Cartas de Amor escrita por The Escapist


Capítulo 1
Todas as cartas de amor são rídiculas


Notas iniciais do capítulo

Nossa, passou tanto tempo que eu nem lembrava mais, rsrs. Obrigada aos meninos do Zine que betaram o texto.
Boa leitura.



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Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas(¹).

 

A primeira coisa que Patrícia fez ao chegar à casa nova foi entrar no que seria agora seu quarto e bater a porta com violência. A mãe balançou a cabeça desanimada e suspirou, sem forças para discutir com a filha. Ela e o marido transportaram a maior parte das caixas para dentro de casa, com a ajuda do outro filho, que, embora também não estivesse muito feliz com a mudança, tinha o temperamento melhor do que o de Patrícia. Estavam todos cansados da viagem, por isso deixaram a arrumação para o dia seguinte.

Irritada, Patrícia recusou-se a sair do quarto e ajudar em qualquer coisa. Ela ficou sentada em sua nova cama, olhando para o papel de parede com florzinhas desenhadas. Toda aquela situação era ridícula, pensava. Seu pai obrigá-la a largar tudo para morar numa cidadezinha no fim do mundo e ainda esperar que ela ficasse feliz com isso!

Ela pegou a mochila onde trouxera seu notebook — suas malas estavam encostadas no canto da parede, esperando para serem desarrumadas, mas era como se Patrícia ainda acreditasse que um milagre aconteceria e seu o pai a mandaria de volta à civilização. Ligou o computador e tentou conectar-se à internet, mas descobriu que ainda não havia conexão disponível. Ela xingou. Seu pai havia prometido que cuidaria de tudo antes de levar a família! Sem poder falar com os amigos e contar como a viagem tinha sido chata e tudo o mais, ela guardou o computador, depois tomou um banho — até que o banheiro era legal, ou melhor, até que ter um quarto com um banheiro só seu era legal. Ao menos isso.

Leu um pouco, mas foi dormir cedo. A viagem de mil e trezentos quilômetros fora realmente cansativa e ela não demorou a adormecer. Acordou pela manhã com o sol no rosto — a janela ainda sem cortina despejava toda a luz matinal dentro do quarto. Era um pouco poético, mas não muito agradável para quem adorava ficar no escuro e dormir o dia inteiro. A isso, juntou-se uma batida na porta e a voz impossivelmente animada de seu pai:

— Está um dia lindo, Patty! Você não vai querer perder isso, não é? — ele perguntou, sua voz abafada pela porta fechada. Patrícia resmungou, sem responder realmente. — Ok, princesa, eu tentei ser legal, agora trate de sair desse quarto e ajudar a sua mãe com as coisas! — o tom dele foi um pouco mais sério, mas não o bastante para fazer Patrícia levantar. Ele os havia arrastado até ali, ele que a ajudasse então!

O que a fez resolver sair do quarto foi um motivo mais egoísta. Seu estômago estava vazio há muitas horas e o cheiro do café da manhã era quase um pecado.

Seu pai estava sentado à mesa. Usava camisa social branca e uma gravata listrada, os cabelos grisalhos lavados e bem penteados e aquele sorriso característico dele no rosto. Patrícia às vezes se perguntava por que seu pai era tão feliz.

— Apareceu a margarida? — disse ele, sorridente, e recebeu apenas uma careta da filha. Ele era, de modo geral, um homem muito paciente e não perdia a cabeça com a rebeldia dela. — Por que você é tão mal humorada, filha? — Ela não respondeu, limitando-se a servir uma caneca de café para si mesma. — Patrícia, você está se comportando de maneira muito grosseira, sabe disso, não é? — Novamente o silêncio como resposta. Demorou quase um minuto até que ela falasse alguma coisa.

— Não tem internet! — disse, com um tom que sugeria estar apontando um problema grave e óbvio. — Não tem internet! — repetiu, enfaticamente.

— Nós chegamos ontem, ainda tem muito o que arrumar na casa, Patty! — a mãe falou. Apesar de não ser a mais paciente dos dois, ela tendia a levar mais a sério as reclamações da filha. — Seu pai está cuidando disso.

— Você pode ficar um dia sem usar o computador, não pode? Eu tenho certeza que sim, ninguém morre por isso. Por que você não sai pra dar uma volta e conhecer a cidade?

