Um Cãoto escrita por Nathalia Schmitt


Capítulo 4
Capítulo IV




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Verão

Pai e mãe começaram a dar umas saídas fora do cronograma – aprendi essa palavra ontem mesmo! Adoro palavras! São como bolinhas que você tem que pegar, só que podem ser usadas o tempo todo.

Essas saídas começaram a me confundir um pouco, porque além de demorarem mais, quanto mais eles demoraram, mais as horas longe deles ficavam mais longas e arrastadas.

Peguei o Kong — aquele brinquedo esquisito que colocam comida dentro que falei antes, lembram? É ESSE O NOME! LUZ É UM GÊNIO! — e fui pro meu cantinho. Que agora incluía uma cama. Pelo menos lembram da gente quando estão fora; Luz ganhou uma coisa que tira água da parede. Ela fica lá olhando sem saber o que fazer. Diz que toda vez que tenta lamber pra identificar, acaba se molhando, ai fica sentada ali, batendo na água com as patinhas.

"Ao contrário do que o popular diz, jovem, muitos de mim (isso significava outros gatos) apreciam situações molhadas. Você bem sabe: água é vida! E amo vida! Por isso amo aqueles pequenos passarinhos que piam pela manhã e sempre tento pegá-los; apreciaria muito ter um comigo. Porém, este objeto inanimado que tira água da parede é mesmo muito... como é mesmo? Ah, sim: insólito".

Perguntei se era assim que ela via o laser e ela disse que o laser é só um ponto bonito e brilhante muito legal.

Parece legal mesmo, mas quando fui tentar brincar com ele, bati a cabeça na parede. Prefiro minha bolinha!

Outono

Um dia fomos seguir nossa bela rotina – EU AMO ROTINAS— como de costume:

06:00

Pai levanta, brincamos enquanto ele faz o café da manhã e as meninas dormem (mãe e Luz), passeamos para eu fazer as coisas que preciso fazer e cheirar umas informações vizinhas, voltamos.

06:45

Pai vai chamar a mãe. Volta para a cozinha, serve a mesa com pão, coisas para passar no pão, leite, café preto (nunca vi um café branco, mas se ele chama assim, então é), chantilly, queijo, presunto. Às vezes ele muda e faz café numa máquina esquisita que faz um "bruuuuuuum" enquanto serve direto no copo, aí leva isso pra mãe na cama mesmo. Mas ai faz algo pra ele e come na cozinha, mesmo.

7:00

Mãe levanta. Luz levanta. Corro pela casa, cumprimento elas com toda a felicidade que consigo expressar. Mãe serve comida pra gente e senta pra comer com o pai.

7:30

Guardam tudo, passam a louça suja pra pia, tomam banho - às vezes juntos, às vezes não. Nunca entendi a lógica.

8:00

Saem.

8:00 - 18:00

O grande hiato da minha vida. Luz dorme a maior parte do tempo e eu fico de olho na rua, deitado no encosto do sofá - aprendi com a Luz! E pai e mãe deixam só com a janela de vidro pra eu aproveitar. São os melhores pais que existem!

Porém, nesse imenso vazio existencial diário, provavelmente me mataria se tivesse um polegar. Dizem que não posso fazer nada por causa disso, então se eu tivesse...

Mas às vezes encontro umas coisas que se mexem pela casa - Luz diz que são insetos - e me distraio por alguns minutos.

18:00

Mãe chega. Dou "oi" com todas as forças que minha bexiga cheia permite que eu expresse. Rolo, pulo, abraço, beijo, meu deus, como eu a amo!

Luz espera a minha vez e senta por perto - quando mãe diz pra eu me acalmar e eu sento. Então ela se aproxima de Luz, que ronrona, mia, pede colo, se esfrega e a lambe com toda a classe e delicadeza que possui.

18:30

Mãe começa a fazer comida pra quando o pai chegar - é quando ganhamos lanches!

19:00

Janta pronta! Pai chega. Cumprimentamos ele loucamente. Pai vai tomar banho enquanto mãe arruma a mesa.

20:00

Todos jantados e comidos, é a vez de Luz e eu comermos! Pai nos serve os respectivos pratos e senta para ver algo com mãe.

21:00

Pai me leva para passear de novo, se não estiver chovendo. Mãe toma banho enquanto isso, vê TV e brinca com Luz.

22:00

Cada um se prepara para ir dormir. Mãe e pai sempre conversam e mimam a Luz nessa hora. Eu fico deitado na cama com eles. Às vezes implico com a Luz e me jogo em cima deles. É o meu horário favorito! Também é quando eu levo a bolinha e eles jogam pra eu pegar.

23:00

Pai e mãe fazem um lanche na cama - é quando eu e Luz temos que sair de cena.

00:00

Todos dormem.

Parece lindo, organizado e equilibrado, não é? E É! POR ISSO EU AMO!

