— Então é isso? Comunicação social? — meu pai perguntou. Senti o tom sutil de tristeza em sua voz por não ter escolhido o caminho da advocacia.

— Sim, Ailton, é isso — meu outro pai falou, se gabando por eu ter escolhido um caminho mais parecido com o dele, que é publicitário.

— Bem, confio em você, Elisa. Já paga as próprias contas, então não me resta mais nada a não ser te apoiar. Você já sabe o que eu acho dessa história de trabalhar na internet.

— Sim, pai. Que não tem garantia e que eu tenho que guardar para o futuro. Você não confia em mim?

— De olhos fechados — ele disse e deu um beijo em minha testa, em seguida saiu para o trabalho.

Tales, meu tio-pai, revirou os olhos em tom de brincadeira quando meu pai saiu.

— Mas ele tem razão — falei.

— Lili, se tem uma coisa que eu posso falar é que o seu pai é o tipo de pessoa que sempre tem algo a ensinar.

— E você também — continuei, dando-lhe um abraço.

— Nem sempre — ele brincou.

— Hum... — fingi que estava pensando. — Não posso dizer que é mentira. 

— Você seria uma garota muito mais educada sem minha presença aqui.

— E mais chata também — revidei.

— Não posso dizer que é mentira — ele imitou minha maneira de falar.

Fui lavar os pratos enquanto meu pai Tales estava lendo algum livro na sala. Nem me toquei que havia esquecido meu celular perto dele, então quando recebi uma ligação, pedi para que ele atendesse, já que estava com as mãos sujas de sabão.

— Aham. Sim, estou aqui. Quem fala é o empresário dela. Sim. Claro — era tudo que eu conseguia ouvir. Dei uma risada quando o ouvir se chamar de meu empresário. Era formal demais para ele.

Passados alguns minutos, meu pai colocou a mão no microfone do celular e olhou para mim.

— Elisa?

— Sim, pai?

— Sabe quem está falando comigo agora?

— Quem? — falei, sem dar muita atenção.

— A empresária da CamiVlogs. Ela quer saber se você está disponível para a festa de quinze milhões de inscritos do canal dela. Daqui a um mês.

— O QUÊ? — gritei.

Meu pai olhou para mim como quem não entende muito a importância da situação.

— Ah! — gritei. — Sim, claro! Claro que eu vou! Vou amanhã mesmo se necessário. Vou hoje! Vou agora! 

Então meu pai voltou ao telefone e começou a falar com a mulher, enquanto eu já estava toda suja de sabão dos milhões de pulos que já havia dado. Larguei os pratos sujos e fui esperar meu pai terminar a ligação com aquela expressão de felicidade que não saia do meu rosto.

— É isso. Vai ser daqui a quinze dias. Você já está na lista.

— Tem certeza que é da equipe da CamiVlogs, pai?

— Bem, eles falaram que estão sendo patrocinados por uma companhia aérea e que vão mandar as passagens de ida e volta. Pareceu sério. Disseram que hoje mesmo mandarão o horário do vôo. É para você e um acompanhante.

Dei mais um grito e saí correndo pela sala, dando saltos de felicidade.

— Calma, Lili. Você já foi para essas festas de blogueiros antes, porque essa animação toda agora?

— Pai, é a CamiVlogs. A Ca-mi vlo-gs. Simplesmente a maior youtuber feminina do país. Ela é uma das minhas musas inspiradoras. Essa festa vai ser incrível. Imagina quantos famosos vão? Ouvi falar que ela é melhor amiga do Coutinho, jogador da seleção. Alguém me belisca! 

— Demais,  Lili — ele disse e voltou a ler o livro dele, sem dar muita bola para minha animação.

— Vamos, pai? 

— Não dá, Lili. Vai ser daqui a quinze dias quando teremos o casamento da Gisele, minha prima. Ela era bem amiga da sua mãe e Ailton já confirmou que iríamos.

— Será que ele briga se eu não for? — perguntei.

— Acho que não, mas fica feio se nós não formos.

***

Meus pais permitiram que eu fosse com algum amigo para a festa da CamiVlogs, então fui falar com a Bia. Tainá certamente nunca poderia ir.

— Sabe a CamiVlogs? — perguntei.

— Sei — Bia respondeu.

— Adivinha quem foi convidada para passar cinco dias em São Paulo e de quebra ir para a festa de quinze milhões de inscritos do canal dela?

— Ah! Não acredito! 

Há alguns meses, bem antes do vestibular, eu e Bia dormíamos uma na casa da outra e passávamos horas assistindo vídeos da CamiVlogs, mas não senti que ela estava tão animada em descobrir minha notícia. Ela ficou feliz por mim, mas não parecia muito animada com nada ultimamente.