— Eu não quero conhecer a cidade, eu quero ir pra casa, pra nossa casa. Quero meus amigos, a minha vida.

— Pelo amor de Deus, Patrícia, pare de agir feito criança! Nós não vamos ter essa conversa outra vez.

Eram raras as ocasiões que Patrícia via o pai chateado. Esta foi uma delas. Ele terminou de tomar o café da manhã num silêncio constrangedor que ninguém se sentiu à vontade para quebrar.

A família mudara-se por causa do trabalho dele e era uma grande chance para sua carreira. A empresa onde trabalhava — uma multinacional do setor petroquímico — abrira recentemente uma refinaria naquela pequena cidade, o que causara uma grande mudança na vida tanto dos residentes quanto dos novos moradores. Ele era agora o diretor geral da refinaria, e embora aquilo significasse uma melhora significativa em seu salário e consequentemente no padrão de vida da família, ele sabia que seria difícil para os filhos se adaptarem à nova vida.

Depois do café da manhã, Patrícia ajudou a tirar a mesa, mas esta foi sua maior contribuição com as tarefas da casa. Quando seu pai saiu para o primeiro dia de trabalho, seu irmão ficou ajudando a mãe a desempacotar o resto das coisas e arrumá-las e ela voltou para o quarto e, após verificar que continuavam sem sinal de internet, passou algumas horas arrumando suas roupas no armário.

Eles ainda estavam de férias da escola, e teriam pelos menos três semanas livres até que as aulas começassem. Em contrapartida, a arrumação da casa nova parecia nunca ter fim e mantinha Pedro sempre ocupado, ajudando a mãe no que fosse preciso. Ele estava lidando melhor com a mudança do que a irmã gêmea. Em vez de reclamar o tempo todo, como Patrícia fazia, Pedro resolvera aproveitar a chance de conhecer um lugar diferente e começar uma vida nova. Além de ajudar com a casa, ele saíra algumas vezes para conhecer a cidade, algo em que sua irmã não quis nem pensar.

— Eu odeio essa cidade! — disse Patrícia. Os dois estavam sentados no alpendre, no fim da tarde, uma semana após chegarem.

— Você nem conhece a cidade ainda, Patty! Pega leve, poxa!

— A gente está aqui há uma semana e o papai ainda não resolveu o problema da internet, Pedro! Uma semana! Aposto que nem existe internet neste buraco! — Patrícia bufou, enfezada. Pedro suspirou e pensou em dizer que era improvável que numa cidade onde havia uma refinaria de petróleo multinacional, por pequena que fosse, não houvesse internet, mas seria natural que os serviços lá fossem um pouco mais lentos do que numa capital. Porém, ele desistiu de argumentar com a irmã.

— Você tá vacilando tanto com o pai, sabia? Você sabe como esse emprego é importante pra ele, Patty. Eu também não tô morto de feliz, nem a mãe, mas o mais importante é que nós estamos juntos. Ou você ficaria mais feliz se ele viesse sozinho pra cá? — Patrícia resmungou, sem dizer nada concreto e seu irmão balançou a cabeça. — Egoísta. Você poderia ajudar um pouco em vez de atrapalhar, que tal? — Patrícia mostrou a língua ao irmão, mas parte dela reconhecia que não vinha sendo uma boa filha nas últimas semanas.

Talvez estivesse exagerando na reação — apenas sentia realmente muita saudade da vida anterior e não conseguia enxergar uma maneira de tê-la ao menos parecida agora que tudo era diferente.

À noite, quando seu pai chegou e eles estavam sentados à mesa para jantar, o ouviu falar sobre como havia sido a primeira semana no trabalho e, pela primeira vez, sentiu-se um pouco culpada por agir daquela maneira com ele. A animação dele era notável, e por tudo que já trabalhara na vida, ela sabia que seu pai merecia aquele momento na carreira.

No dia seguinte, apesar de ainda estar chateada e jurar que nunca iria conseguir gostar daquela cidade, resolveu ajudar de alguma maneira, e surpreendeu sua mãe ao dizer que iria limpar o quarto do despejo — o cômodo que ficava nos fundos da casa, como um anexo, após a cozinha. Porém, não era um gesto nobre e despretensioso: aquele quarto seria perfeito para montar seu ateliê — ela não era uma artista talentosa, reconhecia isso, mas gostava de pintar.

