The Last of Us escrita por Amélia


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Minha primeira one-shot! Nem sei o que dizer. Primeiro porque achei que nunca conseguiria escrever uma shot (nunca pensei que conseguira escrever um enredo fechado)... E aqui estou eu! Segundo porque a ideia surgiu do nada e em pouco tempo eu já tinha tudo pronto.
Quero dedicá-la à minha irmã mais velha, que fez aniversário ontem! Ela me dá muito apoio e é muito especial pra mim. Então essa one é meio que um presente pra ela.
História betada por Agatha, que também teve que escutar todas as minhas loucuras e embarcar nelas. Aggie, muito obrigada! Além disso, ela me ajudou bastante com o enredo me dando sugestões e avaliando diversas coisas.
Essa one-shot acabou tomando proporções muito grandes. Parecia ser algo muito simples, até que eu encontrei algumas informações sobre as edições futuras da HQ de The Walking Dead e vi que elas se encaixavam muito no enredo. Mas não foi só isso, à medida que eu fui escrevendo a história ficava mais complexa e pesada. Talvez esta seja uma das coisas mais obscuras que eu já escrevi.
Antes de começar, eu gostaria de lembrar mais uma vez que temos spoilers das HQs. São sutis, mas não me responsabilizo por nada.
Boa leitura!



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─ Hey, Jude!

Ele a chamou do andar de baixo da casa, e logo em seguida Judith pode ouvir a risada tão potente quanto um trovão. Papa sempre fora um homem de medidas exageradas aos olhos da menina: comia para quase três pessoas, roncava tão alto quanto um urso e possuía sentimentos muito conflitantes. Por mais difícil que fosse conviver com uma pessoa de humor tão inconstante, Grimes já estava acostumada com ele, pois, afinal, era a única pessoa com quem possuía convívio nesse mundo ermo em que ela nascera.

─ Isso é muito engraçado! Você nunca escutou essa música, não é, menina?

─ Isso é uma música? ─ ela perguntou com a voz mais elevada do que deveria. Tinha que ser silenciosa. Papa não parecia compartilhar da mesma opinião, embora tivesse sido ele quem ensinara Judith a ser quieta. O homem riu enquanto subia as escadas, só que bem mais alto desta vez.

─ Sabe ao menos o que caralhos é uma música?

─ Sei sim, você até me ensinou uma música uma vez.

Ela olhou para Papa na entrada do quarto uma última vez e depois voltou sua atenção ao que estava fazendo antes. Enquanto procurava, começou a cantarolar a música. Fazia muito tempo que ela não cantava; um dia fora uma criança pequena e exigente que não dormia sem uma música ou história de ninar. Não que Papa atendesse muito às suas exigências, mas num dia de muito bom humor ele lhe ensinara aquela musiquinha, disse que era uma música bonitinha para uma garota fofinha.

─ O que você está fazendo? ─ ele exigiu saber enquanto Judith permanecia no chão olhando debaixo da cama.

─ Estou procurando meu colar... Eu tirei ele ontem à noite e não o encontro mais. Nem fodendo que eu posso perder ele!

─ Esqueça essa merda! ─ Papa elevou a voz de um jeito que a deixou surpresa. Sua impaciência fora totalmente transmitida pela fala. Eles deveriam ter saído da casa ao nascer do Sol, mas por causa dela ainda estavam lá dentro, e o velho homem não estava nada contente.

─ Não posso! ─ ela falou e logo percebeu seu erro quando os olhos dele começaram a ficar avermelhados de cólera e seus punhos se cerraram com a intenção puni-la depois de tamanha insolência.

─ Judy, Judy, você sabe que não pode responder o Papa... Eu não gosto disso mais do que você, mas se eu deixo passar um desaforo desses, quem me garante que você ainda vai respeitar o seu velho?

─ Não, por favor! É o colar da minha mãe! Eu não posso perder ele! É tudo o que eu tenho dela...

Um longo tempo se passou enquanto ela e Papa se olhavam fixamente. Judith Grimes respirava aceleradamente e abraçou a si mesma tomando uma postura mais defensiva. Não tem como se proteger, Judy insolente. Quando o seu velho tomava uma decisão, era muito difícil que ele voltasse atrás, contudo Papa não estava de todo errado. Havia regras e ela tinha desrespeitado uma delas. Sentiu lágrimas começarem a se formar em seus olhos. Não estava assim por conta do castigo, mas sim pelo colar que eventualmente deixaria para trás. Daqui a alguns meses eu procuro de novo, tentou encontrar conforto naquele pensamento.

