O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 57
Shalom


Notas iniciais do capítulo

Olá,

Não se engane, este realmente é o Epílogo - possivelmente o primeiro Epílogo com título, mas OK. No hebraico, "Shalom' é usado para "olá" e também para "adeus"

Boa leitura!



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Devon, Inglaterra. Julho de 1914.


            Uma maçã.

            Na solidão de seu quarto bagunçado, Grigori olhava fixamente para ela. A porta estava devidamente trancada, como ele costumava fazer nessas situações. Afinal, ele não queria ser descoberto por seu irmão, Georgi, ou por sua mãe, Esther, muito menos por seu avô, Abraham. Respirou fundo, deixando seus olhos azuis encarando mais uma vez a vermelha e brilhante maçã em sua mão.

            “Emily... Você quer se casar comigo?”

            Era difícil ver naquela fruta vermelha, já com algumas mordidas, o rosto da filha de Watson e seus cabelos vermelhos e cacheados, mas o menino conseguia ter imaginação o suficiente para isso. Que Emily não soubesse que ele costumava compará-la a uma maçã mastigada.

            Grigori ainda não estava satisfeito com sua performance. Sua voz era hesitante, trêmula, quase covarde. Culpa do nervosismo de ter de revê-la de novo, algo que seria em alguns dias. A última vez que tinham se encontrado foi no Natal do ano passado, onde beijaram-se pela primeira vez aproveitando-se de uma queda de luz na residência dos Watson. Porém, coisas ruins aconteceram desde então e o rapaz mandou-lhe uma carta desesperada a ela. Ela o atendeu, mais uma vez enganando seu pai e indo ao seu encontro, desta vez em Liverpool. Apesar de seu pedido estranho, mais uma vez Emily não se assustou e resolveu acatá-lo. Em se tratando de Grigori, Emily pouco se importava se receberia um bom castigo de Watson por desobedece-lo.

            Furioso com seu péssimo desempenho, o menino atirou a maçã longe, derrubando uma pilha de peças mecânicas e causando intenso barulho. As peças o lembraram de outro plano frustrado: o avião. Desde que vira um avião em sua viagem à Paris, há dois anos atrás, o menino ficara fascinado com a máquina capaz de voar. Desde então, desenvolvera uma paixão pelo tema. Para ficar mais perto de aviões, Grigori passava as manhãs trabalhando como mecânico na oficina de um nobre inglês da região, chamado Sir Richard Grace, um rapaz de vinte e cinco anos que tinha dinheiro o bastante para ter um avião. Como sabia que o motor era o mais próximo que Grigori poderia chegar, jamais sendo piloto, o menino passou a tentar construir seu próprio avião. Tomava peças velhas do automóvel de seu avô para tentar montar um avião semelhante, mas jamais conseguiu. Achava-se burro por isso. À medida que seu irmão, Georgi, encontrava dificuldade para escolher uma profissão diante do leque de possibilidades diante de si, Grigori sentia-se frustrado por não ser inteligente o bastante para fazer o que gostava.

            Era em momentos assim que o rapaz lembrava-se de seu pai, Sherlock Holmes. Não sabia o que houve com ele desde aquela noite de Natal, em que foi flagrado comendo biscoitos. Logo sua imaginação de criança o fez imaginar seu pai em algum caso secreto, investigando para algum cliente ilustre, ou quem sabe, uma missão para a Inglaterra. Custava ao menino Grigori acreditar que seu pai seria capaz de abandonar a tudo e a todos e partir, sem sequer se preocupar em dar notícias. Há de ser algo secreto, sigiloso. O Natal, data que o menino só considerava pela comilança exagerada e presentes estonteantes, passou a ter outro significado, mais triste. Era sempre a lembrança do último dia que viu seu pai com vida. Mesmo longe de ser religioso, Grigori rezava por seu pai. Recorria aos santos da Igreja Católica Ortodoxa Russa que povoavam suas cada vez mais escassas memórias da Rússia, isto, é claro, longe de todos.

O menino manteve-se em sua completa ignorância por anos, até chegar uma carta no mês passado. A Carta que mudaria tudo.

            Grigori jamais se recordou de ter visto sua mãe a chorar tanto como naquele dia. Ele também jamais se recordou de ter chorado de modo tão desesperado. Um dia doloroso que ainda estava fresco em sua memória. O dia em que uma carta oficial anunciou a morte de Sherlock Holmes. “Lamentamos informar o óbito de Sherlock Willian Scott Holmes, à serviço do Império Britânico”. Havia mais algumas palavras floreadas a seguir, mas nada que pudesse preencher o vazio de saber que ele mal pôde aproveitar seu recém-adquirido pai, precisando se ater às memórias boas, dos tempos em que ele, Grigori, era apenas um moleque de rua que, de modo inexplicável, conquistou o coração de gelo do mais famoso detetive britânico.

—Grigori? Está tudo bem?

            Era a voz de Georgi, seu irmão, do outro lado da porta.

            -Sim, só deixei algumas peças caírem no chão.

            -O jantar está pronto. Só falta você.


§§§§§


            Uma farta mesa já se encontrava a disposição de Grigori, quando ele desceu as escadas para ir à sala de jantar. Dando os primeiros passos no corredor, o rapaz viu que as mesmas pessoas de sempre já haviam ocupado seus postos. Seu avô, Abraham Katz, na cabeceira, como o líder da casa, sua mãe Esther ao seu lado direito e seu irmão Georgi ao lado esquerdo. A Grigori era reservado o assento ao lado de seu irmão. Mal puxou uma cadeira, o rapaz recebeu a primeira reclamação de seu avô.

            -Outra vez, indo jantar com as mãos sujas de graxa. Imundas como as mãos de um operário.

            -Pai, por favor... – pediu Esther. Grigori sabia que seu avô exagerava. Suas mãos não estavam completamente imundas. Havia, é claro, uma ou outra sujeira por baixo de suas unhas, mas isso parecia ser o suficiente para desagradá-lo.

            -Estava trabalhando. – explicou-se Grigori, sentando-se. Georgi olhou com cautela para Grigori. Havia combinado com seu irmão de que ele não responderia seu avô, mas Grigori parece sempre se esquecer de seu conselho, levando a discussões desnecessárias todos os dias.

            -Ah sim. No tal “pássaro de metal” que você quer construir. – disse Abe, com desdém.

            -Um avião. – corrigiu Grigori.

            -D’Us não deu asas ao homem. Por isso tantas pessoas morrem nessas máquinas, todos os anos. Porque estão tentando subverter a criação.