Sua mãe ainda não tivera tempo de ver o que havia lá, portanto, Patrícia tomou para si a missão de selecionar o que ainda poderia ser usado do que deveria ir para o lixo. O quarto estava pouco iluminado, pois as janelas tinham os vidros enegrecidos por uma poeira escura — aquela mesma da qual já ouvira sua mãe reclamar logo nos primeiros dias na nova casa. Ela procurou por algum interruptor, e embora não tenha sido difícil encontrá-lo, foi inútil, pois a lâmpada que havia ali não estava funcionando.

— Lembrar de avisar ao papai pra colocar uma lâmpada — falou para si mesma, fazendo uma nota mental. Ela abriu as duas janelas e, além da luz natural, a corrente de ar que entrou foi muito bem-vinda.

O quarto estava realmente entulhado de lixo, provavelmente muita quinquilharia que todos os antigos moradores daquela casa foram juntando ali nos últimos anos. Havia de tudo: caixas de ferramentas, pedaços de cano de PVC, panelas de alumínio completamente amassadas, garrafas e caixas e mais caixas com papéis. Patrícia gastou a manhã inteira separando o que acreditava não ter mais nenhuma utilidade; ainda não havia terminado e já conseguira uma pilha consideravelmente alta de entulho no lado de fora. A sorte, ela pensou, era que muita coisa poderia ir para a reciclagem.

Mas ela também encontrou coisas que, definitivamente, não poderiam ir para o lixo. Primeiro, uma caixa de discos de vinil que eram verdadeiras relíquias — mal podia esperar para ver a cara de seu irmão quando mostrasse o vinil dos Beatles! —, uma vitrola e uma máquina de escrever — uma relíquia ainda maior, podia-se dizer, para quem já nascera na era do PC. Havia ainda uma caixa com alguns livros antigos, entre eles um exemplar em capa dura de Ulisses, de James Joyce — mais um item que deixaria Pedro animado.

Já no final da faxina, Patrícia abriu uma caixa que restava, espirrou e coçou o nariz ao sentir o cheio de mofo ainda mais forte, e encontrou várias cartas, separadas em pilhas, presas por fitas de cetim amareladas. O papel, também amarelado, era tão antigo que parecia a ponto de se desintegrar. Aquilo não serviria para reciclagem, pensou Patrícia, e estava prestes a atirar as cartas na pilha de lixo que ia se acumulando no chão, quando viu de relance a data que estava escrita em um dos envelopes.

— Vinte e cinco de janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco. Uau! — exclamou. — Inacreditável! — Aquelas cartas tinham, aparentemente, setenta anos e continuavam ali, ainda legíveis? Patrícia mal conseguia acreditar nisso. Aquilo era um fenômeno impressionante, especialmente para uma pessoa que jamais escrevera ou recebera uma carta na vida.

A curiosidade a dominou naquele momento e ela viu-se abrindo uma das cartas com cuidado, afinal o papel antigo poderia rasgar com facilidade. As palavras “violação de correspondência” passaram por sua mente, mas as cartas já haviam sido lidas pelo destinatário em algum momento dos últimos setenta anos, e essa pessoa provavelmente já estava morta também, logo, não havia nenhum problema em ler.

Além do papel amarelado, a tinta com a qual a carta fora escrita estava borrada, de modo que Patrícia distinguiu apenas algumas poucas palavras, entre as quais a data em que fora escrita — vinte e dois de janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco —, e o nome da pessoa a quem era endereçada — Elisa. Ela tornou a dobrar o papel cuidadosamente e o colocou de volta no envelope. Escolheu outra carta aleatoriamente da pilha que encontrara e dessa vez teve mais sorte. Esta fora escrita com a mesma letra e destinada a mesma pessoa. Patrícia começou a ler e a cada palavra era surpreendida pelo conteúdo. Obviamente ela nunca lera uma carta de amor em toda a sua vida, e, podia-se dizer, considerava tal coisa um tanto quanto brega. O conteúdo em si, não tinha nada de extraordinário. Aparentemente, o namorado de Elisa — que ela supunha ser alguém que vivera naquela casa muitos anos antes —, morava longe e escrevia para contar coisas do cotidiano à sua amada. Coisas simples, como o que ele tinha feito e no que estivera pensando — especialmente nela.

