Três Desejos escrita por Kayra Callidora


Capítulo 20
Capítulo Dezoito




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/684972/chapter/20

Capítulo Dezoito

É muito difícil parecer sério quando se está diante da pessoa a quem você estava atracado minutos atrás, e era exatamente o que Atena fazia - ou tentava fazer - naquele momento. Tinha puxado um pedaço do lençol de cama para cobrir o busto seminu, mas Poseidon não parecia se importar se ela estava vestida ou não, o que não ajudava nem um pouco a controlar seu nervosismo. Ele tinha o olhar cheio de curiosidade, e fitava diretamente os olhos de Atena. A deusa encolheu as pernas, elevando os joelhos, e apoiou os cotovelos sobre as coxas.

— Eu não sei bem por onde começar - disse devagar. - Acho que tudo começa com o dia em que eu... Nasci, para todos os efeitos. Você se lembra que meu pai deu uma festa em minha homenagem naquele dia?

Poseidon assentiu, atento.

— Na mesma noite, as três moiras me fizeram uma visita. Disseram que queriam testar a sabedoria da deusa escolhida para tal domínio, e me deram um desafio: eu poderia pedir três coisas; qualquer coisa, e elas atenderiam aos meus pedidos.

"Eu teria pedido pela sabedoria, mas estava fora de cogitação, porque eu já havia sido eleita como a deusa da sabedoria. Pensei que não precisasse de nada mais além disso. Todo o resto eu poderia conseguir sozinha. Mas então eu me lembrei; lembrei da razão pela qual os deuses e homens mais poderosos caíam: o amor. Foi meu primeiro pedido. Eu pedi para nunca me enganar com o amor. A primeira pessoa por quem eu me apaixonasse seria a pessoa certa para mim. Cloto, a moira que tece o fio da vida, foi quem atendeu o meu pedido. Eu demorei a perceber o efeito, para falar a verdade. Já tinha até me esquecido do teste das moiras... quando eu te vi. Você apareceu no Olimpo um dia, querendo falar com o meu pai sobre algum problema com os telquines - sim, ele me contou sobre isso. Você precisa saber, se é que já não sabe, que ele me conta tudo. Eu estava no jardim quando você passou, e assim que bati os olhos em você... Eu não posso explicar como, eu me apaixonei. Simplesmente isso."

— Bom, não é tão difícil - Poseidon interrompeu, dando de ombros. - Segundo uma pesquisa feita por mim mesmo, 100% das mulheres se apaixonam por mim à primeira vista. Antes eram 99%, mas depois da sua revelação, eu sei que são 100.

Atena revirou os olhos, mas seu nervosismo não permitiu que ela risse da piada.

— Você pode se gabar quando eu terminar de falar - disse. - Continuando. Nesse dia, coincidentemente, você veio conversar comigo. E nós nos tornamos amigos. Você não se lembra disso, e eu vou explicar porquê daqui a pouco. Nós nos tornamos muito íntimos. Não desgrudávamos um do outro nem por um segundo. Ah, eu queria tanto que você se lembrasse. Você dizia... - Atena fungou, lágrimas se acumulando em seus olhos, perigosamente perto de escorrerem. - Dizia que ia se casar comigo. Dizia de brincadeira ("só porque Hera é muito chata e não nos deixaria viver em paz sem nos casarmos"), mas era verdade. Você até chegou a me trazer aqui uma vez, para me mostrar onde eu moraria quando me tornasse rainha, mas isso foi no seu antigo palácio.

"E então aconteceu. Eu recebi um convite inesperado no meu escritório. Era de Oceano, e ele queria me encontrar lá no Olimpo – Atena assistiu enquanto a confusão começava a preencher o rosto de Poseidon. – Eu não imaginava o que ele poderia querer comigo, mas fiquei curiosa, então eu permiti que ele viesse ao meu palácio, no dia e na hora em que ele havia pedido. Bem... – Atena suspirou. – A conversa foi curta e direta. Ele disse que eu queria tomar conta de Atlântida. Disse que era tudo parte de um plano de Zeus para se apossar dos três domínios, e que eu era o método que ele estava usando para conseguir o seu. Então ele disse que jamais permitiria que uma filha de Zeus fosse rainha dos oceanos e ordenou que eu me separasse de você”

Poseidon franziu o cenho.

