Lírios escrita por march dammes


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

toot toot



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Lírios

Nossa história se passa em um reino além da imaginação.

Um reino não muito grande, assemelhando-se mais a um feudo. Uma pequena cidade, quase rural, mantida pela rica família Marsh. Formada atualmente por um sábio homem (apelidado pelos transeuntes de Rei do Pântano, devido ao mangue logo nos limites da cidade), sua perfeccionista esposa, um filho mais velho que viaja muito em seus estudos e uma filha na flor da idade, é a última ramificação de uma longa linhagem de monarcas do Norte. Por que haviam se estabelecido naquela pequena cidade em decadência no Sul, aos poucos tornando-a mais brilhante e movimentada, ainda era uma incógnita.

Quanto à vila, outrora não passaria disto: uma vila. Uma pequena área rural e barrenta entre um morro e um pântano, de um povo que sobrevivia basicamente de agricultura. Perdiam as esperanças quando um carro puxado por cavalos de raça despontou contra o sol nascente, trazendo a família que exigiu espaço e estradas. Construiu praças, construiu monumentos – logo haviam rodas de bicicleta circulando pelas ruas de tijolinhos, homens de terno lendo jornais em alguma banca na calçada, flores coloridas nas janelas. E claro, a praça principal, sempre lotada de senhores conversando nos bancos e crianças pequenas importunando os pombos, enquanto casais namoravam aos arredores da suntuosa fonte. E na placa de bronze: “Erguida em homenagem à família Marsh pela própria família Marsh, por tirar nossa cidade da miséria e ensinar-lhe um novo significado de progresso.”

O boato que circulava era que a bela filha do Rei do Pântano estava procurando um pretendente. Perto de completar dezoito anos, a jovem era educada, gentil, prestativa e muito inteligente. Tocava piano, sabia costurar, conhecia artes e ciência: possuía todos os dotes que uma boa esposa deveria ter. Afinal, essas virtudes lhe eram exigidas, pois deveria honrar o nome da família e continuar sua árvore genealógica com um rico marido e muitos, muitos filhos. E, no entanto, apesar de ser muito cortejada e ganhar diversos presentes, limitava-se a sorrisos polidos e as flores eram encontradas depois em alguma lixeira de latão.

Nas festas, dançava com todos: não mostrava interesse em nenhum.

Um dia, chegou na cidade um forasteiro. Não era um trabalhador, nem um viajante, nem um rico fazendeiro que desenvolvera interesse pela economia da cidade. Não. Era um cavaleiro.

Montado em um cavalo baio, levando uma espada na bainha e um carregamento de necessidades básicas, chegou pelo Leste e recusava-se a mostrar o rosto. Não levou sequer dois dias para despertar a curiosidade dos moradores.

Frequentava os bares, conversava com os homens, mas passava a maior parte do tempo com seu cavalo. Tratava-o quase como igual. As mulheres mais velhas começaram logo a cochichar hipóteses, comentando, em suas reuniões para tomar chá, que talvez se tratasse de um justiceiro misterioso, que passava de cidade em cidade para zelar por elas, e dessa vez a cidade do pântano era a que precisava de proteção. Outras senhorinhas mais neuróticas, no entanto, acreditavam ser um assassino de aluguel – e isso explicava, talvez, por que ele nunca tirava o chapéu.

Depois de alguns dias na estalagem, sem data para ir embora e sem explicar o que ali fazia, o cavaleiro ficou a par da situação da família feudal que mantinha aquela vila: soube do futuro casamento da princesa. E o cavaleiro se interessou.

Apareceu na porta do solar bem-cuidado da afortunada família. Recusou-se a sentar, e também negou uma xícara de chá. Trocou umas palavras com a criada; até que um senhor bem vestido finalmente desceu as escadas, questionando quem desejava falar-lhe.

Foi a primeira vez diante de alguém naquela cidade que o cavaleiro tirou o chapéu. Em um trejeito respeitoso, plantou um joelho no chão para reverenciar o Rei.

“É uma honra finalmente conhece-lo, senhor Marsh. Soube muito de vossa senhoria nos bares e ruas dessa cidade.”, disse, com o máximo de polidez possível “Sou um forasteiro. Um buscador da igualdade e da justiça, que deixou sua vila e família há muito tempo atrás de modo a peregrinar por terras desconhecidas, livre. Faço pequenos trabalho para famílias ricas que precisam de um protetor pessoal. Mas não me importo em sujar minhas mãos com algum trabalho mais pesado...”, olhou para cima “Há algo em que meus serviços possam ser úteis?”