Depois dela me parabenizar e dizer que era só o começo do meu sucesso, ficamos em silêncio por um tempo. Olhei para o celular, respondi algumas mensagens e quando levantei o rosto novamente, peguei Beatriz olhando para o outro lado do pátio.

— Quer ir comigo para a festa da CamiVlogs? — perguntei.

Ela continuou pensativa olhando para Felipe e Vera conversando e dando gargalhadas.

— Ganhei as passagens, Bia — falei.

Mas minha amiga continuou perdida nos próprios pensamentos por alguns segundos.

— Oi? Que foi? — ela perguntou. Simplesmente não ouviu uma palavra que eu tinha dito.

— Poxa, Beatriz. Nunca vi ninguém mais teimosa. Ainda nessa? Estou aqui falando uma coisa super legal e você nem para prestar um pouco de atenção?

— Desculpa, Elisa. Eu estava voando.

— Eu vi.

— Desculpa mesmo. O que você estava falando?

— Eu estava te convidando para ir para a festa da CamiVlogs comigo. Passagem comprada. Cinco dias em Sampa.

Beatriz deu um sorriso sem muita animação. Olhou para mim, olhou para Felipe, olhou para mim.

— Cinco dias? Sampa?

— Sério mesmo que você ainda precisa pensar? É um presente, poxa. Imagina eu e você em Sampa... E o vestibular já passou.  Você conseguiu entrar na faculdade de medicina, Beatriz. Com o que é que você está tão preocupada? Não quer faltar três dias de aula quando você já está passada? 

— Não é isso... É que...

Mordi os lábios, meio com raiva. Revirei os olhos. Bati o pé várias vezes no chão. Eu já havia entendido tudo. Levantei-me e fui andando depressa até Felipe. Nem dei tempo para ninguém reagir. Falei alto para que qualquer um que estava passando perto pudesse ouvir.

— Oi, lesma. Minha outra amiga lesma não quer admitir para si mesma que quer falar com você. Mas ela quer. Ela está deixando passar uma viagem para São Paulo praticamente de graça e uma festa da CamiVlogs para poder ficar olhando para sua cara de lesma. Então um de vocês precisam criar coragem e parar de ser lesma.

Vera começou a bater palma e a assobiar. Várias pessoas começaram a fazer o mesmo. Bia ficou com os olhos arregalados e saiu correndo de volta para a sala de aula. Felipe ficou ali.

— É isso? Não vai fazer nada? — perguntei.

Ele deu um sorriso sem graça e não disse nada. Revirei os olhos mais uma vez e fui para o meu lugar.

— O que acabou de acontecer? — Tainá, que estava conversando com Silas, correu na minha direção.

— Já não estava mais aguentando esse lero-lero, Tainá. Falei com Felipe.

— Sem a Bia querer? — ela arregalou o olhos.

Dei um sorriso amarelo e fez que sim com a cabeça. Ela fez aquela expressão de quem não acredita no que está ouvindo e saiu correndo atrás da Beatriz. Arrependi-me na mesma hora do que eu tinha feito. Para ser sincera eu estava com ciúme de ter sido trocada pela lesma.

***

No dia seguinte, fui completamente ignorada por Beatriz. Mandei trinta mensagens, falei com ela umas dez vezes, mas não obtive nenhuma resposta. Tainá ficou conversando com Bia me falou que eu deveria ter um pouco de paciência. Todo mundo começou a chamar Felipe e minha amiga de casal lesma. Quem sabe quando ela me perdoaria.

Quando eu prometi para mim mesma que nunca brigaria com uma amiga por causa de um garoto, nunca pensei que uma situação como esta poderia acontecer.

— O que uma youtuber famosa como você está fazendo sozinha no intervalo? 

Era Daniel sendo besta como sempre. Mas não pude me conter e dei uma risada irônica. As investidas dele eram só o que me faltava.

— Quer um autógrafo? — ironizei, sem tirar a impressão de tédio do rosto.

— Quero sim. Principalmente depois do show que você deu ontem — ele devolveu a ironia, levantando as sobrancelhas três vezes com aquela risadinha estampada no rosto.

— Nem me fala. Se arrependimento matasse...

— Amanhã todo mundo esquece, Bitz. Fica tranquila. Quem sabe lá na frente eles agradeçam por você ter falado isso.

Respirei fundo e sorri. Eu precisava ouvir aquilo. Afastei-me um pouco no banco e deixei um espaço para ele sentar. Percebendo o gesto, ele sentou-se a uns trinta centímetros de mim.

— E você estava péssimo no jogo contra os Escorpiões — caçoei.

— Culpa sua por ter tirado minha concentração — ele disse.