Terminou de ler a já pegou outra. Depois de ler cinco cartas, Patrícia já estava considerando Rodolfo — o nome que as assinava — um verdadeiro gentleman, e Elisa era certamente uma garota de sorte. Ela ficou curiosa para saber mais sobre o romance dos dois e decidiu levar a caixa de cartas consigo para continuar a leitura depois. Embora fosse, de maneira geral, uma pessoa imediatista, preferiu adiar aquilo para quando terminasse de arrumar o quarto.

Juntou todo o resto da tralha que considerava lixo e foi buscar um saco, depois levou tudo para o quintal. A máquina de escrever ficou no quartinho do despejo, mas ela levou a vitrola, os discos e o Ulisses para mostrar ao irmão.

— O que você tá fazendo com todo esse lixo, Patty? — perguntou sua mãe quando ela colocou as caixas em cima da mesa.

— Pedro! Vem cá! — ela gritou, ignorando a pergunta da mãe. — Pedro! — gritou novamente e o irmão entrou na cozinha.

— Qual o problema, garota?

— Saca só! — Os olhos de Pedro saltaram direto para o vinil do Sgt. Peper’s Lonely Hearts Club Band.

— Uau! Onde você encontrou isso? — Ele pegou o disco e ficou admirando, como se não acreditasse no que via.

— O quarto do despejo estava cheio de quinquilharias interessantes. Olha só. — Ela passou o exemplar em capa dura de Ulisses para o irmão, o que fez Pedro arregalar ainda mais os olhos. — Quanto você acha que a gente consegue vendendo no mercado livre? — ela perguntou, enquanto Pedro folheava o livro com cuidado metódico.

— A gente não vai vender nada disso, Patty! Primeiro, não é nosso pra gente vender — ele pontuou.

— É meu sim, estava jogado e eu encontrei, portanto, me pertence.

— Além disso, ninguém vende uma edição em capa dura de Ulisses. — Os dois irmãos engataram uma acalorada discussão sobre os direitos sobre os objetos que Patrícia encontrara, e no fim, ela cedeu, desistindo totalmente da ideia de comercializá-los.

Pedro levou a vitrola e os discos para o quarto para tentar ver se ainda funcionava e, se não, ele certamente daria um jeito! Enquanto isso, Patrícia retornou à leitura das cartas de Rodolfo para Elisa. Como havia mais de cem, ela teve que parar para almoçar, e até ajudou a mãe com a louça depois, tão bem disposta ficara após aquela viagem pelo romance passado de dois completos desconhecidos para ela.

À noite, quando seu pai chegou, Patrícia fez algumas perguntas sobre os antigos donos da casa, mas Artur não tinha muitas informações. Ele comprara a casa através de um corretor e tudo que sabia a respeito dela era que estivera desocupada por vários anos.

— Por que tá perguntando? — Patrícia deu de ombros.

— Por nada. Curiosidade, apenas.

Graças a sua curiosidade, Patrícia continuou a ler as cartas depois do jantar. Ela tentou organizar numa sequência cronológica — verificava a data constante no selo dos correios e ia organizando, até separar pelos anos, e concluiu que aquele relacionamento tinha durado pelo menos uns cinco anos apenas por correspondência — ela pôde deduzir, pelas palavras de Rodolfo, que eles não estavam juntos e isso só aumentava a ansiedade de Patrícia. Era semelhante a ler um livro e querer correr direto para a última página e descobrir o que acontecia com os personagens. Só que ali era uma história real, de duas pessoas que existiram e se amavam muito.

Já passava da meia-noite, mas Patrícia não conseguia largar as cartas. Estava a ponto de roer as unhas. A última que lera, datada de novembro de mil novecentos e quarenta e oito, estava quase ilegível, mas pela primeira vez ela percebeu algo semelhante a mágoa nas palavras de Rodolfo.