            Percebendo que Grigori estava prestes a dar uma resposta malcriada, Georgi interviu, mudando de assunto.

            -O início do Campeonato de Xadrez de Devon foi marcado, mãe.

            -É mesmo, meu filho? E quando será?

            -Daqui a duas semanas. Terei de me preparar bastante, pois Michael Elliot é um grande adversário. Ele venceu as duas edições anteriores do Campeonato Juvenil e eu sou um estreante. Será tudo novidade para mim.

            Naquele mesmo instante, Abraham sorriu de satisfação, fazendo Grigori sentir-se deslocado – ou mesmo invejado pelo sucesso de seu irmão.

            -Se precisar de um bom saco de pancadas para seu tabuleiro, saiba que estou aqui, meu neto. – disse o velho, não querendo disfarçar seu orgulho. – Quer que eu te leve outra vez para Londres, para que possa jogar um pouco com o seu tio Mycroft?

            -Creio que não será possível, meu pai. – disse Esther. – Mycroft ainda não se recuperou de sua pneumonia. Watson me telefonou agora a pouco explicando que ele ainda inspira cuidados médicos.

            -Uma pena. – assentiu Abraham, penalizado.


§§§§

            Grigori havia acabado de vestir seu pijama quando ouviu a porta bater. O rapaz a abriu, sem perguntar. Era sua mãe, Esther. Ele a permitiu entrar, sem maiores perguntas. Enquanto sua mãe puxou a cadeira de sua escrivaninha para se sentar, o menino optou por sua própria cama. Ao ver sua mãe suspirando, procurando as palavras para começar, o menino teve certeza de que ela estava para falar de seu avô, ou quem sabe, de seu pai. Ou até mesmo dos dois.

            -Filho, por favor, tente evitar essas discussões com seu avô.

            -Ele sempre começa. – respondeu o rapaz, inconformado.

            -E você sempre o responde, e muitas vezes de modo malcriado. Seu avô não está bem de saúde, passou por muitos problemas na vida... Eu sei que isso não deveria ser desculpa para o comportamento dele, do qual também não aprovo.

            -Ele me odeia porque não sou inteligente como Georgi.

            -Nada disso, Grigori. – disse Esther, apertando sua mão. – Ele só... Tem medo desse hobby que você encontrou. Há de convir, meu filho, que é algo perigoso.

            -Eu gosto de aviões. Não tenho culpa disso.

            -Eu sei. No fundo, o seu avô só quer o melhor pra você.

            -Sim, inclusive a minha conversão.

            Esther desviou seus olhos de Grigori. A conversão de Grigori, algo que nunca aconteceu e que foi o primeiro problema do rapaz com seu avô, Abe. Este era sempre um assunto delicado.

            -Esqueça as palavras do seu avô, meu filho. Se converter ao Judaísmo não é qualquer prova de gratidão. É algo que depende de sua fé. E eu sei que você é cristão. Por mais que não frequente uma Igreja, você acredita nos preceitos cristãos. E antes de tudo, saiba que eu não me importo se você segue ou não a minha religião. Eu sempre vou te amar. Agora, me dá um abraço?

            O rapaz sorriu um pouco, abraçando sua mãe.

            -Parece que agora, eu não mais abraço você, e sim, você me abraça. Está tão grande, quase um homem... – balbuciava Esther, enquanto afagava os cabelos negros de Grigori. – Agora, me prometa que não vai cair em desavenças com seu avô.

            -Eu prometo. – disse Grigori, ainda envolto em seu abraço.

            Quando Esther já estava fora de seu quarto, o rapaz terminou de preparar uma pequena mochila, com apenas o essencial. Sob a escrivaninha, deixou um bilhete para sua mãe. Sabia que aquelas palavras não se consistiam em uma despedida decente, mas era o máximo que ele poderia fazer. Se ela soubesse de seus planos, o impediria. E talvez, o amor que ele sentia por ela até o impedisse de seguir adiante. Mas o rapaz sabia que precisava partir. Não queria mudar de idéia.


§§§§


            Emily estava na estação ferroviária de Liverpool. “Traga uma mala com apenas o essencial”, estava escrito na carta. O essencial... Acaso Grigori havia esquecido de que ela era uma menina, praticamente uma mulher? Tanta coisa havia de essencial que mal coube em uma mala. Ela só esperava que ele não reclamasse do peso, pois Emily não tinha a menor intenção de se desfazer de nada que havia ali. Já havia sido difícil dar adeus à sua amada coleção de chapéus e lenços.

            Impaciente, Emily estava prestes a bufar quando sentiu algo tocar-lhe no ombro. Sobressaltada, a jovem se virou e acabou surpreendida por Grigori. Em meio ao vai e vem de passageiros da movimentada estação de Liverpool, Emily deu um abraço apertado no jovem rapaz, sem qualquer pudor.

            -Pensei que havia desistido. – ela disse.

            -Jamais deixaria uma dama a esperar. É que, assim como você, também acabei de chegar. Vamos, não temos tempo a perder. – disse o rapaz, pegando em sua mão e a conduzindo para fora da estação. Risonha diante da excitação de serem flagrados por alguém, a moça o seguiu por entre as ruas movimentadas dos entornos da estação, enquanto Grigori carregava em suas costas uma espécie de mochila e também sua mala na outra mão. Por fim, ele não reclamara do peso.

            -Você está forte. – ela disse, apertando seu braço. Grigori riu.

            -Diz isto porque eu não reclamei do chumbo que você está levando?

            -Sabia que ia comentar sobre isso. Não vai reclamar mesmo?

            -Não. Eu disse para você levar o que precisar. E eu acredito em você.

            A jovem mal percebeu, mas o rapaz a levou até um beco escuro e deserto. Seu coração começou a bater aceleradamente, em expectativa. Quando finalmente ali, distante dos olhos de quaisquer curiosos, Emily foi a primeira a dar iniciativa, pressionando o tímido Grigori contra a parede e dando um beijo no rapaz, que prontamente correspondeu. Logo o beijo se intensificou, até que ambos ficassem sem fôlego.

            -Você é a minha perdição. – sussurrou Grigori.

            -Mas afinal, você não disse na carta o que faremos aqui, em Liverpool.

            -Eu não disse, mas creio que você já imagina do que se trata.