— Não me culpe pela sua falta de treino, amigo.

— Não posso negar que eu estava meio cansado mesmo, Lili.  Meus pais são muito estressantes às vezes.

Ele deveria estar conversando muito com meu pai Tales. Lili era um apelido típico dele. E do pouco que tinha visto dos pais de Daniel, estressante chegava a ser elogio.

— Espero que esteja tudo bem na sua casa — falei.

— Está sim. 

***

— Oi terráqueos! Aqui é a Elisa Bits. No vídeo de hoje eu trouxe um amigo meu, o Daniel. Ele é jogador na seleção sub-20 dos Marechais. E está solteiro. Então se alguma terráquea disponível estiver interessada é só deixar um comentário abaixo.

— Oi gente!

— Hoje a gente vai jogar "Quem é mais provável de...". Vocês já sabem como funciona. Meu pai preparou algumas frases e nós responderemos quem é mais provável. Preparado?

— Preparadíssimo. 

— Então vamos lá. Primeira pergunta — olho a lista que meu pai preparou. — Quem é mais provável que brigue em público.

Daniel deu uma gargalhada e eu sabia o motivo. Ele fez que sim com a cabeça para indicar que já tinha escrito no mini quadro-negro em suas mãos.

— No 3. 1, 2... 3!

Viramos nossos quadros. Eu havia escrito Elisa e ele escreveu Lili.

— Não tem o que discutir, Elisa. É você. Todos os terráqueos sabem que você é brigona.

Revirei os olhos e sorri de leve.

— É porque ela luta pelo que acredita, gente.

Sorri mais uma vez e até fiquei surpresa com o que ele tinha dito. Não imaginava que Daniel conseguisse ser tão gentil. Para falar a verdade, ele estava sendo um ótimo amigo naquela semana em que Bia me ignorou completamente e Tainá ficou do lado dela. E até ali não havia percebido nenhuma tentativa de invadir meu espaço pessoal. Cheguei a conclusão de que era melhor tê-lo como amigo que como namorado.

— Tá. Vou deixar passar essa sua tentativa de me difamar na frente dos terráqueos. Próxima pergunta. Quem é mais provável de matar todo mundo com o seu chulé.

Olhei para ele. Olhei para o quadro. Sinalizamos que estávamos prontos. Viramos os quadros. Eu havia escrito Daniel e ele havia escrito Lili.

— Mas você nunca viu nem sinal de chulé partindo de mim! — fiquei indignada.

— Estou falando quem é mais provável. Eu não tenho chulé — ele retrucou com aquela cara de gente exibida.

Olhei para ele com os olhos apertados, debochando de sua cara de pau em dizer algo do tipo.

— Aquele seu tênis verde cheira a defunto depois do treino, mano.

— Sério? — ele pareceu bem preocupado.

Olhei para a câmera com uma cara de arrependida. 

— Assim... Desculpa... Mais ou menos. É que meus sapatos cheiram a lavanda. O que é que eu posso fazer? — tentei ser engraçada para disfarçar o fato de que ele realmente fedia muito depois do treino.

— Estou brincando, E.T. Eu sei disso.

— Que meus sapatos cheiram a lavanda?

— Que minha chuteira é uma arma letal depois do treino.

Fiz uma cara engraçada de desespero, concordando com ele.

— Quem é mais provável de demorar mais para ficar pronto?

Pensamos. Escrevemos. Viramos o quadro. Caímos na gargalhada.

— Tenho que concordar que eu sou mais demorado.

— Demorado? Eu esperei meia hora para você arrumar só a juba.

— Não exagera, Lili. Desse jeito eu vou continuar solteiro por um bom tempo.

— Há quem goste — repliquei.

Olhei para ele, rindo. Ele olhou para mim com um sorriso tímido. Foram cinco segundos um pouco constrangedores. Desviei o olhar rapidamente e continuei o vídeo.

— Quem é mais provável de dormir em qualquer lugar?

Essa eu fiquei um pouco mais em dúvida. Demorei um pouco, mudei de ideia, reescrevi. Viramos os quadros. Ele tinha escrito Daniel e eu escrevi Elisa.

— Acho que eu ganho essa, Elisa. Nunca te vi dormindo na aula. Eu já cochilei na fila do banco. Nem percebo e já estou dormindo.

— Mas eu durmo em qualquer canto. Adoro dormir. Dormir é meu hobby.

— Eu quis dizer banco de reserva.

— Tá. Você ganhou.

— Sim, eu ganhei — disse isso e piscou para mim.

— Agora mais uma... Quem é mais provável de salvar o mundo?