Querida Elisa

Hoje o meu mundo amanheceu escuro. A simples ideia de passar mais um dia sem vê-la entristece-me profundamente. Quisera eu ter o poder de mudar tudo a nossa volta! Eu sei que começo a parecer repetitivo, mas se o sou, é porque não consigo conter em mim tudo que sinto. Entendo suas dificuldades, sei que não é fácil para você ficar contra o seu pai, acredite, pois eu venho pensando em alguma maneira de fazê-lo aceitar que o que existe entre nós é verdadeiro. Eu só te peço que tenha fé, Elisa. Se o que sentes por mim é tão forte quanto meus sentimentos por você, tenha fé em nós e não desista agora. Não depois de tudo. Não depois de tanto tempo. Eu tenho esperado por você e ainda esperarei, não faça com que minha espera seja em vão. É tudo que eu peço.

O resto da carta estava ilegível, e Patrícia passou para a seguinte para tentar entender o que estava acontecendo naquele ponto do relacionamento. Já tinha percebido que Elisa e Rodolfo viviam um romance do tipo proibido, que os pais dela eram contra e tudo o mais. Ele fora embora da cidade para tentar estudar e realizar o sonho de ser médico. Também ambicionava ficar rico — isto não estava explícito, mas algumas passagens nas cartas deixavam claro que um dos motivos para que o pai de Elisa não aprovasse o namoro era por Rodolfo ser considerado um sujeito sem eira e nem beira.

Virou a noite lendo, como nunca fizera, nem mesmo com seu livro preferido. Geralmente preferia passar a noite — quando seus pais não ficavam reclamando — conversando com os amigos pela internet, os mesmos que ela encontrava todos os dias na escola. Talvez fosse por isso que as cartas de Rodolfo chamaram tanto a sua atenção. Patrícia não conseguia entender como duas pessoas poderiam se gostar tanto sem estar perto uma da outra, e como ele conseguia transpassar para o papel tudo que sentia.

Aquelas cartas ocuparam a vida de Patrícia até o dia em que as aulas começaram, mesmo depois que Artur resolveu o problema da internet, ela não abandonou seu novo passatempo, era como se aquela história agora fizesse parte de sua vida.

Ela não estava nem um pouco animada com a nova escola, mas não era como se pudesse fugir disso. Não considerou a primeira semana promissora. Pedro, embora fosse mais introvertido, acabou se adaptando melhor, começou desde o primeiro dia a fazer amizades — talvez o fato dele estar se esforçando ajudasse. Patrícia, no entanto, ainda pensava na antiga escola e nos amigos que deixara.

Conseguiu terminar de ler todas as cartas de Rodolfo e ficou triste com o desfecho que a história — se é que poderia chamar aquilo de desfecho, pensava, tristemente. As últimas cartas pareceram mais melancólicas, com um tom quase de súplica, e o pior, Patty percebeu, sem respostas. Patrícia não entendia por que Elisa havia parado de responder, não entendia por que motivo ela o deixaria. Não era possível, como ele temia, que ela tivesse simplesmente deixado de amá-lo da noite para o dia. Em todo caso, Patrícia achava que não era justo que ela não tivesse dado nenhuma explicação.

Embora as cartas tivessem sido escritas por Rodolfo, ao longo da leitura Patrícia sentira certa simpatia pela moça que as inspirava. Nas palavras dele, Elisa parecia uma garota inteligente, bem humorada, com brilho próprio e cheia de personalidade. Mas pensar que ela desistira dele, e pensar nos possíveis motivos que a levaram a tal decisão fez com que Patrícia ficasse um pouco irritada. Nenhuma garota inteligente abriria mão de um homem como Rodolfo só por ele não ser rico ou algo assim, era uma ideia ridícula!

Releu algumas das cartas, tentando encontrar alguma pista sobre o rompimento, mas não encontrou nenhuma. O fato era que, em algum momento, ela parou de responder e ele continuou escrevendo. A última carta, Patrícia checou a data, fora postada em novembro de mil novecentos e cinquenta e era nela que Rodolfo pedia, quase suplicava para que Elisa desse algum sinal de que ainda o amava, que não o esquecera. Era angustiante ler aquelas palavras, há tanto escritas, mas que ainda carregavam tanto peso.

