O Grande Inverno da Rússia escrita por BadWolf


Capítulo 3
Um Homem Que Não Descansa




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Londres, Inglaterra. 20 de Abril de 1909.


            Holmes parou sua mão à maçaneta.

            Era insegurança, ele sabia. Anos se passaram desde a última vez que ele estivera ali, naquele apartamento. O apartamento que costumava viver a sua esposa, Esther Katz-Holmes, ou Sophie Sigerson, nos melhores tempos de seu matrimônio. Ele sabia que precisava retirar tudo dali também. Watson o ajudara bastante na mudança, mas ele não queria seu amigo presente quando chegasse o momento de mexer nas coisas de Esther. No fundo, Holmes queria viver aquelas lembranças sozinho, sem testemunho. Alegar um dia de descanso da mudança foi a melhor forma que Holmes encontrou para afastar Watson e conseguir privacidade.

            Quando abriu a porta, Holmes foi imediatamente golpeado pelo ar pouco ventilado daqueles aposentos, e também por lembranças. Bastou alguns passos pela sala empoeirada para senti-las. As noites que entrara naquele apartamento clandestinamente apenas para encontra-la esperando por ele em seu quarto – nosso quarto, corrigiu-se. As conversas que tinham de madrugada, sempre em cochichos, sobre suas rotinas.

            Os livros de Esther ainda estavam na prateleira, tomados por poeira e teia de aranha. Holmes sabia que o apartamento estaria em um estado pior se não fosse pelo capricho de Mrs. Hudson, e nesse quesito ele tinha a agradecer a sua senhoria, que apenas deixou de cumprir a limpeza ali por causa de sua doença. Havia um Candelabro, e também a Torá, símbolos judaicos. Em um canto, uma bicicleta, também tomada pela poeira do tempo. Holmes lembrou-se de sua lua de mel em Sussex, quando ensinou Esther a finalmente andar de bicicleta. Lembrou-se dos gritos dela, em cada tombo, e também de sua risada, quando conseguia manter-se firme à bicicleta sem sua ajuda. Memórias de um tempo feliz, e cada vez mais distante.

            Horas se passaram, até que toda a sala tivesse sido completamente esvaziada, com os objetos dela guardados em caixa. Era a hora de prosseguir para o quarto. Para Homes, este seria o cômodo mais difícil. Com pouca hesitação, Holmes adentrou ao aposento. Lá estava a cama, móvel daquela casa que, pensou ruborizado o detetive, ele mais passara tempo quando por ali. Indo ao guarda-roupa, Holmes encontrou pouca coisa. Apenas suas roupas de John Sigerson.

            “Holmes, o que é isso tudo?”, perguntou-se Esther, ao vê-lo trazendo uma caixa consigo, em uma de suas visitas noturnas.

            “Roupas. Masculinas, para ser mais preciso.”, ele disse.

            Ela riu. “Ora, mas por que? Você ainda morará no andar de cima.”

            “Mrs. Hudson decerto irá desejar arrumar este apartamento, tal como ela faz no meu. E seu quarto está incluso em sua lista de arrumações domésticas.”

            “Não será necessária a vinda dela aqui. Eu sempre faço tudo sozinha. Acho que posso dar conta deste apartamento.”

            “Não dispense a ajuda dela. Ela é bastante irredutível neste assunto. Mesmo eu, que não gosto que mexam em minhas coisas, permiti que ela fizesse isso. E acredite, ela é bastante perspicaz e irá reparar que não há qualquer roupa masculina em seu armário.”

            “Mas ela não irá perceber que estas roupas são suas?”

            “Esta é a questão. Estas roupas não são minhas. E combinam bem com o perfil de um aventureiro.”

            “Você realmente pensa em tudo.”

            “Bom, alguém precisa pensar.”

            “O que está insinuando? Que eu não penso?”

            Ele riu. “Nada disso, minha cara. É que eu penso como um criminoso, e você é inocente demais para ter tal raciocínio.”

            “Inocente? Irei te mostrar o tamanho de minha inocência...”

            Holmes afastou sua mão daquele terno branco, seu disfarce de John Sigerson, como se sua lembrança recente o tivesse queimado. De um modo ou de outro, ela sempre invadia seus sentimentos. Sempre. E ele era incapaz de afastá-la.