Essa era difícil. Salvar o mundo é uma coisa para heróis. Não acho que Daniel fosse o cara que salvaria o mundo. Pensei muito e não cheguei numa conclusão. Escrevi. Virei o quadro. 

— Não vale colocar o nome de outras pessoas no jogo — ele reclamou. — A Tainá é demais, mas ela não está aqui agora.

— Eu sei. É que não acho que eu seria a pessoa certa, sabe. A Tainá é minha amiga, gente. Ela é super envolvida em trabalhos voluntários e se preocupa de verdade com as pessoas. Eu só sou uma menina normal — expliquei.

— Claro que você é mais provável aqui, Lili — Daniel falou de um jeito sério, como se aquilo fosse óbvio, e ficou meio calado.

— Se você acha... — continuei. — E quem é mais provável de ter um surto ao conhecer um famoso?

Pensei bem. Escrevei meu nome no quadro ao concluir que Daniel não parecia ser o tipo fã de carteirinha de alguém. Viramos os quadros. Eu escrevi Elisa e ele, surpreendentemente, escreveu Daniel.

— Sério? — olhei surpresa para ele.

— Sério. Uma vez eu encontrei a Ivete Sangalo e quase morri. Imagina se eu encontrasse um jogador da seleção. Acho que eu iria surtar.

— Soube que o Coutinho vai para a festa da CamiVlogs. 

Daniel ficou meio boquiaberto e olhou para mim.

— Eu sou muito fã do Coutinho. Sério. O cara é incrível. Ele é um ídolo. Meu sonho é ser como ele. Nossa, eu morreria se eu fosse para uma festa dessa. Você sabe se poderia conseguir um convite para mim?

— Você conhece a CamiVlogs?

— Conheço sim. Os vídeos dela são legais.

A festa da CamiVlogs estava se aproximando. Beatriz provavelmente preferia ficar perto da lesma dela. Daniel estava respeitando meu espaço. Acho que meus pais deixariam que ele me acompanhasse, principalmente meu pai Tales. 

— Bem. Tenho um convite sobrando. Passagem inclusa. Quer vir?

Ele não conteve sua alegria e veio me dar um abraço.

— Você é demais, Lili. Não precisa nem perguntar duas vezes. É claro que eu adoraria ir com você. Eu nem acredito que eu vou conhecer o Coutinho pessoalmente.

— Mas você sabe que eu ainda preciso do meu espaço, né?

— Sei sim. Pode confiar em mim. 

— Então prepare a mala. E agora vamos continuar o vídeo que já está uma zona.

***

Demorei um pouco para editar o vídeo, principalmente pelos segundos constrangedores ocasionais e as conversas paralelas, mas no geral ficou bem legal. Publiquei no mesmo dia em que gravamos. No outro dia, pude notar que era o assunto do colégio. Não via a hora de acabar o colégio. Agora que o meu canal estava mais conhecido na minha cidade, pude perceber que cada vez mais pessoas interesseiras tentavam falar comigo.

Cheguei cedo na sala e Beatriz já estava lá. Sentávamos lado a lado, mas ela estava me evitando. Como eu havia saído sem tomar café, comecei a comer uns biscoitos que estavam na minha mochila. Poucos minutos depois, foi minha amiga quem se dirigiu a mim.

— Desculpa, Elisa, mas eu tenho que falar — Bia disse, do nada. — Não entendi aquele vídeo que você postou com o Daniel. Não tínhamos concordado que ele era um babaca? Alguns dias longe de mim e você já está fazendo besteira.

— Agora eu mereço sua atenção? — perguntei.

— É que eu sou idiota e me preocupo com você — ela retrucou como uma criança birrenta, rapidamente voltando para sua posição.

Sem me conter com aquele ato infantil, dei uma leve gargalhada que vez com que os farelos de biscoito que estavam na minha boca se espalhassem como uma fumaça. Senti que Bia riu também, mas estava contendo a gargalhada. Então dei outra gargalhada. Dessa vez, ela não conseguiu se conter. 

— Desculpa, amiga. Fiz besteira. Não tenho justificativa. Fiquei chateada por ter sido ignorada. Não deveria ter feito aquilo.

— Tudo bem. Eu deveria ter aceitado ir para Sampa com você na mesma hora. Posso ir se quiser que eu vá. 

— Não precisa ir se não quiser. Além do mais, o Daniel quer ir.

Beatriz olhou para mim com uma expressão de mãe preocupada.

— Pode ficar tranquila. Somos só amigos. Daniel é um péssimo ficante, mas é um ótimo amigo.

— Não confio nesse garoto sozinho com você em São Paulo. Não confio mesmo nele. Duvido que ele não invista em você, ainda mais sabendo que você está cada vez mais conhecida. E também não confio em você com ele. Tem certeza que não quer que eu vá? E seus pais estão de boa?