            Emily preferiu não dizer nada. Em sua mente, passavam-se algumas possibilidades, todas elas envolvendo uma fuga da Inglaterra. A escolha de uma cidade portuária como Liverpool ressaltava isso. Ainda mais com o seu futuro cada vez mais traçado no horizonte. Futuro este sem qualquer espaço para Grigori.

            -Esta semana, Robert esteve em minha casa.

            Grigori assentiu, resignado. Sabia que a moça estava falando do rapaz que, dentro de um ou dois anos, pediria sua mão. Um bom partido. Filho de um médico, amigo de faculdade do Dr. Watson, que tinha tudo para seguir carreira na Medicina. Nada disso Grigori tinha a oferecer.

            -Teremos de fugir, Emily.

            Emily não parecia aturdida com a proposta. Pelo contrário, parecia espera-la.

            -Mas para onde?

            -Não se preocupe. Eu já escolhi. Iremos para a América.

            -A América, Grigori? Mas por que lá?

            -Eu não sei falar outro idioma. Só russo e inglês. Restam poucas opções e a América é a mais razoável que posso pagar. Além disso, eu acho a América um bom lugar para começarmos. Muitas pessoas estão tentando uma nova vida por lá.

            -Dizem que uma Guerra está prestes a acontecer.

            -Mais um motivo para irmos embora da Europa. – disse Grigori, acariciando o rosto de Emily.

            -Tem razão. – assentiu Emily, por fim. Grigori começou a rir, deixando a jovem emburrada.

            -O que foi?

            -Você parece chateada com minha escolha. Que mal lhe pergunte, mas que país tinha em mente?

            -Espanha.

            Grigori arregalou os olhos. – Espanha? Mas não sabemos uma só palavra de espanhol. Que coisa, Emily! Só você mesmo!

            -Ora, sempre me pareceu um país bonito e acolhedor. Meu pai me levou ao Teatro uma vez e a peça se passava na Espanha. Foi tão bonito...

            -Entendi, mas ainda assim, sem qualquer chance. – explicou Grigori. – Agora só precisamos comprar as passagens de navio para a América. Estive pensando em Nova York.

            Na verdade, Nova York era a única cidade americana que Grigori sabia pelo nome, mas isso não importava naquele momento. Emily assentiu.

            -Me parece... Decente, eu acho. Mas então, você já tem o dinheiro da passagem? Não deve ser barato...

            -Eu sei que é caro. Mas é sobre isso que quero te mostrar, primeiro.

            Emily percebeu que Grigori começou a buscar algo no bolso de seu casaco. O rapaz o sacudiu, até por fim, parecer satisfeito por ter encontrado algo. Tirou a mão do casaco completamente fechada, sem que Emily pudesse ver o que havia ali. Inexplicavelmente, a jovem começou a sentir seu coração bater mais forte. Será que ele estava prestes a pedi-la em casamento, ali, em um beco imundo de Liverpool, antes dos dois fugirem para a América? Isso seria algo romântico a se contar aos filhos e netos, ela pensou entusiasmada.

            No entanto, nada poderia prever o objeto inusitado nas mãos do rapaz.

            -Meu Deus! O que é isso?! – perguntou a jovem, mortificada.

            -Um diamante.

            -Meu Deus... – disse a menina, tocando levemente na pedra cristalina que quase cobria toda a palma do rapaz. – Como conseguiu isso?

            -Quando eu tinha seis anos e fugi da Fábrica de Aço com um americano chamado Mr. Taylor, nós fugimos com muitas barras de ouro. O problema é que Mr. Taylor começou a ficar paranoico. Então, dias antes de morrer, ele foi até o mercado negro e trocou as barras de ouro que tinha por esse diamante, deixando só um pouco de dinheiro para fugirmos para a América. Ele achava melhor para esconder. Quando ele morreu, eu tomei o diamante e o escondi. Sempre disse a mim mesmo que só o usaria em caso de uma emergência. Como é agora.

            Emily ainda estava embasbacada, olhando boquiaberta para o diamante, que reluzia diante de seus olhos.

            -Isso deve valer uma fortuna.

            -Tenho certeza que sim. – assentiu Grigori. De repente, formou-se um silêncio aterrador entre os dois jovens, até o momento em que o rapaz pigarreou.

            -Eu sempre quis retirar uma lasca dele para colocar em uma aliança e presenteá-la em nosso noivado, mas como sei que não teremos tempo para esse tipo de formalidade, eu...

            Para assombro de Emily, Grigori começou a se pôr em um joelho, ignorando a lama escura do beco. Tomando a jovem por uma mão e olhando fixamente em seus olhos, o rapaz abriu a boca, mas as palavras demoraram a sair.

            -Quer se casar comigo?

            Silêncio.

            -Tá maluco?

            -O quê?! – arregalou-se Grigori, com a resposta malcriada de Emily. Pondo-se de pé novamente sentindo-se o mais ridículo dos homens da Face da Terra, Grigori tentou recompor-se.

            -Você... Não quer se casar comigo, é isso? Eu...

            Emily rolou os olhos. – Não, não é nada disso. Só... Nós não podemos nos casar, Grigori. Pelo menos, não agora. Qual Igreja irá casar um menino de catorze anos com uma menina de treze anos?

            Grigori pareceu considerar a idéia.

            -Tem razão... – assentiu, tristemente.

            -No entanto... – disse a menina, passando sua mão no pescoço do rapaz. – Nós não precisamos de alianças no dedo para fazermos... Certas coisas...

            -Mas, Emily... Ops... Emily, escute... Eu...


§§§§



            Passaram-se duas horas desde a proposta frustrada de casamento de Grigori e, bem... Aquilo. Em nenhum lugar de sua imaginação, o rapaz pensara que passaria sua “primeira noite de núpcias” em um beco fedido a urina nas proximidades do porto. Mas, como certa vez disse o Dr. Watson, Emily conseguia ser bem persuasiva quando queria.           

O casal caminhava pelo subúrbio de Liverpool de mãos dadas. Emily evitava os olhares de pessoas mal-encaradas, procurando apertar bem sua mão na de Grigori e assim mostrar a qualquer um que os dois estavam juntos. Graças a sua altura generosa, Grigori conseguia se passar por um rapaz de vinte anos facilmente.

            -Para onde estamos indo?

            -Nelson’s Dragon Pub. É lá que marquei a venda. – cochichou em seu ouvido.