— E você obedeceu?

— Calma – pediu Atena. – Claro que não obedeci na hora. Aquilo era completamente sem fundamento, e eu não iria me separar de você só porque um titã louco estava mandando. Mas foi aí que ele começou com as ameaças. Ele disse que, se eu não fizesse o que ele falou, ele levantaria uma guerra contra Atlântida e a devolveria a quem merecia governa-la. Ele disse que já tinha um exército e pessoas infiltradas na sua equipe. A princípio eu também não acreditei nisso, mas ele me contou coisas que só poderia saber se alguém do seu exército tivesse dito.

“A partir daí, a ameaça se tornou real. Eu conhecia Oceano, conhecia o poder dele. Já havia ouvido histórias sobre as batalhas que ele ganhou, mas nenhuma sobre uma batalha que ele perdeu. Então eu fiquei com medo. Não por mim; por você. Eu não podia deixar que você entrasse em uma guerra por mim. Não podia deixar que você arriscasse seu reino, seus soldados, sua casa só porque eu era egoísta demais para colocar minhas tarefas a frente das minhas vontades. Ele me convenceu nesse instante, mas eu não sabia como contar para você. Sabia que você ficaria com aquela cara – Atena sorriu perante o semblante que Poseidon tinha. – Essa cara que você está agora. Essa cara de desafio. Eu sabia que você enfrentaria nele, porque conheço seu gênio. E por algum tempo eu precisei ficar em silêncio, pensando em como resolveria aquilo, até que eu me lembrei. Me lembrei do teste das Moiras, e de que ainda tinha mais um desejo. Aquela era a solução perfeita para mim: eu não te magoaria, nem causaria uma guerra na qual todo o mundo aquático poderia ser destruído. Então foi o que eu fiz. Eu chamei Láquesis, a moira que cuida dos acontecimentos da vida, e pedi a ela que você se esquecesse de tudo - Atena confessou, já sem conseguir impedir que algumas lágrimas escorressem de seus olhos. - Tudo o que aconteceu entre nós, todo o nosso romance. Você e todos os olimpianos. E vocês se esqueceram. Se esqueceram tão bem que foi quase como se nunca tivesse existido nada. Mas a minha maldição foi lembrar de tudo, de cada momento, inclusive da ameaça de Oceano. E a perspectiva de te machucar foi o que me deu forças para ficar longe de você por tanto tempo.”

“Eu não sabia que, de um jeito ou de outro, Oceano declararia guerra contra você no futuro. Mas eu sabia que, sem mim, você poderia se dedicar inteiramente ao seu reino, então a culpa não pesou tanto para mim. Além do mais, eu te ajudei de todas as formas possíveis, sem que você soubesse, quando ele declarou a tal guerra.”

— Ajudou? – Poseidon questionou.

— Sim – Atena garantiu. – Aquele plano de ataque pelas cordilheiras do leste não foram ideia do seu comandante. Mas isso não importa, o que importa é que... – Atena respirou fundo mais uma vez, para segurar o choro o máximo que conseguisse. – Eu preferiria morrer a deixar que você estivesse sujeito a qualquer perigo. Então eu fiz o que tinha que fazer, por mais doloroso que fosse.

Poseidon balançou a cabeça, parecendo indignado.

— Por que você não me contou, Atena?

— Porque eu sabia que você o enfrentaria – replicou Atena. – E seria tudo por minha culpa. Milhares de mortes, casas destruídas, e além de tudo isso... o alvo dele era você. Ele só pararia quando você estivesse morto, e eu não poderia deixar que isso acontecesse. E por isso tive que te afastar de novo dessa vez. A ameaça dele era permanente. Você acabou de sair de uma guerra, não posso deixar que entre em outra. Seria muito...