— Pode confiar em mim. Prometo pela minha mãe que não vai acontecer nada por lá. Meu pai Ailton foi um pouco mais difícil de convencer, mas o Daniel conquistou meu pai Tales, então foi tranquilo no final das contas.

— Daniel conquistou até o Tales? — Bia pareceu incrédula.

— É, amiga. Estou numa enrascada se depender do meu pai Tales.

— Você é madura o suficiente para saber no que está se metendo. Vou confiar em você. E estou te intimando a me mandar mensagens a cada hora.

— Tá certo.

Estendi o mindinho e Beatriz estendeu o dela, então fizemos o juramento de dedinho em sinal de que éramos melhores amigas novamente.

— Está tudo certo com o Felipe? — perguntei.

Bia levou a mão aos olhos e estava prestes a me contar algo, mas Tainá chegou nessa hora e deu um grande sorriso.

— Finalmente! Nenhuma das duas estava feliz. Eu já não aguentava mais ver nosso trio desfeito.

Todas nós sorrimos novamente.

***

Bia gata e gênia (09:23) - Já sabe! Mande mensagens a cada hora! É sério!

Elisa (09:25) - Sim, senhora!

Bia gata e gênia (09:25) - Boa viajem, ET ♥

Adoro ver a cidade ficar cada vez menor do avião. Amo aquela sensação de estar a milhares de metros de altura, longe de tudo. Tem gente que odeia, mas não consigo entender. Gosto de olhar tudo à distância. Deve ser por isso que chamo os inscritos do meu canal de terráqueos, como se eu estivesse vendo tudo de um planeta distante.

E lá, a seis fileiras de assentos de distância, já que o vôo estava cheio quando escolhemos a passagem, observo Daniel conversar com algum senhor sobre um assunto qualquer e lembro que prometi pela minha mãe que me manteria longe. Mas, da mesma forma que acho a cidade mais bonita do avião, ele parecia mais bonito dali, mais distante. E pensei que talvez Bia tivesse razão em não confiar em mim perto dele.

***

GRUPO – Squad das musas

Elisa (21:41) – A viagem está sendo incrível meninas. Fomos à Arena Corinthians hoje. É incrível

Tainá anja (21:43) – Que bom que está tudo tranquilo ♥

Bia gata e gênia (21:44) – Aproveite, minha linda

Elisa (21:46) - Não fiz nada que vocês não aprovariam.

Bia gata e gênia (21:49) - Acho bom não fazer nada que a Tainá não aprovaria hehehe

Tainá anja (21:50) – Besta

***

— Animado para conhecer o Coutinho? — perguntei.

— Estou bem nervoso para falar a verdade, Bitz.

— Relaxa, o Coutinho parece ser bem legal e vamos conhecer outras pessoas também.

Resolvemos tomar um sorvete e conhecer o parque Ibirapuera. Tinha passado de carro algumas vezes por ali, mas era muito mais divertido parar e perceber as pessoas passarem.

— Pensei que você pediria sorvete de fígado — ele brincou.

— Ainda não apliquei meus talentos na indústria dos sorvetes. Por enquanto fico com o de flocos.

— Nós, terráqueos, mal podemos esperar — Daniel caçoou.

Como estava ventando muito, acabei sujando meu cabelo de sorvete, então o cabelo grudou na minha bochecha e fez uma grande lambança. Daniel pegou seu guardanapo e tentou limpar, ficando a dez centímetros de distância de mim. Olhei para ele, lembrei da Bia falando e me afastei rapidamente, dando um sorriso sem graça.

— Obrigada. 

— Sem problemas, Lili.

Senti que Daniel estava meio frustrado, mas tentou esconder isso com um sorriso descabriado. Fechei os olhos e lembrei de ter sido ignorada logo depois de ter dormido com ele. Abri os olhos e segui um pouco mais confiante.

***

Elisa (09:04) -  Estou esperando o Daniel se arrumar.  Vamos sair agora.

Bia gata e gênia (09:23) - Deixa ele no quarto dele, em? Não caia na tentação hahaha

Elisa (09:25) -  Deixo sim. Quartos separados. Vamos para a pinacoteca agora. E mais tarde é a festa.

Bia gata e gênia (09:23) - Aproveite muito. E conheça caras mais legais hoje. Você merece alguém especial como você, amiga ♥

A Pinacoteca é um museu de arte contemporânea. Por fora, um prédio antigo lindamente arquitetado. Por dentro, uma mistura de obras, ambientes e sensações. Não sei como não tinha ido ali antes.

— Só você para me fazer vir para esses museus malucos.