            Finalmente, a velha placa de madeira sob um dos prédios anunciou que os dois não estavam muito longe dali. Ao adentrar ao pub, Emily foi recebida pelo cheiro de suor, cerveja e tabaco vagabundo do lugar, e também por um homem no piano a tocar uma música de duplo sentido. No lugar, predominavam homens. Ela, no entanto, foi impedida de reparar mais no lugar quando Grigori a tomou pela mão outra vez, levando-a consigo até uma mesa vazia.

            -Fique aqui, me esperando. Irei sozinho. E não fale com ninguém. – pediu Grigori, sendo prontamente atendido por Emily.

            O rapaz subiu as escadas, indo até uma porta fechada. Deu três batidas.

            -Senha?

            -Ostra. – disse o rapaz, tendo a porta imediatamente aberta diante de si. Por fim, um homem caolho e de cabelo grisalho falou, com o hálito de rum.

            -Me acompanhe. E nada de gracinhas.

            Grigori o obedeceu, sem titubear. Em poucos metros, foi levado até uma grande mesa de carvalho, onde um homem gordo de boas vestimentas estava sentado, contando algumas moedas. Em uma caixa, havia vários colares, todos pareciam valiosos. Ao ver Grigori, o homem tratou de ir direto ao assunto.

            -Sejamos rápidos. Cadê o diamante?

            O menino nada disse. Sabia que, em negócios assim, quanto menos se soubesse, melhor. Pondo o diamante sobre a mesa, Grigori viu a mão do homem alcançar imediatamente a pedra. Viu-o segurar com o profissionalismo. Pesava com a palma da mão, levava à luz, até mesmo raspava-a com o dente. Por fim, o homem deu um sorriso diabólico.

            -Tá pensando que sou um babaca, moleque?

            Os olhos do rapaz se arregalaram. – Não, senhor.

            -Você me prometeu um diamante, e me traz isso? – esbravejou o homem.

            -M-M-M-Mas i-i-i-isso é-é-é-é um di-dia-diaamante!

            No mesmo instante, o homem tomou um martelo que estava em uma das gavetas. Grigori se sobressaltou, pensando que o homem estava prestes a ataca-lo, mas para seu pasmo, o homem tomou o martelo e golpeou o diamante, que se tornou um farelo de vidro com pouca dificuldade.

            -Vidro. – disse o homem. – Você me trouxe vidro. Bem lapidado, é verdade. Mas ainda assim, vidro. Acredito que você teria conseguido alguns xelins em uma vidraçaria se tivesse sido mais esperto, moleque.

            Enquanto os demais bandidos riam, Grigori entrava em desespero. De repente, tudo havia caído por água abaixo. Ele não tinha mais dinheiro para ir para a América recomeçar sua vida, nem para se casar com Emily Watson.

            -Não é possível... – balbuciou o menino.

            -Concordo. Com a reputação que tenho, “não é possível” que alguém ainda tenha a audácia de aparecer em minha porta e me fazer perder o meu precioso tempo tentando me enganar... Pois bem, moleque. No capitalismo, tempo é dinheiro. E eu vou fazer você pagar por isso. Billy, pegue esse moleque e leve-o para fora. Umas boas chicotadas no rabo serão o bastante de lição.

            Amedrontado, Grigori tentou escapar, mas logo foi detido por um dos homens, que lhe deu um soco no nariz, deixando-o tonto. Quando começou a sentir algo quente escorrendo em seu lábio, o menino logo sentiu que estava sangrando.

            -Bom, talvez um nariz quebrado deva combinar com uma bunda dolorida. – riu o homem, enquanto Grigori era conduzido pelo tal Billy para o lado de fora do pub, pelos fundos.

            Quando nos fundos do pub, Grigori foi chutado. Ele tentou agredir o bandido, mas foi em vão. O homem era agigantado e musculoso e seus socos mais pareciam picada de mosquito nele. Mais uma vez, Grigori recebeu um soco, deixando-o ainda mais tonto. Tentando se levantar, o rapaz viu que o bandido pegara de uma parede um chicote de cavalo. Aproximando-se perigosamente dele, tudo que Grigori pôde fazer foi fechar seus olhos para o primeiro golpe e tentar se proteger como podia, mas esse primeiro golpe jamais veio.

            Ao perceber que estava demorando para sentir dor, Grigori abriu seus olhos.

            O homem estava caído no chão, e ninguém menos que seu pai, Sherlock Holmes, segurava uma tábua de madeira, partida no meio.

            Naquele momento, nada mais restou para o menino senão desmaiar diante do impossível perante os seus olhos.


§§§§


            Grigori acordou, sendo recebido pelo rosto gracioso e preocupado de Emily. Sua visão ainda estava turva, mas ele ainda era capaz de reconhecer seus cabelos cacheados e cor de fogo.

            -Ele está acordando, Mr. Holmes. – disse Emily. Logo, a visão de seu pai apareceu mais uma vez. Com uma barba desgrenhada, o cabelo comprido, quase na altura dos ombros, vestindo um terno de segunda mão, mas ainda assim, seu pai. Grigori sentiu seu ombro sendo afagado.

            -Está tudo bem agora, meu filho.

            -Pai?! É você mesmo?!

            -Eu... Eu vou buscar mais água. – disse Emily, sentindo-se deslocada ali.

            Pai e filho trocaram um forte abraço. Logo, Holmes pôde sentir seu filho chorar, a ponto de soluçar. Ele estava grande, imenso, quase um adulto, mas chorava como uma criança.

            -Sinto muito que nosso reencontro tenha acontecido de forma tão brusca.

            -Como você me encontrou?

            -Uma mera obra do acaso, ou uma providência do destino, o que você preferir. Estava aqui em Liverpool a negócios e acabei encontrando Miss Watson sozinha na estação ferroviária, com uma mala grande. E em seguida, vi você se aproximar dela, com uma bolsa generosa. Logo imaginei que vocês dois estavam fugindo. Uma atitude tolamente romântica, mas que é algo previsível, vindo de vocês dois. E um “casal” em fuga requer dinheiro. Não tardou para que eu imaginasse que você usaria o seu... “Tesouro” para sua empreitada.

            Grigori baixou seus olhos.

            -Você sabia do diamante. Por todo este tempo.

            -Sim, eu sabia. Comecei a suspeitar, na verdade, quando notei que você calçava um sapato maior que seu pé e que você sempre dormia com ele, pelo menos quando ainda não tinha lá grande confiança em mim. A princípio, pensei que fosse por necessidade, mas por curiosidade, aproveitei-me de um momento em que você estava tomando banho para verificar seus sapatos. Achei, então, o seu diamante no pé direito.