Atena não conseguiu completar o que dizia, porque o choro engolido se acumulava em sua garganta e impedia que sua voz saísse. Era doloroso demais falar daquela escolha sombria que havia feito, e era a primeira vez que contava a história completa para alguém. Apesar de ser um sentimento libertador, só ressaltava a dor de quão real havia sido tudo aquilo.

Poseidon imediatamente foi até onde Atena estava e a abraçou. Estar entre seus braços fez com que Atena se esquecesse de tudo o que estava acontecendo por um instante, e de repente parecia que não havia perigo algum.  A deusa o abraçou de volta, descansando o rosto em seus ombros quentes, e ela podia jurar que aquele era o melhor lugar do mundo para se estar. O abraço não durou muito, no entanto, porque Poseidon afastou o rosto para depositar um beijo em sua testa.

— Eu entraria em qualquer guerra por você, Atena – ele disse com tanta convicção que não poderia ser mentira. – Não pense que eu hesitaria um segundo sequer. Entraria nessa guerra agora mesmo, se isso fosse o necessário para ficar com você. Mas não é. A guerra com Oceano já está ganha.

Atena ergueu a cabeça para olhar em seus olhos, e estava tomada de confusão.

— Mas Zeus me disse que...

— Bem... eu não contei para Zeus que ganhei a guerra – Poseidon explicou, parecendo um pouco embaraçado.

O queixo de Atena caiu; ela mal podia acreditar que Poseidon perdera uma chance de se gabar na frente de seu pai. Com certeza o motivo por trás disso devia ser muito bom.

— Por que não?

— Porque então ele teria uma desculpa para me obrigar a ir a mais conselhos olimpianos – disse Poseidon. – E deuses, você sabe como eu odeio essas reuniões. Com a desculpa da guerra, eu não sou obrigado a passar tanto tempo no Olimpo.

Atena balançou a cabeça negativamente. Então todos os deuses achavam que Poseidon estava enfrentando uma guerra de mais de seis anos quando, na verdade, ele simplesmente não queria ir aos conselhos olimpianos? Então isso significava que...

— Então Oceano está morto? – a deusa perguntou.

Poseidon assentiu.

— Eu o derrotei no mesmo dia em que derrotei Tifão – ele explicou. – E se você tivesse me contado essa história, teria derrotado muito antes.

— Me desculpe – Atena pediu, recostando a cabeça em seu peito. – Me desculpe mesmo. Acredite, eu queria te contar, mais do que qualquer coisa.

— Eu sei, meu amor – Poseidon respondeu, com uma voz calma, afagando seu cabelo. – Mas Oceano não é mais uma ameaça. Nem para mim nem para mais ninguém. Só o que eu preciso saber agora... – ele segurou o queixo de Atena e levantou seu rosto. – É se você aceitaria ficar com esse idiota que demorou tanto tempo para perceber que não sabe viver sem você.

Atena não conseguiu conter o sorriso que se seguiu a essa pergunta.

— Ficar com você?

— Sim – respondeu Poseidon, e agora parecia um pouco nervoso. – Você não precisa se casar comigo ou nada disso. Não precisa deixar de viver a vida que vive, não precisa nem sair do Olimpo. A menos, é claro, que você queira. Eu só preciso ouvir sua voz, uma vez que seja, todos os dias. Eu preciso ver você, preciso que você brigue comigo porque eu não sei onde fica o Iêmen, preciso que você fique brava quando eu não quero assistir a um programa de História, preciso te beijar. Só preciso ficar perto de você, ou a eternidade vai ser apenas uma longa tortura para mim.

Dessa vez o sorriso de Atena era grande demais para ser contido. Ela apenas abraçou o pescoço de Poseidon, selando seus lábios com um beijo. Dessa vez, não havia o fogo dos beijos anteriores. Havia ternura, e sentimentos inéditos tentando ser canalizados através de toques e carinhos.