O problema é que aquele dia foi uma bagunça: mãe estava frustrada e triste. Pai e ela encaixotavam algumas coisas em plástico bolha: O MELHOR PLÁSTICO QUE EXISTE, ALIÁS! Só que não nos queriam por perto e nos prenderam no quarto enquanto ajeitavam a sala.

Colocaram uma música baixa pra passar o tempo.

Luz não sabia o que estava acontecendo também e estava bem irritada, até me deu um tapa e rosnou pra mim quando fui cheirar a bundinha dela como de costume e brincar com o rabo dela!

Deitei na frente da porta do quarto e chorei baixinho.

Inverno

Mãe e pai tiraram uns dias de férias – “férias” é uma palavra tão engraçada. Ou umas semanas, "aproveitar que a casa inteira está empacotada e encaixotada, mesmo para descansarmos um pouco", de acordo com mãe. Ganhei um cinto de segurança roxo – "combina com o tom dos pelos amarelos do Fred e a coleira nova dele" disseram – pra usar naquele carro preto e deram uma bolsa de transporte pra Luz, com a parte da frente de telinha preta e telas laterais; a bolsinha de transporte era em formato de toca e toda roxinha com detalhes pretos. Quero uma pra mim também! Luz, porém, tem medo de lugares fechados, não sei como é o nome, ela usou uma palavra complicada pra definir isso, me lembra Cláudia. É, ela tem Cláudia!

Mãe e pai não pareciam saber disso. Certeza que se soubessem não colocariam ela naquela bolsa, mãe e pai são muito preocupados com a nossa opinião e bem-estar.

Assim que Luz viu a bolsa de transporte, tomou um chá de sumiço e evaporou pela casa.

Vi pela janela mãe e pai colocando coisas no carro preto de quatro portas: duas garrafas de refrigerante, uma de água, duas garrafas de água: uma pra mim e outra pra Luz, daquela que em vez de ter tampa tem tipo um pote pra gente beber. Encaparam o banco de trás com uma das minhas cobertinhas, duas malas, uma caixa pequena, alguns potes com ração, lanches e petiscos naturebas que mãe sempre faz, entre outras coisas que não sabia o que era, tipo umas caixas com cores legais e umas mochilas e malas sei-lá-pra-quê.

Fui procurar Luz e ela disse que eles alugaram— antes ela me explicou que é tipo pegar emprestado em troca de uns papéis – uma casa pra essas férias, que eu ia gostar porque eu gosto de tudo, mesmo, mas ela, “como ser crítico” – definiu a si mesma – não gosta de rua e estava detestando essa "muvuca" toda. Luz é mesmo inteligente!

"É que já sou mais velha”, Luz tinha lá seus 12 anos; viu e aprendeu muitas coisas com os humanos! “E tenho alguma maestria em humanês" - adorava se gabar por isso e usar palavras difíceis pra mim.

Acho que não tenho dom com carros. Quando fomos movidos até ele, Luz chorou muito. Queria consolá-la e distraí-la pulando em cima como sempre faço, mas o tal cinto "pra segurança" estava servindo mais pra "limitação de felicidade". EU NÃO CONSEGUIA CHEGAR ATÉ ELA! Agoniante.

Adorei ficar olhando pela coisa transparente do meu lado, ver a vida passar e aquela coisa toda. Mas aquele cinto me deixava agoniado! Demais! Em algum momento pai – que era quem estava dirigindo – baixou a coisa transparente do meu lado e eu consegui receber algum vento e identificar alguns cheiros de gramas, mato, outros cães, outros carros, borracha, FOI O MELHOR DIA DA MINHA VIDA!

Quando chegamos, lógico que agradeci de toda forma que pude expressar com minhas patas, pulos, lambidas e rabadas. Apesar de ter me divertido, AQUILO É MUITO ESQUISITO. Aí aconteceu: paramos, eles saíram do carro, ABRIRAM AS PORTAS E ME SOLTARAM.

LIVRE!

PELA PRIMEIRA VEZ! FINALMENTE!

Mas não saí de perto deles. Primeiro que tinha que me certificar que Luz estaria bem – e fora do carro; segundo que, bem, era um lugar estranho com muita neve, eu até afundava. Tinha que pular pra conseguir me locomover, com exceção do caminho até a porta da casa. Aquela casa que não era nossa, a tal forma de emprestar dos humanos que era esquisita.

Ficamos algumas semanas por lá, corri muito, conheci um esquilo que dizia adorar neve – ele a comia e tudo! O esquilo adorava brincar de pega-pega também.

Luz sentiu muita falta do arranhador-árvore-coiso dela. Também senti da minha bolinha, mas ela estava bem guardada e protegida e logo estaríamos juntos de novo! Saudades, às vezes, fazia bem pro relacionamento, dizia mãe.