— Malucos? — ergui uma sobrancelha.

— Agora eles pegam qualquer coisa, colocam uma placa e chamam de arte.

— Você parou para ler alguma dessas plaquinhas? Tem história por trás de cada uma dessas peças.

— Não, obrigado.

Ignorei-o e saí para desbravar o museu desacompanhada por alguns instantes. Eu me senti como se estivesse no meu planeta de origem, caso esse planeta realmente existisse. Tinha uma exposição de costura com várias texturas que eu nunca tinha visto antes. Tirei algumas fotos para me inspirar em fundos para alguns de meus vídeos. Fui caminhando e entrei numa sala escura onde filmes variados estavam sendo projetados nas paredes ao som de algum instrumento que eu nunca tinha ouvido antes. Eram filmes de crianças, idosos, pessoas trabalhando. Era sobre pessoas comuns. 

— Finalmente te achei — Daniel me incomodou. 

Só nós dois estávamos naquela sala. Ele ficou de pé com uma expressão de entediado e sua sombra atrapalhou o vídeo que estava passando por trás dele. De qualquer forma, fiquei assistindo ao vídeo sendo projetado por cima da pele dele. 

— Vai demorar? — perguntou.

— Não, mas fiquei de me arrumar junto com outras youtubers. Se quiser pode ir embora. Vou ficar um pouco mais por aqui. Encontro você na festa.

Daniel se aproximou, deu um beijo na minha testa e saiu.

— Certo, Lili. Esse lugar não é para mim. Tem uma exposição de foto de mulher gorda ali na outra sala. Acho ridículo ficarem exaltando obesidade. Obesidade é doença — disse isso e deu uma risada irônica.

Respirei fundo. Pensei em falar que aquelas mulheres eram lindas e que doente era ele se incapaz de perceber isso, mas ele saiu antes de me deixar formular meu pensamento. 

Continuei ali por uma ou duas horas, até que recebi uma mensagem avisando que o salão já havia sido aberto. Eu não estava acostumada com aquela vida e sinto que nunca vou me acostumar. Talvez eu fosse mais parecida com o meu pai Ailton do que admito.

Depois de me perder mais um pouco numa exposição sobre senhoras, fui até o salão famoso no endereço recomendado pela Cami.

— Olá, musa. Eu sou o Jimmy. Sou o maquiador e cabeleireiro.

Jimmy me acompanhou até uma cadeira em frente a um espelho. Desfez meu rabo de cavalo, bagunçou meu cabelo e ficou olhando para os fios, pensativo.

— Como é o seu look de hoje? 

— Vestido preto — respondi. O mesmo vestido preto que eu tinha ido para o aniversário da Beatriz ano retrasado.

Na mesma hora, uma outra youtuber chamada Lila passou por trás de mim e eu a vi pelo espelho. Eu não conhecia muitas youtubers porque não morava num grande centro, mas a Lila parecia tão perdida quanto eu. Quando ela olhou para o meu reflexo no espelho, correu até a mim.

— Oi, Elisa. Eu sou a Lila, de Curitiba. Adoro seus vídeos. É um prazer imenso te conhecer. Precisamos marcar um dia para jogar juntas — ela tinha um sotaque forte.

— O prazer é todo meu Lila. Adoro o seu canal também. Também está aqui para a festa da Cami?

— O salão todo foi fechado para a Cami — Jimmy falou, enquanto borrifava algo no meu cabelo.

— Não estou acostumada com essa riqueza toda — Lila falou.

— Nem eu — respondi, sorrindo. 

— Imagine eu que venho do Capão — Jimmy brincou.

Lila e eu nos entreolhamos.

— Sei nem o que é Capão — falei.

— Nem eu — Lila continou.

Jimmy riu e continuou a mexer no meu cabelo. Achei que ele fosse metido a besta, mas a verdade é que ele parecia bem divertido. E o melhor é que tinha comida de graça no salão. 

— Posso cortar? — ele perguntou.

— Pode sim.

Pela surpresa no rosto dele, as meninas no salão tinham medo de cortar o cabelo.

— Cresce de novo se não prestar — continuei.

— Você é mais legal aqui que nos vídeos, ET.

Agora quem estava surpresa era eu. Nunca imaginei que Jimmy assistisse o meu canal. Pisquei para ele e o vi sorrindo no espelho, segurando sua tesoura com entusiasmo.

***

Lila e eu estávamos bem perdidas dentro de uma van cheia de blogueiras famosas que já se conheciam. Várias gravavam vlogs ao mesmo tempo no celular.

— Olha quem está aqui — uma tal de Jéssica fingia ser minha amiga. — Elisa Bitz. E ela acabou de cortar o cabelo. Agora está bem Umma Thurman em Pulp Fiction

— Obrigada — falei.