O rico senhor avaliou o visitante com seus olhos sábios. Notou suas roupas humildes e sua posição em respeito; notou seus cabelos curtíssimos e sua aparência jovem. Não se convenceu de que aquele mero rapaz tivesse alguma experiência.

Mas permitiu que trabalhasse para si. Empregou-o para pequenos trabalhos de entrega, como mensageiro e às vezes guarda. O cavaleiro mostrou-se útil e esforçado. Chegou a oferecer-lhe um quarto em sua mansão, mas o outro recusou; disse preferir a estalagem, onde ficava mais perto do povo e não incomodava a renomada família.

Chegou logo o dia que o cavaleiro conheceu a filha do doutor. O Rei do Pântano, como chamavam nas ruas, pediu-lhe que parasse seus estudos por um momento e viesse conhecer o novo empregado – que ficara mais íntimo da família, e agora aceitava um pouco de chá e leite quando ia receber seu pagamento e tratar de negócios com o senhor Marsh.

A moça desceu os degraus em passos tão leves que o cavaleiro quase não ouviu. Seu vestido e robe arrastavam-se no chão de taco, a saia suntuosa e cheia, os dedos enluvados e os cabelos volumosos adornados por uma tiara que pendia uma safira à testa.

“Senhorita”, vocalizou o cavaleiro, levantando-se da cadeira e pousando a xícara de chá sobre a mesinha, para que pudesse se ajoelhar aos pés da dama “Estou encantado.”

A jovem herdeira lhe estendeu a mão. O cavaleiro tomou-a, depositando um beijo nas costas da mesma.

Não podia ter sido o único a sentir uma corrente elétrica debaixo da pele, tão logo tocou a dama.

“É sempre um prazer receber um visitante”, disse a moça, sorrindo, enquanto o cavaleiro se levantava “E encho-me ainda mais de alegria ao saber que meu pai conseguiu um empregado tão próprio.”

A princesa sentou-se e sua dama de companhia serviu-lhe uma xícara de chá. Conversaram sobre política, o Rei do Pântano regozijando-se com o conhecimento da filha, vez ou outra mandando olhares ao cavaleiro, como se confirmasse que o tal estivesse impressionado.

Mas, embora mandasse expressões faciais em confirmação, tinha a mente incansavelmente trabalhando para decifrar a incógnita que eram aqueles olhos criados para manter as portas da alma constantemente trancadas.

Era a terceira vez naquela semana que o cavaleiro escapava do horário de trabalho para pendurar-se na janela da jovem herdeira.

Estava trabalhando para os Marsh há alguns meses. Uma parte de seu salário pagava a hospedaria, a outra, as bebedeiras e festejos; se recusava terminantemente a viver com a família. Mas isso não necessariamente significava que não lhe agradava a companhia dos familiares.

Apoiando os pés nos tijolos proeminentes, o cavaleiro tinha metade do tronco sobre o parapeito da princesa, apoiando a cabeça nos braços e um sorriso no rosto. Nunca entrava em seu quarto; não podia.

“Acha mesmo uma boa ideia continuar vindo todas as tardes?”, perguntou a dama, um pouco aflita, sentada em sua poltrona.

“É arriscado”, admitiu o cavaleiro, “Mas como poderia eu suportar os dias sofridos sem poder vê-la nem uma única vez?”

A moça enrubesceu e sorriu. Desviou discretamente o olhar, usando do leque rendado para cobrir sua expressão ao ser tão delicadamente cortejada.

“És gentil.”

“Ou simplesmente apaixonado.”

A princesa revirou os olhos, embora ainda com o sorriso dançando em seus finos lábios. Fechando e pousando o leque no braço da poltrona, seguiu até o empregado, abaixando-se devagar à sua frente e tomando-lhe o rosto nas mãos.

Apaixonada”, frisou. “Não precisa continuar fingindo quando estivermos sozinhas, liebe.”

O cavaleiro fechou os olhos e sorriu. A dama era a única que sabia de si – que sabia de seu segredo. Vinham compartilhando segredos há um bom tempo, isoladas do resto da cidade e dos moradores da casa. Em seu mundinho particular.

“Nunca fingirei enquanto estiver ao seu lado”, sussurrou a cavaleira, uma vez que a herdeira queria isso tanto. Abriu seus olhos e encarou os dela, doces, até que a dama a soltasse e voltasse a se erguer. “Você sabe...”, começou a cavaleira, usando as palmas das mãos no parapeito da janela, de modo a erguer um pouco o corpo “Isso poderia ser amor.”

No caminho de sua cadeira, a princesa congelou no lugar e olhou por sobre o ombro, quase hostil. “Perdão?”