            Com raiva de si mesmo, Holmes lançou bruscamente os ternos dentro da caixa. Procurou pelo armário por mais objetos pessoais. Nada encontrou. Sem dúvida, Esther tinha reunido seus objetos pessoais e retirado dali desde que o casamento dos dois não era mais um segredo em Baker Street. Ainda assim, o detetive procurou nos cômodos restantes, guardando tudo de pessoal que ainda restava por ali.

            Já era noite quando apenas caixas tomavam a sala de estar. Um tanto cansado daquela arrumação, Holmes suspirou, massageando suas costas. Amanheceria com uma dor daquelas, pensou. Quando ergueu a primeira caixa, Holmes acabou tropeçando na tigela de Billy, disposta perto da cozinha. Ele riu, ao fitar o objeto. Até mesmo do cão, que costumava roer seus sapatos enquanto ele estava no quarto com Esther, ele sentia falta. Fiel à sua dona, o animal veio a falecer em um intervalo de meses após a partida de Esther, depois de adoecer sem explicação. “Ele está sentindo falta dela”, balbuciava Mrs. Hudson algumas vezes, diante do animal triste e enfraquecido. “Todos nós estamos. Ele precisa superar isso”, esta era sempre a resposta de Holmes, que não queria perder tempo em dar atenção ao animal. Apenas quando ele veio a falecer, Holmes percebeu seu erro. Mais um erro em minha conta.

            Holmes ouviu a porta se bater, do lado de fora. Será que Watson desistiu de seu descanso?

            -Norah Reid. – disse o detetive, surpreso em vê-la após tanto tempo.

De imediato, Holmes notou que os anos tinham sido generosos para com ela. Seu cabelo ainda trazia a cor natural, e havia nada mais que algumas marcas de expressão em seu rosto, frutos da idade. Havia também algumas olheiras, mas nada mais que um sinal de poucas horas direcionadas ao sono, ou mesmo estresse de sua vida cada vez mais imersa na política. Mas apesar de tudo isso, Norah ainda trazia o frescor e a agitação da sua juventude. Impetuosa, esperta, atenta e bonita. Sem dúvida, tais atributos a tornavam tão ativa e fundamental na política.

            -Mr. Holmes. Peço desculpas por minha visita tardia.

—De modo algum. Entre, por gentileza.

Holmes abriu a porta por completo para Norah, que adentrou, deixando bolsa e chapéu no cabide.

—Vejo que estou atrapalhando o senhor em alguma atividade... – observou Norah, a quantidade de caixas no corredor.

—Estou de mudança.

—Deveras? Pensei que jamais sairia de Baker Street... – assinalou.

—Tomei a decisão após o falecimento recente de minha senhoria, Mrs. Hudson.

—Oh, ela faleceu? Eu realmente não sabia. Meus pêsames.

Holmes se limitou a assentir, conduzindo Norah até seus aposentos.

—Perdoe-me a desordem. – disse Holmes, apontando o sofá para que ela se sentasse.

—Entendo. Passei por desordem semelhante, quando me mudei recentemente para Chelsea.

            Holmes arqueou uma sobrancelha.

            -Chelsea? Folgo em ver que suas finanças estão saudáveis o bastante para tal mudança.

            -Desde que adentrei à política, não posso reclamar.

Holmes não era o mais assíduo leitor do noticiário político, mas sabia o bastante para entender porquê Norah Reid tinha se tornado um expoente na política inglesa. Desde a morte de Reid, Norah mergulhou profundamente na política, defendendo os direitos das mulheres e também dos operários, lutando contra o trabalho infantil e a exploração feminina nas fábricas inglesas, para não dizer o voto feminino. Apesar de não possuir nenhuma cadeira no Parlamento ou qualquer cargo político de expressão, Norah possuía influência e popularidade o bastante para estar sempre aos arredores, sendo importante porta-voz de sindicatos e movimentos feministas.

            -Entendo. – limitou-se a dizer o detetive. – De qualquer modo, creio que vossa visita aqui possui alguma razão especial, pois eu mal a vejo desde a morte de Edmund Reid.