Os olhos do homem voltaram aos poucos à sua coloração normal. A respiração dele, que antes era pesada, tinha se tornado mais constante e por último seus punhos se abriram. Judith não sabia dizer ao certo o que tinha se passado em sua mente, todavia Papa parecia ter desistido de puni-la. A garota não ficou feliz com isso, ele poderia vir a castigá-la mais tarde e de uma maneira bem pior.

─ Você é um atraso de vida, menina! ─ ele disse por fim. ─ Encontre essa porra de colar logo e vamos embora.

─ Obrigada!

Seu agradecimento só fez com que o homem fechasse a cara mais uma vez, e ele começou a bater o pé de maneira impaciente. Grimes se enfiou o mais rápido que pode debaixo da cama e começou a passar a mão pelo chão empoeirado. Com a visão limitada, tudo o que ela podia fazer era tatear o vazio em busca de seu precioso objeto enquanto tentava não tossir. Sua mão encontrou algo gelado e um sorriso se formou em seus lábios. Lá estava sua corrente meio dourada meio prateada com um “M” de pingente. Era fina e desgastada pelo uso, mas ela a amava de todo o coração. Sentia-se segura com ela.

─ Podemos ir! ─ ela exclamou enquanto saltava e ficava de pé. Pegou sua mochila que estava jogada na cama e se dirigiu até a porta o mais rápido que pode. ─ Eu estou pronta.

─ Tudo isso por um colar escroto desses. Nem deve ser de ouro... ─ Papa ficou xingando enquanto descia as escadas. Judith tentou não se importar muito, estava com o colar de sua mãe no pescoço, no final das contas. ─ Ela bem que podia ter deixado a espada dela com você ao invés dessa coisa inútil.

─ Por que ela deixaria uma espada com um bebê? Que ideia fodida.

─ Você não era um bebê, era criança chorona que só sabia comer e fazer merda. Ainda não sei o que me deu na cabeça naquele dia achando que seria uma boa criar uma criança.

Judith também não sabia o porquê de Papa ter salvado a vida dela naquele dia, mas era grata por isso. Ele era um homem velho, vivia dizendo que estava cansado demais para fazer diversas coisas e havia dias que passava apenas dormindo. Seus cabelos eram totalmente cinza, com vários tons diferentes aqui e ali, tinha até mesmo uns fios brancos em alguns cantos e na barba sempre por fazer. Os dentes dele eram amarelados, o que deixava seu sorriso muito horripilantes às vezes. Sua postura era entortada pelos anos e por, segundo ele, carregar uma criança e não deixar que ela morresse comida por errantes. Vivia sempre reclamando de ter levado Judith consigo depois que a Zona-Segura tivera seu fim, e por vezes já deixara a garota para trás.

Apesar disso e dos maus tratos, Grimes não teria sobrevivido sem ele. Uma criança órfã de quatro anos de idade jamais teria chance contra errantes e com os Sussurradores em seus calcanhares. Na melhor das hipóteses, ela teria sido rasgada em pedaços e dividida entre os milhares e famintos mortos-vivos que tomaram conta de Alexandria; na pior delas, teria sido perfurada pelas lâminas obtusas daqueles que viviam entre os mortos e tinham sido inimigos dos alexandrinos. Papa lhe dera comida e ensinara a ela como sobreviver. Como se esconder, como arranjar comida nas árvores e como preparar a caça para o jantar. Eles até formavam uma boa dupla quando estavam em silêncio.

─ Pelo menos eu estava com uma arma de fogo.

─ Você estava com uma arma? Que história é essa, menina?

─ Você me disse que eu estava com a arma quando você me encontrou.

─ Eu disse isso? ─ ele coçou a barba algumas vezes. ─ Não foi isso que aconteceu... ─ Papa sempre mudava a história de como os dois se encontraram, já contara diversas versões e já até repetira algumas delas. Talvez ele esteja perdendo a memória... ─ A Colt Python estava no chão perto de você e do cadáver que tentava te comer... Você estaria fodida se eu não tivesse chegado bem na hora!

─ Não me lembro desse errante.

─ Como você poderia? Tinha quatro anos. Eu estava lá.

Judith se calou e deu uma olhada para o caminho que tinham deixado para trás. Papa chamava aquele lugar de casa de campo por estar longe da antiga civilização. Não era a sua morada favorita, já que o piso era gelado demais e não possuía nenhuma árvore frutífera por perto. A vida que ela e o velho levavam não era tão diferente da dos mortos que caminhavam por aí, a única diferença era que eles tinham um destino certo: possuíam doze pontos de parada, um para cada mês do ano. Grimes não entendia muito disso, mas a lógica de Papa fazia sentido. Eles nunca ficavam muito tempo no mesmo lugar para que os Sussurradores não pudessem detectá-los e para que a vegetação produzisse mais frutos enquanto estavam fora.