            -Por que você não me confrontou sobre isso?

            -Eu tinha problemas maiores para me preocupar naquela época. Então, veio o Natal e... Tudo aconteceu tão rápido que... Não tive tempo para conversarmos a respeito.

            -O diamante era falso.

            -Bom, a julgar pela reação dos marginais, sim. Mas não fique assim. Mr. Taylor não foi o primeiro e nem será o último homem a ser enganado no mercado negro. Ainda bem que vim a seu socorro. A princípio, só o que eu queria era te impedir de embarcar em uma aventura romântica juvenil e deixar sua mãe preocupada, mas vejo que tive de te livrar de encrenca muito pior. – observou Holmes.

            Grigori recostou suas costas a uma superfície macia. Logo o rapaz percebeu que estava, na verdade, deitado a uma cama, de um quarto de má aparência. Uma melodia agitada de um violino soava quase inaudível.

            -Onde estamos?

            -Em uma estalagem. Do outro lado da cidade, não se preocupe. Até que os bandidos percebam o que aconteceu, já estaremos longe de Liverpool. Mas por ora, conte-me. O que deu em você para abandonar sua mãe e seu irmão para fugir com Miss Watson?

            -Eu gosto dela. Queremos ficar juntos.

            -Não custava esperar alguns anos?

            Percebendo que o menino recolheu-se diante de seu argumento fraco, Holmes suspirou.

            -Por que tenho a impressão de que não é apenas isso?

            Grigori suspirou, derrotado. Sabia que não era capaz de enganar seu pai.

            -A convivência com meu avô não tem sido das melhores.

            Holmes parecia surpreso. – Como assim? Aconteceu alguma coisa?

            -Logo depois que... Logo depois que você foi embora, nós nos mudamos para Devon, onde fica a fazenda do meu avô. Uns meses depois, ele soube do que aconteceu à minha avó e ao meu tio, David. Ele ficou arrasado. Minha mãe chegou a ficar preocupada, mas por fim, ele voltou a si. No entanto, eu senti que algo mudou nele. Não sei dizer bem o quê. Ele passou a ser um homem mais religioso. Voltou à Sinagoga, passou a ir à cidade todo sábado apenas para frequenta-la. Eu e Georgi fomos obrigados a acompanhar ele e minha mãe. No início, eu não me importava. Afinal, era uma mudança de ares durante a semana. Mas quando ele começou a tocar no assunto da conversão, eu...

            -Conversão? – surpreendeu-se Holmes.

            -Sim, conversão. Ele dizia que éramos judeus, que deveríamos nos converter e assim, ser bem aceitos na comunidade judaica. Isso aconteceria quando eu tivesse 13 anos, o Bar... Bar...

            -Bar Mitzvá. – corrigiu Holmes.

            -Isso. Georgi não pareceu se importar. Pelo contrário, creio que ele até gosta do Judaísmo. Ele e meu avô conversam bastante sobre histórias da Bíblia, quero dizer, da Torá. O Dilúvio, a Abertura do Mar Vermelho, essas coisas. E ele aprende muito rápido, como sempre. Meu avô deseja muito que ele se torne um rabino quando mais velho e não duvido que isso vá acontecer.

            -Então, presumo que você não fez o Bar Mitzvá.

            -Não. O rabino estava em casa, ajustando detalhes da cerimônia com meu avô e minha mãe, quando eu interrompi a reunião deles e disse que não faria. Devo admitir, não fui dos mais educados, mas estava cansado de dizer ao meu avô que eu não queria fazer e ele fingir que não me escutava. O rabino, então, tomou a atitude mais sensata e disse que não faria o meu Bar Mitzvá porque eu não expressava a fé judaica para tal e que eu deveria aguardar o momento certo. Desde então, meu avô mudou sua postura comigo. Está mais implicante e valorizando ainda mais as qualidades intermináveis de Georgi, enquanto eu sou o imprestável da casa.

            -Ele te chamou de imprestável? – questionou Holmes, um tanto furioso.

            -Não. É tudo sempre mais velado. Só fala mal de mim de modo mais direto quando sozinho na presença de minha mãe. É, eu tenho escutado atrás da porta, e bastante. Aliás, você também não é bem-visto por ele. Ele já te chamou de cafajeste algumas vezes.

            Holmes suspirou. – Não me surpreende. E além de quê, creio que, infelizmente, mereço a alcunha pelo que fiz à filha dele. Mas não se irrite com ele por isso. Tal problema é algo pessoal, entre eu e ele. Não você.

—Tudo bem. Mas isso não muda o fato de que ele também fala mal de mim. Uma semana depois da recusa ao rabino, meu avô disse que meus modos mais grosseiros eram sinais de “meu sangue ruim”...

            -Droga. – repentinamente, Holmes apertou as mãos.

            -Eu sei de tudo agora, pai.

            -Tudo o quê? – disfarçou Holmes.

—Que no fim, eu não sou seu filho legítimo.

—Bobagem, Grigori. Não ouça a conversa fiada de seu avô.

—Ele disse que sou um Ivanov. Uma linhagem de gente má. E isso inclusive fez sentido dias depois. Minha mãe recebeu um jornal e imediatamente o ateou na lareira. Fiquei surpreso quando notei raiva nos olhos dela. Logo vi que havia ali uma matéria sobre a morte de uma mulher chamada Olga Ivanov. No meio da matéria contou-se o que aconteceu com os meus pais na Rússia, eu reconheci pelo meu antigo sobrenome Morozov. Então, eu li a matéria e vi que aquela família era sanguinária e que...

Grigori começou a chorar. Holmes tentou consolá-lo.

—Pai, eu sempre fiz tantas coisas ruins e jamais entendi o porquê. Meu avô tem razão quando diz que tudo de mal que faço provém do sangue que carrego.

—Grigori... Não fique assim, meu filho...

—Eu... Eu nunca te falei a respeito disso, pai, mas eu já matei. Não uma, mas duas pessoas.

—Como assim, Grigori?

—Foi na Rússia. Eu matei o Adrenovich. Um dia, ele me chamou para a sala dele e... E pediu para que eu arriasse as minhas calças.

Holmes tomou-se de revolta. Grigori continuou seu relato.