            -Na verdade, nós não nos vemos desde que Esther te abandonou.

            Holmes torceu o lábio, enfurecido com o tom rude que Norah utilizou para tocar neste assunto. Sim, Holmes sabia que Norah fazia parte do enorme côro que taxava Holmes de monstro, mas perceber tal coisa diante de seus olhos era diferente. Decerto, pensou Holmes, ela foi uma das amigas que mais incentivou Esther a abandoná-lo.

            -A senhora poderia, então, fazer o favor de ir direto ao ponto? – disse Holmes, pondo fim em sua cordialidade.

            -Sim, irei. Gostaria de te pedir sua ajuda.

            -Magnífico. – disse Holmes, com deboche. – Uma pena, pois dado os últimos acontecimentos, não poderei embarcar em nenhum caso. Creio que não posso ajuda-la... – disse Holmes, já se levantando e tencionando ir à porta.

            -Nem mesmo o filho do homem que morreu para evitar que a identidade de Jack caísse em mãos erradas e causasse destruição e preconceito ao povo de sua esposa?

            Já à caminho da porta, Holmes se deteve. Sem dúvida, Norah sabia ser mordaz.

—Não sabia que você tinha conhecimento da verdadeira causa da morte de Reid.

—Ao contrário do que pode parecer, Edmund e eu tínhamos uma profunda parceria. Ele me contou sobre quem era Jack, e também que guardava as provas naquela mina. Curioso, ele guardou tudo na velha mina onde sua família foi explorada até a morte... – observou a viúva, desviando o olhar de Holmes momentaneamente. – Quando soube que um jornalista também tinha morrido na explosão, uni os pontos. Os demais, que estavam juntos, decerto seriam capangas desse tal jornalista.

Holmes analisava a situação. Sabia que a conclusão de Norah era incompleta. Os capangas citados por Norah que morreram naquela noite eram, na verdade, capangas do Duque Ivanov. Reid tinha morrido protegendo seu casamento com Esther. Holmes sempre se sentiu em dívida com Reid por isso e nunca soube retribuir o que ele fizera.

            Acendendo seu cachimbo, Holmes voltou a falar.

            -Então, por que não procura a polícia?

            -Este é o problema. A polícia deve ficar fora disso. Mas deixe-me contar tudo.

            -Por favor. – pediu Holmes, sentando-se em sua poltrona, fumando seu cachimbo. Ao soltar uma baforada, notou que Norah parecia enojada pelo cheiro. Isso só o tornou mais determinado a permanecer fumando, e assim empesteando o ambiente com aquela fumaça.

            -Eric está cada vez mais determinado a encontrar o assassino de seu pai.

            Holmes parecia pasmo.

            -Seu filho tem em torno de treze anos, não?

            -Sim. Completou há alguns meses.

            Holmes assentiu. – E já com tais questionamentos. De fato, um menino perspicaz. Embora eu não o conheça, acabo por aludir um pouco de seu marido nele.

Norah sorriu. – Eric tem muita coisa de Eddie. É determinado e bastante curioso. Sempre quer respostas. E creio que este é o problema. Ele quer saber porque Edmund estava naquela mina, no momento da explosão. Eu já disse a ele que Eddie tinha uma vida complicada, era um policial e corria riscos, mas isso não parece basta-lo. Não quero contar a ele que... Que Eddie morreu tentando proteger a identidade de Jack. Isso iria destruir a imagem do pai dele, que ele tanto admira. Eric é um bom menino, eu não quero que ele sofra. Percebe minha aflição?

Com os dedos tamborilando um ao outro, Holmes decidiu fazer um comentário.

—É notável que a senhora está aflita, Mrs. Reid. No entanto, sinto que algo de muito grave aconteceu. Afinal, o que mais faria uma senhora de sua estirpe aparecer em minha casa a esta hora?

Norah assentiu. Após um longo suspiro, ela se explicou.

—Eric está planejando um assassinato. Por vingança.


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Notas finais do capítulo

É, parece que um cliente de última hora bastante inesperado resolveu aparecer...

E deixem reviews!!! Gostaria de saber a opinião de vocês.
Um abraço,
Badwolf



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