— A Elisa é muito legal gente, sigam o canal dela. É muito maneiro.

Quando Jéssica saiu, Lila olhou para mim de um jeito meio chocado.

— Você já falou com essa menina antes?

— Não.

Então caímos juntas na gargalhada.

Elisa (21:01) -  Já estou indo para a festa.

Daniel (21:10) - Saindo

A Cami era ainda mais linda e simpática pessoalmente. Os cabelos ruivos e as sardas eram um charme. Nem acreditei quando a ouvir dizer que adorava o meu canal. Ela separou um lugar decorado para os youtubers tirarem fotos antes de entrarem na festa. Tirei foto com tantas pessoas que fiquei com as bochechas doendo de tanto sorrir. O Coutinho demorou um pouco a chegar, mas muitas pessoas foram tirar foto com ele.

— Dê uns vinte minutos que você consegue falar com ele — Cami avisou, quando me viu sozinha e desanimada ao perceber a multidão em cima do jogador.

— Obrigada, Cami. É que um amigo meu veio para conhecê-lo e não sei se ele vai conseguir.

— Deixa eu adivinhar... É o jogador do seu vídeo, né? — ela olhou para mim com um sorriso meio malicioso.

— O Daniel? Somos só amigos — falei.

— Sério? Os comentários do seu vídeo discordam. Já chamam vocês de casal Elisel.

Fiquei meio sem ar ao descobrir que uma pessoa como a Elisa lia os comentários do meu vídeo. Eu ainda nem tinha lido aqueles comentários.

— Você sabe como as pessoas gostam de especular. Ele é só meu amigo mesmo.

— Se você diz, eu acredito. Mas fique tranquila. Depois eu peço pessoalmente para o Coutinho tirar uma foto com ele.

— Sério? Obrigada. Você é demais. 

Cami deu um sorriso e saiu para falar com outras pessoas. Ela era mais incrível do que eu imaginava. Quando ela se afastou, procurei o vídeo no celular e li os comentários.

@Guiquel11 Como é fofo ele chamando ela de Lili ♥

@Elisel #shippo #elisel Nasceram para  ficar juntos!

@jughead23 Nasce um novo shipper #ELISEL AMOOO

Alguns seguidores não têm noção de limites. Quando eu vi a quantidade de pessoas torcendo pelo casal, me assustei. Quando olhei as visualizações, fiquei espantada. Poucos vídeos tinham atingindo aquele número.

Fui para a festa com Jimmy e Lila. Bebi alguns coquetéis alcoólicos que estavam servindo na festa. Procurei Daniel, mas não o encontrei. 

Elisa (23:01) -  Estou na pista. 

Depois do terceiro copo de coquetel, já estava mais animada. Eu tinha dezoito anos e estava na festa do ano, então resolvi me soltar mesmo. Jimmy e eu dançamos tanto que meus pé começou a formar calos. Lila começou a conversar com algum menino por lá e desapareceu perto da meia-noite. De vez em quando alguém pedia uma foto ou gravava um vlog comigo. O DJ famoso conseguiu fazer todo mundo pular.

— Elisa! — Daniel me encontrou e falou gritando para que pudesse ser ouvido. — Consegui falar com o Coutinho! — Ele disse isso e mostrou a foto que havia tirado com o seu ídolo. 

— Que maravilhosos! — gritei, já um pouco alterada.

— Obrigado pela melhor noite da minha vida! — gritou.

— Não foi nada!

— Valeu! Eu te amo Lili!

Daniel gritou isso e saiu. Olhei para Jimmy que estava mais espantando que eu e continuei a dançar.

— Você não disse que ele era apenas seu amigo? — Jimmy perguntou.

— Ele é.

— Ele é gay?

— Não.

— Então você está encrencada.

Dei de ombros, sorri, fechei os olhos e continuei a dançar. Naquele ponto eu só queria me divertir. Alguns garotos tentaram se aproximar, mas  eu queria apenas dançar com amigos. Caso as coisas se complicassem com Daniel, se resolveriam depois.

Bia gata e gênia (01:03) - EU FALEI A CADA HORAAAAAAAA

Elisa (01:18) -  tudroo beemm mifggzza

Bia gata e gênia (01:18) - hahahahaha JÁ TÁ LOUCA

Bia gata e gênia (01:19) - Cuidado na vida! Você não está em casa!

Bia gata e gênia (01:19) - Mas se divirta.

Elisa (01:31) -  Sóo um poucosaa. Parei jáa.

Bia gata e gênia (01:35) - Fique longe do jogador!

Elisa (01:42) - neM sEi oNDE estaaá! Deve tá comm os outros.