—Mas nada aconteceu, porque eu vi uma faca sobre a mesa e o golpeei antes que ele pudesse fazer qualquer coisa. O problema é que eu acertei o pescoço dele e... Nossa, foi tanto sangue... Foi assim que Mr. Taylor se aproveitou para roubá-lo. Eu fiquei em choque, ainda no trem. Então, o Mr. Taylor me levou até um bar e me deu um copo duplo de vodka. Disse que isso faria me sentir melhor. Foi a primeira vez que eu bebi. Estávamos fugindo quando comecei a falar com ele sobre o meu irmão, Georgi. Disse que não queria ir até a América com ele e que o mais justo seria que ele me desse uma parte. Pedi-lhe, então, uma lasquinha do diamante para ajudar a procurar o meu irmão. Mr. Taylor se alterou profundamente e disse que eu era um traidor imundo e que esse meu irmão deveria estar morto. Eu fiquei com tanta raiva , porque eu gostava tanto do Mr. Taylor que... Que... Que eu o empurrei e ele bateu com a cabeça. Quando eu vi que ele estava morto, eu tomei o diamante dele e fugi.

Holmes estava horrorizado tentando processar as palavras de seu filho.

—Por que você nunca me contou sobre isso? – disse Holmes, tentando esconder seu desgosto.

—Eu não tive coragem. Jamais tive, até saber da verdade. No fundo, eu não queria que você tivesse um filho de má índole, mas como eu realmente não sou seu filho...

—Pare de repetir isso. Não há como saber se você é realmente meu filho ou não. Você e Georgi são diferentes porque cresceram em ambientes diferentes e tiveram acesso a oportunidades diferentes na vida. E pare de se menosprezar. Garanto a você que se eu soltasse Georgi nas ruas de Londres ou São Petersburgo ele não sobreviveria por um dia sequer.

De repente, um sorriso esperto apareceu no rosto de Grigori. Um sorriso que Holmes conhecia bem. E como ele sentia falta dele.

—Eu sinto muito. Não queria que você soubesse de toda a verdade dessa forma. – disse Holmes abraçando o rapaz.

—Mas afinal, eu falei muito de mim mesmo. E quanto a você, pai? Por onde esteve nos últimos anos? E porque não deu notícias?

Holmes riu com o bombardeio de perguntas que recebeu do rapaz. – Em tantos lugares, meu filho...  E não pude dar notícias porque estava em um trabalho deveras sigiloso. Mas saiba que este meu “trabalho” já se encontra finalizado.

—Posso morar com você?

—Em Sussex Downs? Não, meu filho. Infelizmente, eu não moro mais lá.

Ao perceber o semblante do rapaz se recolher, Holmes tomou-se de dúvidas sobre o que deveria fazer com Grigori. Por fim, o detetive tomou sua decisão.

—Mas saiba que a minha nova casa sempre estará de portas abertas para você.

Ao ver a reação alegre de Grigori com sua afirmação, Holmes não teve dúvidas. Esther vai me matar.

—E Emily? Ela pode ir conosco?

O semblante de Holmes escureceu-se.

—Receio que não, meu filho. Emily tem a própria família dela.

—Dr. Watson quer casá-la com o filho de um amigo dele.

—O quê?! – sobressaltou-se Holmes, catatônico. Havia tanta tristeza na voz de Grigori que o detetive teve certeza naquele momento que o menino nutria fortes sentimentos por ela. Mais um inusitado arranjo do destino que o detetive previra desde que os dois eram crianças.

—Ele prometeu a mão de Emily ao filho de um amigo dele. Quando soube disso fiquei arrasado. Dois meses atrás, vesti minha melhor roupa e fui até Londres para falar com o Dr. Watson sobre as minhas... “intenções” para com Emily. Ele riu de mim. Disse que eu era jovem demais para pensar nisso, e que mesmo se eu tivesse idade o bastante para tal, eu agiria com Emily mais como cúmplice do que como marido. Para ele, Emily tem uma personalidade difícil e precisa de um marido que a coloque nos trilhos. Desde então, fui proibido de ver Emily, pois ele temia que a minha constante presença com ela manchasse sua reputação. Só nos comunicamos com cartas por meio de uma amiga de internato dela.

Oh, meu caro Watson... No que você está se transformando...

—Meu filho, eu entendo sua preocupação com Emily Watson, mas por hora, vamos tratar de um assunto por vez. De todo modo, foi bom ser colocado à parte de tudo que aconteceu enquanto estive fora. Agora, creio que é momento de irmos embora. Ainda dá para apanhar o trem da tarde e irmos para a França ainda hoje. Claro, depois de colocar Emily no vagão de trem de volta à Londres.

Grigori ficou sobressaltado ao ouvir a palavra “França” sair da boca de seu pai, mas decidiu não fazer qualquer observação.




Montpellier, França. Março de 1916.


            O céu de Montpellier estava de tirar o fôlego naquela manhã de Março. Azul claro, com pouquíssimas nuvens brancas a quebrar os raios de sol daquela manhã ensolarada. Pela estrada a cortar as planícies verdejantes da pacata cidade francesa com ares de vilarejo bucólico, estava Grigori e sua bicicleta, um meio de transporte eficiente para as idas e vindas do menino entre sua casa e a Universidade de Montpellier, onde o garoto fazia um curso de Mecânica – cada vez mais vazio com a Grande Guerra. Muitos colegas de classe foram alistados. Grigori apenas escapou por não ter idade e também não ser um cidadão francês, algo que o fez entender porquê seu pai escolheu viver na França, país onde nenhum dos dois tinha qualquer obrigação para com o governo.

            Montpellier estava geograficamente longe do conflito, mas sua proximidade com o mar não deixava os moradores em paz, diante da possibilidade do conflito chegar ali. Afinal, não era necessário grande entendimento bélico para concluir que a área costeira era sempre uma região estratégica. Fora o racionamento de comida enfrentado por toda a França. Diversos produtos saíram das prateleiras e os de primeira necessidade sofreram considerável aumento de preço. Era o preço da Guerra, como dizia seu pai, Sherlock Holmes.

            Os primeiros meses foram complicados. Grigori mal sabia falar francês, mas por sorte os amigos de seu pai eram capazes de levar adiante uma conversa em inglês. No entanto, o rapaz não queria deixar de fazer amizades por barreiras do idioma esforçando-se a aprender o Francês, algo que conseguiu após grande persistência. Agora, o rapaz sentia-se completamente inserido na França, mas longe de se sentir um cidadão francês. Na verdade, Grigori sentia uma profunda falta de identidade. Ele era inglês, russo, ou francês?

            Ou norueguês?