Ela ficava triste e feliz ao olhar para a casa que sumia no horizonte. Era uma sensação estranha e contraditória que tomava conta do seu corpo sempre que parava para pensar na vida que levava. Por um lado, pensava que tinha sorte em possuir uma morada, não só uma, mas doze, enquanto as outras pessoas viviam como animais. Mesmo assim, ela não podia deixar de pensar naquela que era a sua verdadeira casa: Alexandria. Papa fazia questão que ela deixasse o passado para trás, o que eles tiveram um dia não importava mais. Dizia que ela possuía muita sorte por ter um teto, comida e ele. Você não precisa de família quando tem a mim, Judy.

Ela trocaria essa sorte toda por um dia a mais com seu pai, sua mãe e seu irmão. Sua família.

Sentia terrivelmente a falta deles, mesmo que não tivesse muitas memórias dessa época. Havia noites que ela passava pensando em como seria se os tivesse por perto. Talvez ela não tivesse que matar animais para comer ou temer por sua vida a cada sombra estranha que aparecesse no horizonte. Tinha certeza de que com eles estaria segura. Tudo o que Papa fizera fora ensiná-la a matar o que parecesse maltrapilho e produzisse grunhidos ou que fosse animal; não tinha cuidado dela, por vezes nem se importava se ela estava respirando ou não. Ele nunca daria o carinho que sua família tinha dado a ela.

Na ausência deles, Judith Grimes se agarrava a pequenas coisas. Ao colar de sua mãe e aos sorrisos brilhantes que ela só dava para seus familiares; ela fora linda. De seu pai ela tinha a Colt Python totalmente carregada, como se mesmo na ausência ele tivesse providenciado algo para que ela pudesse sobreviver; seu pai fora a base de sua família e de toda a Alexandria. Também guardava o chapéu de seu protetor e irmão mais velho, uma coisa gasta e que cheirava mal, mas que a menina sempre usava para tampar o Sol do rosto. Era mais um de seus amuletos, além da arma de fogo e do colar. A menina pensava neles como seus ímãs, só que ao invés de ficarem atraídos pelo metal da geladeira estragada eles agarravam coisas boas e tornavam a vida de Judith melhor.

Papa às vezes lhe dizia pequenas partes de sua história, apenas o que ele sabia. Seu passado era nebuloso e Judy só conhecia alguns pedaços dele. Entretanto, não era algo que ele escondesse dela, seu velho não fora íntimo da família Grimes e por isso não sabia dizer ao certo nada de antes deles chegarem a Alexandria. Ela gostaria muito de tê-los conhecido mais, pois, além de seus amados amuletos, memórias eram tudo o que ela tinha da família.

As informações mais precisas que ela obtinha de seu velho com certeza eram do dia em que os Sussurradores, junto com uma gigantesca horda de caminhantes, invadiram e derrubaram os murros da Zona-Segura de Alexandria. Jamais houvera uma horda tão grande e perigosa quanto aquela. Não foram apenas pessoas em decomposição, houvera também sobreviventes disfarçados de mortos decididos a acabar com seu antigo lar. Munidos de armas brancas para não atrair mais errantes, os sobreviventes lutaram bravamente.

De que vale a coragem se estão todos mortos? A coragem é para os heróis, aqueles que se sacrificam. Nós somos sobreviventes, não precisamos disso, Papa sempre dizia, e ainda afirmava que mais valia dormir à noite do que dormir com uma consciência tranquila.

─ Você devia ter deixado esse colar para trás.

─ É da...

─ Puta merda, menina! Dá pra escutar seu velho ao menos uma vez antes de choramingar igual a um bebê? ─ ele disse tão alto que Judith teve medo de que ele tivesse chegado ao seu nível máximo de irritação. Jamais me faça ficar puto, você não quer ver como eu fico, Judyzinha. Ela parou de andar e o encarou. O homem era bem mais alto que ela e seus olhos lhe davam arrepios às vezes. Cruzou os braços e esperou ele falar, nunca se sabe o que ele vai dizer... ─ Você anda com essas tralhas o dia todo tentando se lembrar, mas já parou pra pensar que talvez seja melhor não pensar mais nisso? Eu já fiz milhares de coisas, umas boas pra caralho, outras que fariam você mijar nas calças de medo. E sabe como eu faço para viver com isso? Eu nem me lembro. Eu não lembro o que jantei ontem, caramba! E isso é bom porque, se eu não me lembro, eu não me importo.

