O Escafandro e a Borboleta escrita por Kim Sun


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas :)
Essa One está rolando no meu Word há muito tempo, desde que eu vi o desenho do projeto da Pam, do The Paperline. Porém, depois de muita preguiça e enrolação, aqui está ela, prontinha.
Ela foi também inspirada na música Born To Die da Srta Lana Del Rey ♥
Espero que gostem, e boa leitura >



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O sol estava quase desaparecendo no horizonte quando uma menina de cabelos negros e compridos entrou na sala de detenção, com a maior lentidão possível. E Sam, o único aluno que ocupava uma das cadeiras vazias observava isso irritado, enquanto balançava os pés sobre a mesa no ritmo da música explodindo em seu fone de ouvido.

Era a quarta vez seguida que ele pegava detenção em duas semanas por matar aulas, brigas ou respostas mal criadas e Sam não poderia querer outra coisa a não ser sair dali antes que ficasse louco. Suspirando pesadamente, ele piscou algumas vezes ignorando seus devaneios e notando que a garota havia sentado na cadeira a sua frente. Mas ela não estava em um estado normal. Não mesmo! As mãos pequenas e delicadas serviam de apoio para o queixo e os olhos castanhos o observavam, enquanto ela se acomodava na cadeira, agora virada para ele. O que ela estava fazendo?

Primeiro Sam olhou para trás, imaginando que fosse algo no fundo da sala que prendia a atenção da garota ou algo em seu rosto, entretanto, depois de alguns segundos ele resolveu encará-la com cara feia até que ela desistisse e voltasse a fazer  alguma coisa que não fosse esquisita ou o envolvesse. Ele sabia que ela queria conversar, mas ele não iria entrar no jogo.

Dois, dez, quinze minutos se passaram e nenhum dos dois se moveu. A garota era persistente e... um pouco hippie, Sam percebeu. A saia longa e vermelha cobriam parcialmente suas sandálias de tiras de couro e a blusa branca de renda deixava um pouco da barriga a vista. A fita amarrada na testa era colorida e ficava em evidência em contraste com a pele bronzeada. Bonita.

Ele poderia ter a analisado mais, entretanto, a voz macia e calma o despertou, fazendo-o perceber que ela desistira de encará-lo finalmente.

— Sou Tess! — Ela cantarolou, levantando-se.

E eu não ligo!, ele pensou, a ignorando. Para demonstrar a indiferença, ele levantou a passos firmes e foi sentar em uma outra cadeira do outro lado da sala. Sam colocou a maior máscara de “não chegue perto” que conseguiu, retirando um cigarro e um esqueiro do bolso da jaqueta cinza.

Tess riu daquela atitude e caminhou até ele, sentando-se na mesa de Sam. Porque diabos ela havia cismado com ele?

— Temos duas horas até o fim da detenção! Não acha melhor nos conhecermos? — Ela incitou, chegando o rosto para perto do dele.

Sam revirou os olhos ao mesmo tempo em que Tess puxou de repente o cigarro recém aceso da mão dele. Ela deu uma tragada, liberando a fumaça no rosto dele e com um sorriso, jogou a cabeça para trás. Aquilo foi a gota d’água. Em um rompante Sam levantou da cadeira e puxou com força o braço da menina, sacudindo-a. Ela tremeu com a força dele e o fitou com olhos doces, mesmo diante da reação agressiva.

Porque você não me deixa em paz?, ele se perguntou, a encarando de volta. O braço livre de Tess começou a se mexer lentamente, até estar tocando a curva do pescoço dele. Sam não soube reagir aquele movimento inesperado e ficou parado, ainda a segurando, esperando para descobrir o que ela pretendia. As mãos pequenas deslizaram sobre a jaqueta, até chegar ao ombro dolorido dele. Ela apertou.

— Ai! — Ele grunhiu.

Seu aperto instintivamente ficou mais forte ao redor do braço dela. Sam não queria machucá-la. Afinal, ele não batia em garotas. Mas ela o estava tirando do sério. Talvez se a assustasse, Tess, ou seja como for o nome dela, desistiria de manter algum tipo de contato com ele.