Patrícia ficava imaginando o que sentiria se fosse ela a receber cartas como aquelas, como agiria e o que diria em suas respostas. Ela nunca se apaixonara de verdade — em seus dezesseis anos tivera apenas um namorado, e não fora nada extraordinário. Ela pensava que talvez fosse bom se existissem mais garotos como Rodolfo hoje em dia, alguém com quem uma menina pudesse conversar e rir, e que a fizesse sentir-se realmente especial. Patrícia não estava certa de que existia alguém assim ainda, e por isso considerava Elisa uma garota de sorte, ao mesmo tempo que não achava justo que ela o tivesse deixado sem nenhuma explicação. Ele certamente merecia mais consideração. Foi por isso que ela resolveu responder às cartas de Rodolfo, mais de sessenta anos depois, e explicar que a culpa não fora dele.

Pegou o caderno e a caneta e começou a escrever. Era estranho, nunca fizera isso em sua vida. Os e-mails que costumava mandar para os amigos eram escritos de maneira informal, com palavras abreviadas o máximo possível, como se elas fossem itens em escassez que precisavam ser economizados. Agora as palavras fluíam de sua mente, e a caneta deslizava sobre o papel. Havia sentimento, embora parecesse uma brincadeira, aquelas palavras eram o que imaginava que Rodolfo teria gostado de ler da mulher que ele tanto amava. Ao menos era o que ela teria gostado de ler se estivesse no lugar dele.

Terminou de escrever e colocou a carta num envelope, depois copiou o endereço que havia no remetente das cartas de Elisa. Ela havia pesquisado na internet e descobrira que o endereço ficava na cidade vizinha, não muito distante dali, o que a deixou ainda mais triste com o fim que aparentemente a história tivera. A princípio não considerou colocar a carta que escrevera no correio, mas depois resolveu fazê-lo, certa de que, ao não encontrar nenhum Rodolfo no endereço indicado, os correios devolveriam a correspondência.

A primeira experiência foi tão boa que Patrícia resolveu escrever outras cartas. Falava sobre o seu dia, sobre suas angústias. Apesar de falar de si mesma, ela sempre endereçava a carta a Rodolfo e assinava como Elisa, acreditava que, já que ninguém leria, não tinha nenhum problema.

Os dias seguiram normais, sem muitas novidades. Patrícia estava reclamando menos e conhecera algumas pessoas do colégio com quem conversava às vezes. De sua vida de antes ela ainda não esquecera, mas parecia muito mais propensa a aceitar as mudanças.  

Um dia ela estava sentada na varanda, terminando de fazer a lição de casa, quando viu uma bicicleta se aproximar e parar de frente à sua casa. O garoto — que tinha provavelmente sua idade — que pedalava a bicicleta a deixou encostada à calçada e subiu os três degraus até o alpendre. Ele tocou a campainha antes de perceber a presença de Patrícia.

— Oi — disse ela, curiosa. O garoto se virou, assustado ao ouvi-la, depois sua expressão suavizou e ele sorriu.

— Oi. Você mora aqui?

— Sim. Posso ajudar? — Patty deixou o caderno na mesinha quando ele se aproximou; viu quando ele colocou a mão no bolso e pegou um envelope. Imediatamente ela reconheceu que era um dos que usara para enviar as cartas para Rodolfo.

— Ah, sim, eu estou procurando por Elisa Antunes. Ela mora aqui também — ele afirmou com convicção e não era para menos, o endereço estava no envelope com o carimbo dos correios e tudo. Era a última coisa que Patrícia esperava na vida, “seu Rodolfo” aparecer ali em carne e osso, o que não fazia nenhum sentido, já que ele supostamente deveria ter entre oitenta ou noventa anos. Ela ficou parada por um tempo, sem saber o que dizer ou fazer.

— Não mora nenhuma Elisa aqui — disse, tentando não soar grosseira. — Sinto muito — acrescentou. Ele arqueou a sobrancelha, olhou primeiro para o envelope, depois para a garota, então novamente para o envelope. Parecia um pouco confuso, coçou a cabeça e falou:

— Então alguém está fingindo ser ela — disse ele, sério. Patrícia mordeu o lábio, sentindo-se culpada. Pensou um instante antes de falar.

— Olha, eu não fiz por mal, sério, eu não imaginei que alguém... Você deveria ter noventa anos ou mais! — Ele balançou a cabeça, sem entender. — Rodolfo?