─ Mas eu quero me lembrar, eu quero me importar.

─ Menina, será que a sua vida não foi fodida o bastante pra você saber que se importar só traz sofrimento? Você se sente bem pensando que a sua família foi comida ou esfaqueada até a morte? Que eles provavelmente te deixaram pra trás porque viver com um bebê é a maior burrada que uma pessoa pode fazer nessa desgraça de mundo?

─ Eles não me largaram!

─ Não te largaram? ─ ele afinou a voz para tentar imitar seu grito histérico enquanto dava um horrível sorriso amarelo que deu calafrios em Grimes. ─ Como você pode saber disso, Judyzinha? Você se lembra? Quer se lembrar do que aconteceu para descobrir o que é isso? O que quer que o Papa aqui te conte?

─ O que me garante que você não está inventando essa porra toda? ─ ela chorou. Lágrimas escorreram por seu rosto como gotas de chuva em uma janela. Seus olhos ardiam tanto que ela mal conseguia abri-los. Judith abraçou seu corpo com força enquanto soluçava, e seus soluços eram a única coisa audível naquele local ermo como todos os outros naquele mundo. Ele está mentido... Eu sei! Eles não fariam isso comigo. ─ Eles me amavam e nunca fariam isso! Você é um puta mentiroso!

─ Essa é a minha garota! ─ ele bateu palmas enquanto gargalhava. Grimes teve vontade de estapear aquela cara dele, queria socá-lo e arrancar aqueles dentes horríveis. ─ Toda putinha e mesmo assim é esperta. É claro que eu poderia ter inventado toda essa história! E pode parar de chorar, não vai amolecer meu coração com esses olhinhos vermelhos ─ ela fungou mais, tentando parar com o choro. Talvez ele só estivesse brincando, fazendo graça. Papa costumava fazer isso. Ele envolveu seus braços em torno do corpo dela e deu tapas de força moderada em suas costas. ─ Hey! Eles não te largaram, Judy. Eu sei, eu estava lá no dia. Eles te amavam e toda essa baboseira que você disse antes é verdade, eles te amavam pra caralho! Agora vamos parar com essa choradeira? Está fazendo muito barulho, e não queremos companhia, não é mesmo?

─ Não ─ ela passou as mãos pelos olhos e os esfregou com força. ─ Eu estou melhor, já parei de chorar.

─ Depois dessa conversa toda eu acho que vou mijar!

Sozinha, Judith Grimes se sentou no chão no meio da estrada repleta de folhas e envolveu seus braços ao redor do corpo tentando se recuperar. Chegou até a balançar um pouco enquanto prestava atenção no céu coberto por finas nuvens. O dia estava perfeito para caminhar, e, se tudo desse certo, lá pelo final da tarde eles chegariam a uma casa que ficava mais ao sul. A primeira comunidade a cair fora o Alto do Morro, e logo em seguida viera Alexandria. As comunidades caíram uma a uma e apenas as terras do Rei Ezekiel sobreviveram por mais tempo. Só que, no final das contas, todas não existiam mais.

O Sol não estava tão forte e ela lamentou que não pudesse usar seu amado chapéu. Papa só conseguia tolerar o cheiro em dias de Sol, já que seu uso era inevitável. Judy percebeu que vários pensamentos povoavam sua mente e que, por mais que ela evitasse, sempre acabava pensando neles. Talvez Papa estivesse certo, talvez fosse melhor esquecer e viver apenas como Judith, ou até mesmo mudar de nome. Poderia ser melhor do que sempre se lembrar de que ela era a última deles, a última dos Grimes.

Pegou seu chapéu e a arma de fogo, o colar permanecia em seu pescoço. Seus amados amuletos, não tinha a menor ideia de como se livrar deles. Deixá-los no meio do mato parecia uma opção muito ruim e desrespeitosa. Mortos não querem respeito, eles querem a sua carne, Judyzinha, escutou claramente a voz de Papa em sua cabeça. Precisava colocá-los em um local adequado e onde ela jamais os veria novamente. Só que ela queria vê-los, queria dormir abraçada com eles e sentir que sua família estava por perto. Só esses objetos lhe traziam conforto.