— Você viu o que eu fiz com Joey lá fora, mais cedo. — Sam fez uma pausa, deixando que as respirações deles fossem o único barulho no local. E a dele era rápida, feroz. — Eu sou a última pessoa que você quer irritar agora!

Como anunciado, Sam soltou Tess e virou-se para voltar para o fundo da sala. Porém a menina era insistente e falou outra vez, em tom de desafio:

— Joey sabe como bater! — Ela revidou, colérica.

No mesmo instante, Sam parou de caminhar. Entretanto, permaneceu de costas.

— Mas ele não puxa briga assim tão fácil. As pessoas gostam dele por aqui! Você possivelmente o irritou muito,... ou o contrário.

Gargalhando, ele deu meia volta para encará-la. O sarcasmo tomando conta do semblante sério.

— Eu posso ser bem irritante quando quero... Ah, espera, você sabe do que eu estou falando não é? Está fazendo a mesma coisa agora.

Tess balançou a cabeça na negativa, fechando os olhos e deixando que um sorriso de lado surgisse em seus lábios, como quem diz “não vamos chegar a lugar nenhum”. Acariciando o próprio pescoço, ela deu alguns passos e suspirou.

— Joey fez promessas de bater em alguém esta tarde, … em uma garota. Poucos sabem disso, duas ou três. Como descobriu?

Ah, então era sobre isso todo o teatro? Sam riu com escárnio. Claro que tinha um interesse! Ele não lembrava de vê-la com Joey ou qualquer outro que tenha se envolvido na briga. Qual era a parte em que saber sobre o assunto lhe faria ganhar?

Bom, não importava. Sam só queria acabar com o desconforto de ter alguém lhe enchendo o saco.

— Ouvi pelos corredores. — Sam zombou, encarando Tess.  —  Ela deve estar agradecida, então acho que isso é o suficiente, não concorda?

Sentando-se em cima da mesa ele a olhou desafiador, mas ainda com o mesmo ar de despreocupação. Se era isso que ela queria saber, bem, Sam estava assumindo. Ele acertara o rosto de Joey, por suas promessas bárbaras de vingança contra uma garota. Ele se gabava pelos corredores em segredo dizendo as coisas terríveis que faria com ela, quando a encontrasse, e não faria sozinho. A garota hippie, Joey chamava com ódio.

Espera… Sam levantou-se, sentindo o corpo ficar rígido.

— E eu estou agradecida. — Tess disse, dando alguns passos a frente.

Ele recuou. Pela primeira vez naquela sala ele estava com um tom de interesse e surpresa nos olhos. Ela parecia esperar alguma reposta de Sam, e bem lá no fundo, ele quis dizer algo. Mas durou pouco. Logo ele estava com o mesmo semblante sério.

Tess bufou.

— Não precisava ter pegado detenção pra me agradecer… — Ele murmurou, dando de ombros. — Só toma cuidado com quem anda da próxima vez, hippie!

— Tess! — Ela corrigiu. — Eu não peguei detenção por isso, foi apenas coincidência!

Sam semicerrou os olhos. Nem ferrando que o mundo havia conspirado pra detenção acontecer. E como confirmação, Tess jogou as mãos pro alto revirando os olhos e voltou a se aproximar dele. Outra vez, perto demais.

— Okay, não foi coincidência. — Ela assumiu. — Tenho meus métodos pra me encrencar de vez em quando!

Tess, com um sorriso triunfante nos lábios, balançou na frente do rosto de Sam o chaveiro metálico que ele mantinha sempre no bolso esquerdo. Okay, por essa ele não esperava. Ele nem sentiu quando ela o pegou! Coçando a cabeça, ele puxou de volta o objeto e o guardou, um pouco menos rude.

— Você roubou só pra falar comigo? — Sam arqueou a sobrancelha, balançando a cabeça na negativa.

— Óbvio que não, — Ela respondeu, parecendo sentir-se ofendida — eu apenas gritei com o diretor por causa do campeonato estadual de futebol. Mexa no bem mais precioso da escola e você irá irritar muitas pessoas. Literalmente!

