais alterada e só então percebi que uma tempestade de neve se aproximava pelas rajadas de vento que começaram a aparecer. Voltei a me soltar com brutalidade de Imma e foi aí que a neve começou a cair. Alguns fios de cabelo ricocheteavam no meu rosto.

— Vocês nunca podem — minha voz saiu mais falhada do que eu pretendia. — Vocês nunca ouvem. E nunca vão ouvir.

Então dei as costas a toda aquela cena, com uma vontade de ficar sozinha e chorar porque a cena se recriava na minha cabeça novamente. O sangue escorrendo pela minha bochecha e me obrigando a engolir meu erro. Aquilo tinha um gosto agradavelmente amargo, eu estava correndo agora. Pra qualquer lugar. Pra longe. Correndo direto pra onde doía.

Imma me ajuda a levantar e diz “você precisa ser forte agora”. Eu engulo suas palavras e me apoio nelas porque não há nada mais em que me apoiar. Só que a ferida se abre, eu paro e penso. Tento entender porque não fui eu.

Os pensamentos corriam na minha mente enquanto eu também corria sem rumo. Depois de um tempo percebi que estava na floresta e isso não me fez diminuir o ritmo. Era noite e a tempestade de neve só ficava pior, mas eu não queria parar. Aquilo não me fazia parar, apenas ter mais vontade de continuar.

Um poder envolveu minhas entranhas, só que não era o tipo de poder que eu estava acostumada. Era algo diferente, que eu nunca havia sentido antes, mas ao mesmo tempo me era familiar. Num segundo minha velocidade dobrou de tamanho e levei um tempo para perceber que não usava duas pernas e sim quatro patas. Minha audição ficou tão aguçada quanto meu olfato. A tempestade de neve não era um problema agora.

Eu sabia que continuaria correndo até achar aquilo que procurava.

Doce, doce vingança. Eu a terei em minhas mãos. E vou fazer Xander se arrepender do dia em que matou aquele que amei.