“Ora, vamos, tomemos uma chance agora; poderíamos nos apaixonar”, protestou a cavaleira, encarando a herdeira. Esta, que suspirou em exasperação, encolheu os ombros, e baixou a cabeça. Entrelaçou os dedos nervosamente. Então se virou para fitar a outra:

“Não”, disse, e não era a primeira vez que a cavaleira ouvia aquele tom, “Isso simplesmente não é amor.”

Mas, ao contrário do esperado, a estrangeira não se abalou. Sorriu e encolheu os ombros, como se estivesse conformada, e oscilou na janela ao preparar-se para sair.

“Tudo bem.”

Desceu pelo muro usando as trepadeiras de apoio, prestando atenção em onde colocava os pés. E enfim pulou para o chão, ainda erguendo os olhos, e vendo sua princesa acenar em despedida. Fez uns trejeitos com o chapéu, mandou-lhe uma reverência; e partiu antes que percebessem que não estava cumprindo seu trabalho.

A cavaleira sabia que elas poderiam funcionar juntas – mesmo que sua amada fosse realeza, e ela não.

Havia uma chance de ela estar certa e a dama estar errada, só desta vez. E a cavaleira lhe provaria.

Todos os dias a cavaleira lhe visitava. E todos os dias ela insistia a mesma coisa:

“Vamos, vamos, demos a isto uma chance, agora! Nós poderíamos nos apaixonar!”

E todos os dias o mesmo suspiro exasperado da parte da filha do Rei do Pântano, o mesmo olhar na direção dos Céus, como se pedisse clemência, e a mesma recusa em tom de quem ainda estava numa peleja interna da realidade contra o desejo. Mas sua amada não podia, por uma vez, usar o coração em suas escolhas?

Sujava-se todas as tardes de lama e orvalho para ver sua amada, e perguntava-se todas as noites antes de dormir: “O que eu não faria por você?”. Era conhecida por encantar diversas moças com seu jeito misterioso, mas roubar o coração da filha do Rei do Pântano? “Bem, isso é algo novo.”

Apesar de sua inicial resistência, a princesa estava saindo da linha. Lentamente, parecia ceder mais, ser mais persuadida pelos encantos que a vida ao lado da cavaleira lhe oferecia, uma vida a levar sem responsabilidades ou preocupações.

Uma vida andando nas nuvens, eternamente aquele sentimento quente de segurança da primeira paixão.

E fora possivelmente o pedido manso de sua cavaleira, um ano exato depois, a fazê-la mudar de ideia, por fim.

“Venha, querida, fuja comigo...”, ofereceu a amante, tomando-lhe o rosto em uma das mãos e entrelaçando seus dedos ternamente com a outra, “Vamos embarrar os pés. Não nos perderemos, você verá, mesmo que o barro seja escuro. Quando chegarmos lá, fique próxima apenas de mim.”

A princesa respirou fundo, e ponderou pelos últimos minutos antes de abrir os olhos.

“Eu aceito.”

Não foi preciso cerimônias ou preparativos; fugiram ao entardecer, correndo por ruelas desertas e campos de flores, de mãos dadas durante todo o trajeto. Suas pequenas lembranças da vida que deixavam para trás foram levadas no companheiro de viagem inseparável, o cavalo baio, mesmo que agora tivesse de dividir a lealdade de sua amazona.

Cavalgaram durante toda a noite. A dama, ainda sem acreditar no que fazia, abraçada à sua protetora, um sorriso nos lábios. A cavaleira, aceitando calmamente sua restrição de sono.

Desmontaram ao finalmente pararem em uma clareira. A cavaleira postou-se atrás de sua dama, cobrindo seus olhos com as mãos.

“Traga a chuva e traga o lodo”, disse ela, e sua voz trazia um tom de riso, “porque sempre estivemos bem. E houve essa época, não muito tempo atrás, que você me ouviu dizer...”

A visão foi lhe dada de volta. Bem à frente de seus olhos, um chalé há muito abandonado, ao centro da clareira. E, no entanto, apesar de solitário e antigo, era claro que alguém o havia preparado para morar. Uma vida sendo levada no bosque, ou melhor...uma lua de mel sem data de término.

A princesa pôs a mão em frente à boca, incrédula. Ao seu ouvido, sua amante murmurou:

“Ora, vamos, tomemos uma chance agora; poderíamos nos apaixonar.”

E não é que realmente acontecera?


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Notas finais do capítulo

(sim, lírios é uma referência ao japonês "yuri", lord almighty)
mereço comentários?