            No começo, ele odiou saber que o simples, porém elegante sobrenome Holmes, teria de ser abandonado. O sobrenome Sigerson parecia absurdamente estranho, mas logo o estranho tornou-se simplesmente exótico. Também foi espantoso saber que muitos em Montpellier referiam-se ao seu pai como John Sigerson, claramente não fazendo a menor idéia de que estavam falando com o mais famoso detetive da Europa. A ideia de viver em um país estranho com uma vida e nome diferente perturbou o menino no começo, mas com o tempo, ele se acostumou.

            Sentindo a roupa suada pela pesada pedalada matinal que fizera até sua casa, Grigori deixou sua bicicleta estacionada diante da pequena e aconchegante casa, que jazia solitariamente no horizonte verde ensolarado de Montpellier. Bateu os sapatos antes de entrar, para deparar-se com uma visita surpreendente.

            -Mãe?

            Esther estava sentada a poltrona de seu pai. O cabelo loiro, já mais comprido e com uma boa dose de fios grisalhos, eram mantidos sob um coque recatado. Suas roupas também eram discretas e simples demais para pertencerem a ela, algo que levantou suspeitas no rapaz sobre o porquê de sua mãe estar vestida deste modo. Estaria ela disfarçada?

Educado como sempre, Georgi pairava de pé ao lado dela. Grigori ficou surpreso ao ver que seu irmão agora ostentava uma barba loira em seu rosto, que apesar de grande, não diminuía os traços gentis e graciosos de suas feições. Ele também vestia roupas modestas. Mas ainda assim, estava claro, por meio daqueles tecidos grosseiros e surrados, que nem mesmo trapos poderiam deter a classe de seu irmão.

            Como primeira providência, Esther levantou-se de sua poltrona e abraçou Grigori fortemente. Ambos haviam se visto não muito tempo, no último Natal, mas Esther o abraçava como se o desencontro tivesse durado uma eternidade.

            -Mãe... Eu estou completamente suado e sujo de poeira da estrada...

            -Pois você poderia estar coberto de lama. Te abraçaria de qualquer modo.

            Grigori abdicou do bom senso e retribuiu o abraço, apertando sua mãe. Assistindo a cena, Georgi simplesmente se juntou aos dois, abraçando-os.

            -O que houve, Grigori? Sua aula acabou mais cedo e... Oh.

            Holmes – ou melhor, John Sigerson – havia acabado de adentrar pela porta de sua casa e foi surpreendido pela cena incomum diante de seus olhos. Mãe e filhos abraçados. Apesar de ter feito inúmeros convites a Esther para que fizesse uma visita a Montpellier, ela jamais aceitou. Bom, até aquele dia.

            -Esther.

—Sherlock. Ou seria John Sigerson?

Holmes sorriu. – A julgar pelo meu “óbito”, creio que o mais adequado agora é chama-la de Esther Katz.

—Tem razão, é o mais adequado.

Georgi sentiu um uma cotovelada forte. Era Grigori, que deu ao irmão uma piscadela cúmplice. Logo, os irmãos se entreolharam e saíram dali, às pressas. Holmes e Esther perceberam o movimento dos dois rapazes, mas fingiram nada ter percebido. Sozinhos à sala, Holmes gesticulou para uma das poltronas para que Esther se sentasse. O mesmo fez o detetive, sentando-se no sofá.

Esther olhou bem ao seu redor. Era uma casa pequena, visivelmente menor do que Sussex Downs, mas nem por isso menos aconchegante. A organização de Holmes era notável por meio do capricho dos móveis. Não havia um objeto que fosse naquela sala que demonstrasse estar fora do lugar. Esther passou pouco seus olhos nas estantes, mas foi o bastante para que ela constatasse que as prateleiras não eram mais tomadas de Literatura sobre temas relacionados à sua antiga vida de detetive, mas títulos acadêmicos de Química. Havia também uma lareira, possivelmente acionada apenas nos dias mais frios e ignorada boa parte do ano.

—Tens uma bela casa.

—Bastante modesta, mas creio que condizente com a vida que levo aqui, em Montpellier. Não preciso estar rodeado de muito luxo.

—Ainda está lecionando Química na Universidade, apesar da Guerra?

—Sim, mas as aulas foram reduzidas drasticamente. No momento, estou aproveitando o tempo livre para adiantar minhas pesquisas. Apesar de não fazer a mínima idéia de quando todos estarão disponíveis para apreciar novas descobertas científicas.

Esther parecia refletir por um momento.

—Como Grigori está se adaptando com o novo nome?

—Melhor do que pensei. Ele jamais admitiu, mas imagino que deve ter sido duro para ele, ser chamado de “Grigori Sigerson” e atender com naturalidade. Mas ele soube se adaptar. Agora, está muito animado com o curso de Mecânica, tem seus próprios amigos...

—Não fazem perguntas sobre a mãe dele?

Holmes sentiu-se corar momentaneamente.

—Não depois que revelei ao professor Pierre, e consequentemente à Universidade inteira, que sou um homem separado.

Esther pareceu subitamente chocada.

—Por que não optou pelo caminho mais fácil? Poderia dizer que ela está morta.

—E o que eu diria a todos se, um dia, Mrs. Sophie Sigerson voltasse?

Esther desviou os olhos de Holmes naquele momento. Focou em suas mãos. Sem qualquer marca de aliança. Há muito ela deixara de usar. Seu polegar direito roçou levemente o dedo anelar esquerdo, local onde ela deveria permanecer, se ainda fosse uma mulher casada.

Esther riu, em descrença. – Foi para isso que me chamou, então? Para me pedir em casamento de novo?!

—Pelo que vejo, então, não há qualquer problema nos Correios franceses, apesar da Guerra. Todas as minhas cartas chegaram a Inglaterra.

—Com algum atraso, é verdade, mas chegaram.

—Então, porque jamais as respondeu? Por que o silêncio?

—Eu estou aqui. Isso não é uma resposta?

Holmes ponderou por um momento.

—Uma resposta que não consigo interpretar.

Foi a vez de Esther ponderar.

—O que está sugerindo... Seria viver uma mentira novamente.

—Ao que parece, somos bons em mentir.

Foi a vez de Esther rir. – Você foi desleal em escolher Montpellier como sua nova morada. Eu sempre gostei muito desta cidade. Vivemos uma boa época aqui, e tenho certeza de que foi bom porque ainda não havíamos nos envolvido romanticamente.

—Não? Porque eu já gostava de você desde aquela época. Aliás, você me fez acreditar que toda essa coisa de “e se apaixonaram perdidamente à primeira vista” tem lá seu fundo de verdade. Você já povoava meus pensamentos desde o navio. Eu só fui tolo demais em não querer admitir.