Sam assentiu, observando-a sentar na mesa de frente para ele.

— Por isso Joey está com ódio de mim. Estava mexendo alguns pauzinhos para desviar parte da verba do campeonato para clubes de artes do colégio. — Suspirando, ela colocou uma mexa de cabelo atrás da orelha. — Isso não é nada bom pro time, muito menos pro quarterback Joey bobão!

Sam riu do adjetivo que ela usou para se referir a Joey. Ele o teria substituído por um muito mais pesado e inapropriado, porém duvidava que ela teria coragem de pronunciar.

— Está vendo, você está sorrindo! — Tess apontou, com uma alegria súbita. — Deveria deixar isso acontecer mais vezes.

Ainda disposto a não se deixar levar, Sam cerrou os lábios após Tess fazer a afirmação, destruindo qualquer vestígio de graça que ele poderia ter encontrado alguns segundos atrás. Com o tom baixo e afiado, Sam disse:

— Se veio aqui me agradecer, já o fez. Agora me deixa em paz!

E então Sam mirou com os olhos a grande janela da sala em que estavam, fingindo ignorar a presença dela, mesmo que fosse impossível não ouvir o farfalhar da saia de Tess enquanto ela se mexia com as pernas cruzadas na mesa da cadeira dele. O silêncio não duraria muito se dependesse da hiperatividade da garota, mas ele iria aproveitar cada segundo, observando a grama do campus e os estudantes caminhando por ali enquanto ela não protestasse com alguma baboseira.

— Hey, eu não quis ser rude. — Adeus silêncio — Só que… Você é muito diferente de Joey e o que quer que queira passar pros outros. Senão não teria me livrado de apanhar muito depois da aula.

— Não quero passar nada! As pessoas é que julgam o livro pela capa, não é Tess?

Suspirando, ela o ignorou.

— Isso não é verdade. Escuta, se você está dirigindo em alta velocidade e um pedestre está atravessando alheio enquanto o sinal está verde, o que você faz? Freia ou continua?

— Continuo. — Ele respondeu, entediado.

— Náh! Você freia, óbvio. Mas você quer dar a impressão de que atropela.

Sam revirou os olhos.

— Vamos tentar de novo. Duas pessoas em uma sala… Eu e você, por exemplo! O que você faz? Conver...

— Beijo!

Tess paralisou.

— O que foi? — Ele perguntou inocente, fingindo não ter dito nada demais. — Isso não é uma opção pra você?

— Poderia, se você fosse menos… ranzinza! Na verdade, eu só esperava conversar com o mesmo Sam da quarta série. Aquele que participou da exposição de artes comigo, lembra? Vai, não finge que esqueceu.

Do que ela estava falando? Que exposiçã… Uau, Tessália White! Ele se lembrava. Sam mal podia acreditar que umas poucas palavras o transportariam para anos atrás. Os mesmo cabelos longos, os mesmos olhos escuros e a mesma persistência quando cismava com alguma coisa.

Bom, tudo havia mudado desde então. Contudo, ela parecia a mesma… menos Sam. Os cabelos escuros ficaram compridos e ganharam um corte radical na lateral. Umas tatuagens também faziam parte da pele dele e o comportamento ganhara uma nova direção. Na quinta série, ele teria protestado com ela seja qual fosse a causa, agora, ele a ignorava.

Sem perceber, Sam começou a verbalizar o turbilhão de lembranças que se passava em sua mente.

— Você era esquisita naquela época! Tirava os sapatos durante as aulas, reclamava com a Srta Anne dizendo que era a porta voz das árvores e que não permitiria desperdício de folhas…

As bochechas de Tess ganharam um tom rosado com a lembrança.

— Parece que o jogo mudou, não é mesmo? Não sou eu a esquisita agora!

Por alguns segundos eles continuaram apenas rindo e aproveitando a sensação do momento, até que ele se tornasse risadas fracas e uma troca de olhar tensa.