— Posso considerar isso um sim? – Poseidon perguntou, sorrindo.

— Absolutamente – respondeu Atena, beijando-o outra vez.

— Mas espere - Poseidon se afastou, mas continuava segurando seu rosto. - Você acabou não falando sobre o seu voto.

— É porque não há nada para falar - Atena explicou, balançando a cabeça. - Nunca existiu. Eu contei essa história para todos, e bem, os deuses acreditam em tudo muito facilmente. Eu não tenho voto algum. Eu só não queria deuses me pedindo em casamento o tempo todo, já que eu não ia aceitar nenhum.

Poseidon soltou um suspiro de puro alívio.

— Graças aos deuses – ele exalou. – Então isso significa...

Atena rolou os olhos, pensando como aquilo estava demorando para acontecer.

— Sim, Poseidon – ela respondeu ao que ele nem precisou perguntar. – Eu sabia que estava demorando para você tocar no assunto.

— É um assunto importante – apontou Poseidon, enquanto inclinava o corpo de Atena até que ela estivesse deitada na cama. – Não que eu não quisesse ficar com você caso o voto existisse. Mas vamos combinar que é muito melhor ele não existir.

Atena sorriu enquanto Poseidon beijava sua clavícula e todo o seu colo. A deusa perdeu a conta do tempo durante o qual ficaram ali, como um casal de adolescentes apaixonados, trocando beijos e toques sem se cansar. Provavelmente teriam ficado muito mais se não tivessem sido interrompidos por batidas na porta e a voz fina de Helena chamando.

Era sempre ela. Atena ainda se livraria daquela garota e de seu maldito dom de aparecer nos momentos mais inoportunos.

— Poseidon? Você está aí?

Poseidon rolou os olhos, impaciente.

— Vá para o banheiro, Atena - murmurou. - Helena vai nos interrogar até amanhã se te vir aqui.

Sem precisar de mais incentivo, Atena correu até a porta na lateral do quarto e se escondeu no banheiro absurdamente imenso. Percebeu, enquanto estava ali, que nunca tinha prestado atenção ao banheiro de Poseidon por completo. Tinha uma banheira branca, um chuveiro logo ao lado, e um espelho na parede, em cima de uma enorme bancada de mármore. Atena se aproximou e olhou a própria aparência, e corou ao fazê-lo. Seus cabelos estavam emaranhados, como um ninho de pássaros, a boca inchada, os olhos brilhando intensamente. Se outra pessoa visse seu estado, pensaria obscenidades. Ela afastou esse pensamento, sorrindo, e voltou para perto da porta. Mesmo ali, conseguiu ouvir a conversa de Poseidon e Helena, ainda que abafada.

— Fale, Helena.

— É o Jack - respondeu a menina. - Você sabia que ele está solto no castelo?

Jack. O nome trazia lembranças vergonhosas para Atena. O beijo em sua mão, o sorriso encantador, sua dúvida quanto a ter sentimentos em relação a ele. Tudo parecia uma imensa estupidez agora que sabia sobre os sentimentos de Poseidon. Como podia ter-se deixado cair nas graças de um adolescente rebelde que só jogava charme para ela? Se sentia quase uma traidora.

— Sim, eu sei - disse Poseidon.

— E então? Vocês dois fizeram terapia de casal para aprender a confiar um no outro ou o quê? Vai deixar assim?

— Atena o libertou. E se ela confia nele, eu também confio.

Atena sorriu estupidamente para si mesma, sentindo as faces coradas.

— Agora por favor, Helena, eu estou ocupado. Pode me dar licença?

Não era possível ver, mas Atena conseguia imaginar perfeitamente Helena revirando os olhos castanhos e batendo os pés ao se afastar. Quando percebeu que o silêncio se instalava por um longo tempo, Atena saiu do banheiro. Poseidon estava abotoando a camisa que vestia antes, parado próximo à porta.

— Er... Poseidon, você pode ir no meu quarto e pegar uma camisa para mim? - Atena pediu, sentindo as bochechas arderem ainda mais - A outra ficou no seu escritório.