Ela nunca pensara neles de forma negativa. A saudade não era de todo ruim, pois ela lembrava deles com carinho e amor. Judith era cercada por destruição e morte, vivia em um mundo onde arriscar a vida fazia parte do seu cotidiano. O mundo queria derrubá-la, os mortos-vivos queriam sua carne, os Sussurradores queriam sua morte e até mesmo Papa queria deixá-la para trás; as únicas coisas boas que lhe restavam eram aqueles amuletos. Ela não os jogaria fora, mesmo se o velho a obrigasse e batesse nela até sua pele sumir. Eu não vou deixá-los.

De repente, tudo ficou claro em sua mente. O que fazia com que as memórias fossem ruins ou boas era o jeito com que se lembrava delas. Ela amava aqueles três objetos e eles nunca lhe trouxeram sofrimento. Mas nem todas as suas lembranças eram positivas. Demorara muito tempo para que Grimes aprendesse a manusear uma faca corretamente, e ela não tinha boas lembranças de suas aulas doloridas e intermináveis. Ela também odiava aquela maldita câmera pelo fato de que aquela coisa não funcionava mais, não havia como recarregá-la e ela havia se tornado um peso em sua mochila. Papa, por algum motivo, não gostava de seu próprio passado. Talvez um dia ele se abra...

Decidiu ir atrás dele, essa pausa já havia tomado muito tempo e eles precisavam chegar antes de escurecer. Guardou tudo na mochila, não antes de dar uma olhada na câmera velha. Havia muito tempo, ela reproduzira vídeos a que Grimes assistia sem parar. Várias pessoas apareciam neles, até mesmo ela aos quatro anos de idade. Seu favorito era aquele em que seu irmão e sua mãe tentavam reproduzir um jogo: Carl arremessava frutas enquanto a mulher tentava cortá-las com a espada; suas risadas eram o som mais bonito que Judith conhecia. Havia três vídeos de seu pai: em um deles ele conversava com uma mulher e tinha a maior barba que ela já vira; no outro ele se encontrava cabisbaixo enquanto uma voz estrondosa parecia troçar dele; e, por fim, dele enquanto tentava fazer sua filha dormir. Um vídeo era só de Judith correndo e gritando por seu pai enquanto alguém a perseguia de brincadeira, e também havia um de um belo almoço em uma tarde ensolarada.

Enquanto caminhava, Grimes tentou prestar atenção no terreno. As árvores possuíam raízes grandes que poderiam derrubar qualquer desprevenido, principalmente com a lama deixada pela chuva dos últimos dias. Ela ajeitou a fita que prendia seu cabelo para que nenhum fio escapasse e atrapalhasse seu campo de visão.

Nunca se sabia ao certo o que poderia se encontrar em uma floresta, por isso era necessário o máximo de silêncio e cautela, dessa maneira seria possível escutar quem se aproximava sem ser notado. Papa também lhe ensinara que era sempre bom andar com a arma em mãos pelas árvores. A Colt Python estava sempre carregada com as balas que Rick Grimes tinha deixado no dia em que Alexandria fora invadida, e seu velho nunca a deixava disparar, de modo que a menina nunca usara a arma de seu pai.

Mas Judith sabia atirar muito bem. Tinha praticado algumas vezes com as armas de Papa, até matara um errante pensando se tratar de um Sussurrador. Com a faca na bainha e a arma em posição, ela andou observando tudo ao seu redor, ao mesmo tempo em que procurou por sinais do velho. Tudo o que ela encontrou foi uma revoada de borboletas. Judith ficou parada por alguns segundos as observando completamente encantada, e uma delas até se aproximou da jovem. Desejou ser como elas por alguns instantes: viviam em bando e podiam voar para onde quisessem. Não eram presas à vida terrena.

Ela estava distraída com a beleza daqueles pequenos insetos. Seguiu o voo deles com os olhos até que se tornassem pequenos pontos no céu. Saindo do transe, ela olhou para o lado oposto e tomou um susto ao notar a situação critica em que Papa se encontrava. Seus pelos da nunca se levantaram e seu coração começou a bater loucamente. Bem à sua frente, o velho estava totalmente alheio à presença do andarilho que vinha em sua direção. Judith não tinha tempo para alcançar o mordedor e tudo o que ela pode fazer foi gritar.

− Papa, cuidado!

Papa se virou, mas ele não tinha muito que fazer. Estava desarmado e atônito, e aquilo que parecia ser um mordedor se mostrou muito mais do que isso quando levantou uma faca curta e escurecida. Era a primeira vez que Judith via um deles tão de perto, era a primeira vez que eles realmente ameaçavam a sua vida e a de Papa. Por alguns instantes, não soube o que fazer e se tornou apenas uma espectadora da cena de luta que se seguiu.