Bia gata e gênia (01:45) - Deixe ele lá e vá se divertir. Conheça pessoas novas!

Elisa (01:48) - Ok

Aos poucos, o efeito dos drinks foi passando, comecei a ficar com uma leve dor de cabeça e os calos nos pés doíam cada vez mais. Olhei no celular e já eram quase quatro horas da manhã.

Elisa (03:47) - Dani. Cadê você?

Elisa (03:58) - Vou pedir um carro.

Despedi-me de Jimmy, Lila e das outras meninas. Falei para eles que já queria voltar para São Paulo para revê-los. Agradeci a Jimmy pelo novo corte de cabelo. Fui passando por um monte de gente dançando. Era um salão grande e estava lotado. Desisti de procurar Daniel e sentei-me numa mesa vazia no canto.

— Precisa de ajuda? 

— Não. Obrigada — respondi.

Olhei para cima e nem acreditei no que vi. Era outro jogador famoso de futebol, Pedro Lira.

— O-i. Li-ra. É um pra-zer. Eu sou a E-li... — eu e minha mania estúpida de falar como um robô nas piores horas.

— Oi, Elisa. Prazer. Está procurando seu amigo jogador? — pelo jeito ele já havia conversado com Daniel.

— Sim. Quero ir embora.

— Acho que posso ajudar. Pode me acompanhar?

Fiz que sim com a cabeça e segui o homem. Passamos mais uma vez pela multidão e fomos para o outro lado do salão, onde haviam alguns sofás com várias pessoas conversando. No canto do sofá, Daniel estava dando uns amassos em alguma menina que eu não conhecia. Respirei fundo e dei um suspiro de cansaço. Claro que o "Lili, eu te amo" era conversa de bêbado. Era óbvio. Pelo menos eu não estava mais confusa. Aquela cena colocou meus pés no chão.

— Ficou chateada? — Lira olhou para mim.

— Não. Só estou cansada. Quero ir embora.

— Se quiser, eu posso te levar embora.

Na hora me perguntei se eu estava louca ou se o famoso jogador de futebol Pedro Lira estava dando em cima de mim. Não dei muita atenção porque reconheci que a menina com quem Daniel estava era uma vlogueira muito bonita e famosa, Mary Antares, melhor amiga da Cami. 

— Ele se deu bem. Você vai ficar triste aí ou vai se divertir comigo e esquecê-lo? 

Enruguei a testa, olhei para ele e permaneci calada, incrédula.

— Ele é meu a-mi-go e tem todo direito de ficar com quem ele quer. E a Mary é linda e também pode ficar com quem ela quer. Por que eu ficaria triste? — perguntei.

— Qual é... O garoto contou que foi você quem trouxe ele, que vocês já ficaram juntos um tempo. Aposto que se fez de difícil como agora. Relaxa, linda. Vai se contentar com um amador de time de quinta? Posso te dar o mundo se você quiser.

— Ah, é? Ele contou para você que a gente ficou? — não sei se eu estava com mais raiva da cara de pau do Lira ou de ter que ouvi-lo chamando os Marechais de time de quinta.

— Pelo jeito é verdade o que o moleque falou — ele gargalhou. — Disse que até nos treinos você o seguia. Sabia que eu posso te dar muito mais que ele? Você precisa conhecer um homem de verdade.

Estava tão pasma que demorei um pouco para entender a situação. O Daniel deve ter dado a impressão de que eu realmente era a maior maria chuteira do universo.

— E, sendo sincero, a Mary é uma das youtubers mais famosas que eu conheço. Deve ter uns dez milhões de seguidores. Então acho que você nem tem mais chance com esse interesseiro. 

Fechei os olhos e dei uma risada cheia de ódio. Sorri falsamente, me aproximei um pouco do rosto dele e sussurrei em seu ouvido.

— Escuta aqui, mas escuta direitinho porque eu não vou repetir. Falo isso porque me preocupo com as pessoas, de verdade. Cuidado com as suas palavras. Não importa quanto dinheiro e fama você tenha, não dá para comprar o amor das pessoas. Tenho pena de saber que você nunca vai descobrir se alguém é capaz de gostar de você só pelo que você é.

Saí, dei uns três passos, olhei para trás e gritei de longe.

— E eu consigo ME dar mundo! 

Pedi um carro pelo aplicativo, fui para o hotel e só dei satisfações para Daniel na hora de pegar o avião para ir para casa. 

— Tudo bem contigo? — ele perguntou, ao ser ignorado por seis horas seguidas.

— Tudo ótimo — respondi. — Espero que tenha valido a pena.

Elisa (18:13) - Você deveria ter vindo comigo, Bia :(