Mãe e pai estavam bem grudados: acho que aquele frio todo e aquela casa de campo com o adicional "NEVE" deixou eles mais fofinhos. Fui tentar me aconchegar com a Luz, mas ela rosnou pra mim quando deitei na caminha dela que levaram. Tá que eu não caibo na caminha, mas poxa, EU TE AMO, LUZ! Ela reclamou dizendo que eu digo isso pra todo mundo. Mas amar todo mundo não é bom?

Então voltamos e vida normal, vida que segue.

AMO ROTINA!

Primavera

CASA NOVA, VIDA NOVA! Não.

Mesma vida de sempre. Mentiram pra nós. Humanos mentem muito.

Importante é que a casa tem PÁTIO! SIM, UM PÁTIO! TERRA, GRAMA, SOL, PLANTA, MEU DEUS, EU CAVO O TEMPO TODO! Pai disse que eu poderia colocar no currículo— não tenho ideia do que seja isso, mas se pai diz, então tá dito! – que sou P.h.D. em cavar buracos e seria um coveiro exemplar. UM COVEIRO. SIM, EU TENHO UMA PROFISSÃO! Quer dizer, foi elogio, né? Acho que foi. Não sei o que é um coveiro, mas fazem buracos muito bem pelo visto. PARABÉNS, COVEIROS!

Tudo começou depois que voltamos de férias.

A casa continuava encaixotada, então mãe começou a organizar as caixas: por exemplo, as que levavam objetos de cozinha, ela etiquetou com um papel escrito COZINHA. E ai dentro dessa caixa tinha outras menores, escrito PANELAS, TALHERES, POTES.

Alguns móveis começaram a sumir – parecia que pai tinha alguma parceria com o demônio, afinal, mãe nunca estava presente nesses momentos, brotava gente estranha e o pai entregava os móveis, simples assim. Até tentei evitar um dia, mas fiquei preso na cozinha quando rosnei pro cara estranho que tentou pegar a mesa da TV.

Chorei muito quando a cama gigante da sala – o famigerado sofá, lembram? -– foi embora.

Mesmo não podendo dar uma vida original a ela como fiz à outra antes de ser trocada, ela tinha meu cheirinho e me aguentava nos melhores e piores dias; antes de ir pra minha cama, sempre ficava um pouco com ela. E era bem mais confortável que a antiga! Fiquei me perguntando se eu e Luz seríamos trocados também...

Mas aí aconteceu: mais um período de passar coisas para o carro preto, mais um passeio longo no carro com Luz chorando inconsolável na bolsa de transporte macia e roxa, mais uma chegada a uma casa com pátio.

"Ainda bem que essa não é estadia só de férias" ouvi pai dizendo.

"Casa nova, vida nova" respondeu mãe – mas não. Mesma vida. Só que com pátio! Só que MELHOR! Eu corria em círculos assim que consegui, acabei fazendo uma estradinha na neve enquanto pai e mãe colocavam as coisas pra dentro. Quando terminaram, colocaram eu e Luz pra dentro também. Ainda bem!

A casa era enorme, com piso frio, saí cheirando tudo! O SOFÁ ESTAVA LÁ, O MEU DOCE E MARAVILHOSO SOFÁ! O arranhador de Luz também, juntamente de algumas caixas com nossas coisas.

A primeira coisa que mãe fez foi esvaziar a sala, colocar as caixas da cozinha na cozinha, as caixas do banheiro no banheiro, as caixas do quarto no quarto, etc. Mas as caixas com as coisas da sala foram removidas para que mãe e pai ajeitassem o tapete novo de mãe, que me olhou após ajeitar e disse "nada de xixi por aqui!". Tentei avisar que quem fazia era a Luz — era o jeito dela de se divertir quando ficava entediada: fazer xixi e observar enquanto eu levava a culpa — mas não adiantou nada, então pulei na mãe e rolei pelo tapete novo!

Ela resmungou alguma coisa que não entendi e me tirou de cima do sofá. MAS EU ESTAVA TÃO FELIZ QUE NÃO PODIA EVITAR! Daí pulei de novo.

Luz disse que a casa tinha uns cômodos a mais e isso era estranho; bom, mas estranho. Parece que "cômodos" é uma palavra para "mais divisórias de paredes".

Humanos são grandes e eu sou grande, achei foi muito digno!

A casa tinha uma varanda nos fundos que mãe chamava de "área de lazer". Tinha plantas, vasos, um piso de madeira, dois sofás, um tapete felpudo, um telhado naquela áreazinha. Após o degrau era pátio normal: com terra e grama. Mais o meu tipo. Mãe colocou um troço de pendurar roupas ali, Luz disse que se chama varal. Admito que nas primeiras semanas eu peguei umas meias de lembrança pós-mudança pra mim. Segredo! Nem Luz sabe! Enterrei em um lugar estratégico, no pátio lateral.


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