— Só quero ser sua amiga, Sam. Esse pode ser o início de uma grande parceria, sabia? — Ela ia continuar, mas parou, parecendo ponderar sobre o que acabara de dizer — Ou pelo menos é o que acontece nos seriados.

Ela voltou a rir, ele não.

— Estamos no mundo real, Tess.

— Bom, o mundo é real, mas as suas atitudes definem o mundo em que você vive.

Sam ficou quieto. Mas era óbvio que ela aproveitaria a oportunidade para falar mais e mais, então Sam resolveu intervir, entretanto, ela foi mais rápida e deu um soco “amigável” em seu ombro machucado. E droga, como aquilo doeu.

— Ai! — Ele reclamou de dor, pela segunda vez naquele dia.

Tess percebeu o que a atitude causara a ele e por isso, com cautela e um pouco de audácia, tocou na jaqueta de Sam puxando-a até deixar o braço esquerdo despido. Ele não gostou muito da atitude da garota e até pensou em reclamar, entretanto, preferiu permanecer quieto e ver o que ela faria.

Puxando para cima a manga da camisa dele, Tess deixou o hematoma exposto. A boca dela se abriu ligeiramente, enquanto a mancha roxa enorme contrastava na pele clara dele. Foi engraçado a maneira como Tess reagiu, porém, melhor ainda foi a mão gelada e delicada dela sobre a região dolorida. A atitude deu uma sensação de alívio tão grande, que Sam quase deixou escapar um suspiro. Quase.

—  Isso não é nada perto do que o Joey ganhou. — Sam zombou de olhos fechados, dando uma leve risada — No mínimo mais quatro como esse pelo corpo todo.

— Eu não vou dizer que isso não me deixa feliz momentaneamente.  — Tess respondeu, ajeitando a jaqueta de Sam para o devido lugar. — Inclusive as consequências disso… Eu estar aqui, intacta. Mas também não vou afirmar que fico feliz com a ideia de pessoas semeando ódio enquanto lutam feito animais.

— Então você preferia que eu tivesse sido passivo com Joey...

— Não, você  entendeu errado. O que eu quis dizer é que em algumas situações atitudes como essa são necessárias, mas que na maioria das vezes o melhor seria evitar!

— Tudo bem, — Sam fingiu não ter captado o que ela quis dizer — Na próxima eu irei apenas conversar com ele e pedir que por obséquio a deixe em paz. Isso soa melhor?

Tess bufou, revirando os olhos.

— Na próxima você vai deixar no mínimo o dobro de marcas no corpo dele!

— Então faremos isso — Sam apontou para o próprio peito, para Tess e depois para sala — de novo?

Tess respirou fundo e abriu a boca para responder, entretanto, foi interrompida pelo barulho da porta. Alguém, ou melhor, o rosto enrugado e familiar da Srta Jefferson apareceu na porta, anunciando que era o fim da detenção para ela.

Com um aceno, a hippie começou a pegar suas coisas mecanicamente até que a professora estivesse fora de vista e os dois voltassem a ser os únicos no campo de audição. E com toda sua audácia, aproximou-se de Sam, deixando que a respiração dela soprasse o rosto dele.

Essa garota é um perigo, ele pensou.

— Adeus, hippie. — Ele sussurrou, sem tirar os olhos dos dela.

Ninguém nunca passava pela sala de detenção mais de uma vez. Apenas ele. Então muito provavelmente, eles não se veriam mais, a não ser pelos corredores.

— Eu ainda preciso de dinheiro para o grupo de artes. — Ela sussurrou de volta, com um sorriso travesso nos lábios. — Então acho que isso é um até logo.

E como se estivesse flutuando, Tess saiu lentamente, assim como chegara. A saia balançando levemente, os cabelos longos batendo nas costas. Antes de sair completamente da sala, ela virou para ele e com a cara mais cínica do mundo acenou, deixando visível entre seus dedos o chaveiro de prata de Sam. Tess o roubou novamente! Rindo, ele suspirou, sabendo que o encontro dos dois não havia terminado ali. E quer saber, ele estava feliz com isso.

A hippie e o punk. Quem poderia imaginar?


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Notas finais do capítulo

E aí? Gostaram?