− Não sabíamos que tinha uma filha – o Sussurrador disse enquanto tentava esfaquear o velho. Só que Papa foi mais rápido e segurou seu pulso, bloqueando o golpe. ─ Estivemos procurando por você por um longo tempo.

A voz do Sussurrador era incrivelmente arrepiante, suave como uma brisa. Grimes se sentia tonta e impotente, era com se seu corpo estivesse lá, mas sua mente não. Não conseguiu mexer um músculo e não conseguia raciocinar. Tentou se lembrar das histórias que já ouvira sobre eles. Vamos Judy, acorde!

Só ouvira histórias sobre suas crueldades, seus números e sua aparente onipresença. Papa já lhe mostrara orgulhoso alguns deles que ele mesmo matara, e Judith já tinha fugido do que parecera ser uma manada enviada por eles. Não conseguia pensar direito, não quando Papa estava em perigo sem chances de defesa.

O Sussurrador jogava seu peso sobre o adversário para derrubá-lo no chão. Ela tinha de fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais... Então levantou sua arma de fogo. Tinha um ótimo ângulo da posição em que se encontrava e uma mira limpa. Suas duas mãos suavam muito e os braços tremiam de modo que ela não conseguia se concentrar no alvo. Respirou fundo, uma, duas vezes.

Agarrou com força a Colt Python e respirou mais uma vez. Não estava muito longe, acertar a cabeça de seu oponente não era algo complexo. Por fim, fechou um dos olhos e atirou. Em seguida veio o som da bala cortando o ar até chegar à cabeça do Sussurrador e atravessá-la completamente. O projétil só parou quando acertou uma árvore próxima. Ela não abaixou os braços, nem quando o corpo já morto caiu no meio das folhas secas.

Eu matei um Sussurrador e salvei o Papa!, ela pensou ainda um tanto incrédula com o que acabara de fazer.

─ Puta merda! O que foi isso, menina? ─ ele sorria de orelha a orelha e parecia orgulhoso. A jovem sorriu de volta e finalmente voltou a respirar, a tensão que percorria seu corpo tinha ido embora.  ─ Acho que eu te criar valeu a pena, no final das contas...

─ Você me deve uma – falou feliz. Mal podia acreditar no que tinha acabado de acontecer.

─ Nada disso, sua safadinha! Eu estava desprevenido... Sinto falta dos dias em que eu podia colocar meu pau pra fora sem ter que me preocupar com a minha vida!

─ É por isso que você me deve uma, sem discussão. Temos que dar o fora daqui.

Quanto a isso ele não discutir. Fechou o cinto e seguiu Judith, que havia tomado a dianteira. O caminho era longo e a menina repassou o que tinha acontecido várias vezes em sua mente. Não falaram mais nada e, à medida que andaram, perceberam que não seria possível chegar a seu destino antes do Sol se por. Papa não pareceu muito contente com isso, porém, para a incredulidade da última dos Grimes, ele não a xingou e nem deu muitos berros. Apenas resmungou algumas coisas e foi catar lenha enquanto ela ajeitava a clareira onde iria passar a noite. Talvez seja porque eu o salvei..., pensou orgulhosa de si mesma. Ela tinha ciência de que poderia proteger sua própria vida, mas ela tinha salvado a vida de seu salvador.  Era uma situação totalmente diferente.

─ Que sorriso retardado é esse, menina? ─ Papa apareceu com um punhado de gravetos grossos nas mãos. Parecia ter voltado ao seu humor normal e voltara a ser mais falante. ─ Acenda essa fogueira logo!

─ Posso perguntar uma coisa? ─ ela disse com cautela.

Pensara muito durante a caminhada e estava muito curiosa para saber a resposta dele.  Na realidade, ela necessitava da resposta que ele daria. Sabia que ele odiava quando ela era inquisitiva e que precisava tomar cuidado, já que tinha desafiado ele duas vezes naquele dia. Entretanto, ela também salvara sua vida. Não fez mais que sua obrigação, ouviu ele em sua mente de novo. Respirou fundo e esperou a resposta dele, olhando-o intensamente nos olhos.

─ O que é?

─ Eu estive pensando...

─ Pode parar por aí. Seus pensamentos são uma merda, nem preciso escutá-los. Lembra que eu pedi pra não encher meu saco com suas ideias fofinhas e inúteis?

─ Sim! ─ ela respondeu de imediato. Precisava continuar, precisava saber. ─ Você podia ter mudado meu nome e contado uma história diferente...