— Ah! Então foi você quem escreveu as cartas? — Ela assentiu, devagar. — Não, eu não sou Rodolfo — Patrícia não conseguiu evitar um ar de decepção. — É o meu avô. — ela arregalou os olhos dessa vez.

— Então ele está vivo?

— Por sorte. Ele quase teve um ataque cardíaco quando viu essas cartas. Você tem ideia do que fez? — Patrícia engoliu em seco. Certamente não tinha ideia! — Como você conseguiu o endereço, aliás? E como sabia sobre a Elisa?

Patrícia o convidou para sentar e depois contou toda a história sobre as cartas. O rapaz escutava atento, dividido entre achar divertido e irresponsável o que ela fizera. Ele, por sua vez, contou como o avô tinha reagido às cartas e qual havia sido, afinal, o verdadeiro desfecho do relacionamento dele e Elisa.

— De acordo com o que ele contou quando ainda estava cem por cento lúcido, ele desistiu depois que ela parou de responder às cartas, não por não amá-la, mas porque queria respeitar a decisão dela, embora não a entendesse. Meu avô passou alguns anos fora, se tornou médico, casou-se com a minha avó e seguiu com a vida dele. Ele nunca a esqueceu, mas não voltou a ver ou falar com a Elisa ou mesmo ouvir falar dela, até que a sua carta chegou às mãos dele. A empregada da nossa casa não sabia de nada, então quando ela recebeu a correspondência e viu uma carta endereçada a ele, achou que não faria mal. Ele tem poucos momentos de lucidez agora, mas ainda conseguiu ver o nome dela no envelope e pediu ao meu irmão pra ler pra ele. De repente ele estava chorando, a pressão subiu e nós ficamos com medo que ele morresse. — Ele parou de falar e ficou encarando-a por um instante. Patrícia estava silenciosa, refletindo sobre as consequências de suas brincadeiras e não gostava da sensação de culpa. Sentira-se tão próxima de Rodolfo enquanto lia suas palavras há tanto escritas e agora quase causara sua morte?

— Eu sinto muito — murmurou. O rapaz soltou um longo suspiro.

— Ele está bem agora. Foi um baita susto, mas ele vai sobreviver. Na verdade, eu não vim aqui apenas pra pedir pra Elisa, ou melhor, você parar de escrever essas cartas. Acontece que o vovô agora se recusa a aceitar que as cartas não são da mesma Elisa que ele conheceu, enfim, ele acredita sinceramente que a namoradinha de quando ele tinha vinte anos ainda está apaixonada por ele, então ele mandou uma resposta. — Ele colocou a mão no bolso e retirou um segundo envelope. — A letra é minha, mas as palavras são dele.

Patrícia sentiu que tinha a mão trêmula quando aceitou o envelope. Abriu devagar e desdobrou a folha de papel que havia dentro dele. A letra, diferentemente da de Rodolfo que era bem desenhada, era um pouco difícil de ler, tinha um estilo comprido, inclinado para a direita e se numa palavra tivessem dois t’s ele usava um traço só para cortá-los. Ainda assim, a leitura a emocionou e, ao final, sentiu os olhos úmidos e sorriu entre lágrimas.

— A gente deveria encontrá-la, sabia? — disse ela, enquanto enxugava os olhos com a manga da blusa. — Ela deveria saber disso — falou, mostrando a carta. O garoto balançou a cabeça.

— Não é tão simples assim, ele não sabe dela há mais de sessenta anos! Talvez ela nem esteja mais viva!

— Se o Rodolfo está, ela pode estar também. Alguém nessa cidade deve saber alguma coisa sobre ela, a gente só precisa procurar.

— Você é maluca, não é? — disse ele, mas estava sorrindo, como que encantado com a maneira otimista como a garota via as coisas. — A propósito, meu nome é Ricardo — ele se apresentou, achando que ainda não era tarde demais para isso.

— Patrícia — ela respondeu e lhe estendeu a mão, que ele apertou. — Quando você acha que nós podemos começar a procurar?

— Que tal agora? — ele cedeu, como se fosse incapaz de permanecer indiferente ao desafio. Patrícia sorriu, contente e empolgada.

Nada como tentar juntar duas almas apaixonadas.


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Notas finais do capítulo

¹Fernando Pessoa



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