Holmes levantou-se rapidamente, caminhando em direção à estante, retirando uma caixa de madeira empoeirada que estava atrás de alguns livros. De volta ao sofá, porém sentado mais próximo da poltrona de Esther, Holmes entregou a caixa à ela.

—O que é isso? – Esther perguntou.

—Abra e descubra.

Um tanto irritada pela resposta vaga do detetive, Esther resolveu fazê-lo. Abriu, e foi subitamente surpreendida por ver alguns documentos, quase amarelados. Tomou um nas mãos e logo reconheceu como sendo documentos de Sophie Sigerson.

—O que significa isso, Holmes? Após a morte do Duque Ivanov, Mycroft foi bem claro que pegaria os documentos de volta para fazer a certidão de óbito de Sophie Sigerson.

—Bom, acontece que meu irmão enganou a todos nós. Esses documentos de Sophie Sigerson, assim como meus documentos de John Sigerson, são perfeitas falsificações e ainda possuem validade. Imagino que ele os preservou porque imaginou que, um dia, poderíamos precisar dele.

—Você precisou, é verdade. Mas eu não. Já levo minha vida como Esther Katz.

—Eu sei. Essa entrega dos documentos, na verdade, é algo simbólico. Uma lembrança de um tempo distante. Lembrança de uma época que me faz perguntar se Esther Katz consegue ser mais feliz que Sophie Sigerson. – disse Holmes, pegando na mão de Esther, que imediatamente se esquivou, para frustração do detetive.

—O que temos é o que nos resta. Não há nada a se fazer a respeito.

—Pelo contrário, Esther. Há. Largue sua vida infeliz e insossa debaixo da asa de seu pai e venha viver comigo aqui, em Montpellier. Sei que lá na Inglaterra está vivendo uma típica vida de mulher britânica. Aqui, você poderá voltar a dar aulas se quiser.

—Nosso casamento não deu certo uma vez, Holmes. Por que dará agora?

—Porque tentamos seguir um caminho convencional. Não fomos feitos para isso, Esther. Somos de uma matéria diferente. Estamos longe de sermos convencionais.

—O que vou dizer a Georgi?

Holmes sentiu-se inflado de esperança quando viu Esther usar Georgi como argumento. O detetive explicou.

—Que viver na Inglaterra está perigoso. E está mesmo. Não tardará até que a Guerra chegue ao quintal de sua casa. Aqui, estamos longe do conflito. Além disso, Grigori adora viver aqui. Tenho certeza de que Georgi também gostará de Montpellier.

Diante do silêncio dela, Holmes continuou.

—Somos bons em mentir. Gostamos disso, só conseguimos ser felizes assim. Por favor, Esther. Case-se comigo. Outra vez.

Holmes não ouviu uma resposta naquele dia. Nem no próximo. Nem em dia algum. No entanto, a preocupação com um bombardeio na Inglaterra fez Esther retornar meses depois à Montpellier com várias malas, ou ao menos assim ela justificou seu retorno repentino. Holmes separou um quarto para ela, sem fazer qualquer insistência ou maiores perguntas.

A Guerra acabou. Grigori casou-se com Emily logo que o rapaz foi aprovado para ser aviador da Service Aéronautique. Georgi casou-se três anos depois, com uma judia que conheceu na sinagoga local, onde mais tarde, se tornaria rabino. E assim, pouco a pouco, os filhos casaram e saíram de casa para viver suas vidas. Mas Esther permaneceu em Montpellier, a viver no mesmo quarto de hóspedes destinado a ela por Sherlock Holmes, embora Grigori tenha notado mais de uma vez seu pai a fazer visitas noturnas a ela, na calada da madrugada.


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Notas finais do capítulo

Então, é isso, pessoal


Agora, algumas considerações:

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a cada leitor. Desde o mais novo, desses que chegou hoje ou que só conheceu essa fic quando ela estava encerrada, até aqueles que tem acompanhado a história da Esther ao longo desses anos.

Foram anos intensos. Jamais me imaginei escrevendo fanfic. Na verdade eu tinha forte preconceito por fanfics, até conhecer a Bergerac da Anne Holmes e outras fanfics estrangeiras e ver que o negócio poderia ser algo sério. E isso se tornou viciante. Ainda bem que embarquei nesse ramo quando já estava terminando a facul, ou eu estaria ferrada... Rsrs

Enfim, gostaria de agradecer a todos os leitores por cada review, MP, recomendação, curtida, acompanhamento e tudo o mais, desde aqueles mais atenciosos até os ghosts da vida - isso mesmo, leitor Gasparzinho, eu te considero muito - e aqueles que muito me ajudaram, com menções honrosas à Ana, Ester, Letícia e Priscila, que tem acompanhado meu trabalho demonstrando seu carinho e me ajudando com críticas, que sempre foram bem-vindas e construtivas.


Esta possivelmente é minha última fanfic de Sherlock Holmes canônico - digo "possivelmente" porque a palavra "nunca" é um tanto forte, mas é fato que tenho outros projetos para tocar. Para começar, algumas histórias originais, que também são de cunho policial, mas que se passam no Rio de Janeiro de 1875 - época em que a nossa Cidade Maravilhosa ainda era chamada "simplesmente" de Corte. Esse projeto é bastante antigo, tenho pensado nele bem antes de começar a escrever "Shalom" e sinto uma enorme necessidade de conclui-lo, o que poderá me afastar do maravilhoso mundo das fanfics por sabe-se lá quanto tempo.

MAAAAS estou com duas idéias "irresistíveis" de fanfic, baseada em Assassin's Creed e The Witcher, mas só o tempo dirá o que será delas.

Portanto, é isto. Daqui para frente, Sherlock Holmes canônico está encerrado para mim, como autora de fics. Como não posso dar certeza dos dois projetos de fics que citei acima, é bem possível que esta seja a minha última fanfic.

MAAAAS² ainda continuarei lendo fanfics. Portanto, se você quiser opiniões ou mesmo me apresentar a alguma fanfic que você considere interessante, pode sempre me procurar por MP. Pode ser que eu demore a responder, mas farei o possível para fazê-lo.

Obrigada desde já e, é claro, deixem seus reviews!!!
Quero ver vocês despejando seu amor/ódio pelo final da fanfic na caixinha abaixo

Um forte abraço,
BadWolf
Twitter: @KVilela_

FIM



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