─ Por que eu não fiz isso? Porque eu não quis. E eu sou um cara bacana, não sou? ─ ela concordou com a cabeça. ─ Eu sou um cara legal pra caralho. E por isso não vou mentir pra você: eu tentei. Eu tentei ser legal com você e te dar um puta nome, mas você chorou tanto que eu te larguei no mato naquele dia.

─ Só que você não me deixou.

─ Sorte sua que eu não deixo crianças pra morrer, nem mato elas. Você quis ficar com esse nome estúpido que seu pai te deu, quis ficar remoendo o passado... Eu te avisei, sou um cara legal. Se você quer tomar no cú, o problema é seu.

Ele finalmente tinha chegado aonde Judith queria. Ela tinha que continuar e insistir naquela conversa. Ele dera um passado a ela, mas e o dele? Grimes tinha parado para pensar que encontrar uma menina no meio de uma comunidade devastada fora muita sorte, parecia tão casual que era estranho de se imaginar.

E também havia outra coisa. Os vídeos, era sua família lá, não era? Era ela correndo pela casa? Sendo colocada para dormir? Quem poderia garantir? Não se lembrava de sua aparência aos quatro anos... Na realidade, ela não tinha costume nenhum de se olhar no espelho. Quanto mais pensava nos vídeos, mais perguntas surgiam e seu passado, que antes fora tão certo, por conta delas ia aos poucos se despedaçando.

Enquanto a menina de quatro anos do vídeo corria pela casa, ela chamava por seu pai, esse era o conteúdo de um dos vídeos. A garotinha chama por seu pai... Papai! Papai! Papa...Para Judith, parecia ser um jeito carinhoso de chamar um pai. Então por que o velho a fizera chamá-lo de Papa, assim como havia ensinado ela a chamar um objeto cortante de faca e um armário grande de metal de geladeira? Na época em que vira aquilo, ela era muito nova para raciocinar, porém, depois da conversa que seu velho e o Sussurrador tiveram, a suspeita veio de vez. Ela era a menina dos vídeos? E se ele tivesse criado um passado para ela para que a menina se sentisse bem? E se Rick Grimes, Carl e Michonne fossem só pessoas escolhidas aleatoriamente para que ela pudesse ter conforto? E se todo o seu passado e se todas as suas memórias fossem uma mentira? E se fosse a vida de outra pessoa? Quem era Papa e de que forma ele entrava no seu passado?

─ Papa ─ dessa vez dizer o seu nome não saiu tão natural quanto das outras vezes. ─ Eu tenho mais uma pergunta.

─ Fala logo!

─ Seu nome é mesmo Papa?

─ Por que não seria? ─ ele perguntou depois de um tempo, e Judith conseguiu ver surpresa em sua expressão.

─ Porque Papa é um jeito de chamar papai... Olha, eu não estou pensando merda! ─ ela falou apressadamente para que ele não a interrompesse. ─ Eu chamei meu pai assim no vídeo... Bem, a garota do vídeo chamou pelo pai dela assim. Eu sei disso porque me lembro de todos eles, eu sei repetir o que acontece em cada um deles. Não é loucura.

─ Se eu te disser que não é, você gostaria de saber qual é meu verdadeiro nome?

─ Claro!

─ Judy, Judy... Sabe que o que a curiosidade vai lhe trazer? ─ sua voz a fez estremecer, ela sabia o que poderia vir com a curiosidade. Não fora nada bom. Quando mais nova, Judith pegara a bolsa de Papa no meio da noite para descobrir o que tinha dentro. Ele havia acordado e dera um tapa tão forte em sua face que ela perdera dois dentes de uma só vez. Passara a noite toda em claro com a boca sangrando e os olhos repletos de lágrimas. Ela respirou fundo, afastando aqueles pensamentos ruins. Não tinha ido tão longe para recuar. Não abaixaria a cabeça dessa vez, era seu passado que estava em jogo.

─ Eu quero saber.

─ Eu não sou seu pai, se é isso que você quer saber. Toda aquela história fodida é real, você é Judith Grimes ─ ele falou depois de perceber que ela não iria recuar. ─ Eu só achei que seria bom que você me tivesse como figura paterna. Toda a criança precisa de um exemplo. E eu sou o pai do ano, não sou?

─ Seu nome. Seu verdadeiro nome.

─ Já disse que não sou seu pai, menina! Eu posso mentir pra você sabia? Posso inventar um nome qualquer.

─ Qual é o problema de me dizer a porra do seu verdadeiro nome?

─ Tá bom, mas só porque você pediu com jeitinho! Puta merda! Você me enche de orgulho quando fala desse jeito! ─ ele fez uma pausa que pareceu durar uma vida. ─ Meu nome é Negan. Significa alguma coisa pra você?

─ Não ─ ela disse dando de ombros. – É um nome bonito.

− Vai se foder e pare de falar por falar. Eu te criei melhor do que isso. Te criei pra fazer coisas fodidamente fodidas do caralho, como fez essa tarde. Não pra cultivar um jardim.

A conversa não tinha tomado o rumo que ela esperava, contudo Grimes estava feliz. Judith não só conseguira mais um pouco de seu passado, como afastara aquela terrível dúvida e tinha percebido algo muito importante. Ela tinha todo o direito de exigir algo dele e de dizer não quando ele a obrigava a fazer coisas que ela não queria. Conviver com o velho não era algo fácil. Havia horas em que a jovem queria esmurrá-lo, e tinha horas em que ela era tão grata ao homem que poderia abraçá-lo. Era algo estranho que Judy não conseguia expressar direito, mas Papa era a única pessoa que ela tinha no final do dia. Ela era a última dos Grimes, todavia não era a única sobrevivente viva.

Judith Grimes estava tão feliz que começou a murmurar a canção que ele havia lhe ensinado.

─ Pare de cantar!

─ Você me deve uma! ─ ela disse por fim e continuou cantando, dessa vez mais alto. ─ Uni, duni, tê...


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Notas finais do capítulo

Antes de encerrar e de vocês comentarem (por favor, não se esqueçam de deixar sua opinião, é muito importante pra mim!) preciso esclarecer algumas coisas.
1°: Para quem não entendeu, o ambiente em que a história se passa (vou dar spoilers da HQ): Se passa bem depois da Guerra Total. Os Salvadores foram derrotados e Negan foi poupado para que presenciasse a prosperidade sem ele no comando e para mostrar que a partir daquele ponto eles não matavam mais, a fim de construir uma civilização mais humana. Alguns anos depois, as comunidades acabaram entrando em conflito com outro grupo denominado Sussurradores. Eles viviam entre os mortos e até mesmo se portavam como tais. Eles tiveram seu espaço violado diversas vezes e por isso entraram em guerra com o Reino, Alexandria e o Alto do Morro. A partir disso, tudo é da minha cabeça (e especulação das novas edições). Os Sussurradores venceram a guerra e destruíram todas as comunidades, e os únicos sobreviventes foram Negan e Judith.
2°: Meus dedos ficaram coçando para fazer com que a Judith largasse o Negan, mas eu cheguei à conclusão de que isso não aconteceria. Não nesse dia, mas eventualmente ela acabaria largando ele. É o que o Rick disse: Not today, not tommorow... O dia que Judith teve foi importante para ela, importante porque ela o questionou algumas vezes, coisa que ela nunca tinha feito antes. Ela começou a enxergar a situação em que se encontra de forma clara. Porém, ela ainda se sente ligada a ele, ela é ainda é leal ao Negan. Ela o salvou, no final das contas. Talvez um dia Judith seja capaz de enxergar através de toda essa lealdade e largar esse cara que a ensinou como sobreviver e também fez coisas terríveis com ela. Eu queria mesmo que ela se libertasse, todavia não hoje. Essa one foi feita para mostrar essa ideia louca que eu tive e seria necessário muito mais para que a Judy se torne realmente independente. Penso que ela não consegue imaginar sua vida de outro jeito.
3°: A Michonne é sim mãe dela. Judith tinha quatro anos quando Alexandria foi tomada, não tinha idade suficiente para que sua família lhe contasse sobre Lori. Por isso a única figura materna que ela teve foi a Mich. Só por curiosidade mesmo, o jogo que ela e Carl estavam tentando reproduzir no vídeo era Fruit Ninja.
4°: Não, o Negan não é um cara legal que teve seu coração amolecido pela doce e fofa Judith Grimes. Ele é um sociopata que, por algum motivo sádico, decidiu criar a filha de seu inimigo. Negan deu comida e protegeu a menina, mas também bateu nela e a tratou mal. A menina reprimida que tem medo de contestá-lo e de desagradá-lo é fruto da criação dele. Grimes mesma pensou que ele nunca deu o carinho que de ela necessitava e que ele jamais seria seu pai. Ela trocaria a vida que levava por mais um mísero dia com sua família.
5°: Muito do passado ficou confuso porque essa one é do ponto de vista de uma pessoa que não tinha idade para saber o que aconteceu. É um POV duvidoso. Então muito do que aconteceu antes fica em aberto.
E isso, comentem!



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