Poseidon sorriu de lado.

— Claro, amor.

Ele saiu e voltou rapidamente, tendo em mãos uma camisa azul justa que Atena sequer se lembrava de ter. Tinha um decote em V um pouco fundo, do tipo que ela não costumava usar, e marcava seu corpo além do ideal. Desconfiada, a deusa vestiu a peça e olhou para a porta, embaraçada. Não sabia bem o que fazer depois de tudo o que tinha acontecido. Já estava começando a se sentir incomodada por ficar tão perto de Poseidon em silêncio. Precisava pensar sobre o assunto, se acostumar com toda a informação que recebera nos últimos minutos. Acima de tudo, precisava conversar com alguém. E só havia uma pessoa com quem podia conversar.

— Eu preciso sair - declarou, na esperança de que Poseidon não se interessasse por seu destino. - Até a noite estarei de volta.

Poseidon franziu o cenho.

— A noite? O que levaria tanto tempo?

Atena mordeu o lábio, pensando por um momento. Claro que a sorte não estaria ao seu favor. Deveria falar a verdade? Deveria mentir? Talvez Poseidon pudesse interpretar erroneamente.

— O Mundo Inferior - resolveu dizer a verdade. - Preciso conversar com Hades sobre... Alguns titãs e monstros. É uma pesquisa para a nossa missão.

Agora, essa não era uma verdade completa. Mas seria muito estranho dizer "preciso conversar com o seu irmão sobre o nosso relacionamento", então Atena alterou um pouco os fatos. Além do mais, precisava mesmo conversar com Hades.

— Mas isso é impossível - disse Poseidon. - Você precisaria da permissão de Hades para entrar nos territórios dele. E imagino que você não tenha como pedir para ele agora, certo?

— Mas eu tenho permissão para entrar no Mundo Inferior.

Poseidon cruzou os braços, arqueando as sobrancelhas.

— Tem?

— Eu sou uma deusa neutra, Poseidon - disse Atena, rolando os olhos. - Já ajudei Hades em alguns assuntos muitas vezes.

Poseidon não parecia convencido, apesar de tudo.

— Tudo bem, então. Devo te esperar acordado?

Atena deu de ombros.

— Só se você quiser - respondeu. - Se estiver com sono, não posso prometer voltar cedo.

— Tudo bem - Poseidon puxou a cintura da deusa e selou rapidamente seus lábios. - Te vejo mais tarde, amor.

Atena sorriu mais uma vez, como fizera demais nos últimos minutos, para então se dissolver em névoa e ir para o Mundo Inferior.

***

A primeira coisa que Atena sentiu foi o frio. Era sempre o mais notável no Submundo: o frio intenso e enregelante do mundo dos mortos. Atena se xingou por não lembrar de pegar um casaco antes de sair. A segunda foi a escuridão; exceto por algumas tochas flamejantes, o palácio de Hades tinha pouca iluminação. A terceira foi, é claro, o próprio Hades. Sentado em seu trono feito de ônix, embalado em um smoking completamente preto e com os cabelos perfeitamente penteados para trás, Hades fazia perfeito jus ao seu título de Rei dos Mortos. Sua postura imponente e o olhar frio no rosto causava tremores em qualquer um - inclusive em Atena, no início. Agora, acostumada a toda aquela fachada sombria, ver Hades era como olhar para alguém atrás de um véu escuro: tudo o que precisava fazer era olhar além do que estava diante dos olhos, e a imagem seria completamente diferente. Ao lado de Hades, em um trono notavelmente menor, estava Perséfone. Em seu vestido de flores, pele beijada pelo sol e olhos cheios de vida, ela contrastava com todo o resto do mundo dos mortos.

Hades se levantou no instante em que viu Atena. Não demonstrou alegria ou sentimento algum, como era próprio dele, mas sua feição fechada escondia a sabedoria e lealdade dos quais Atena precisava nesse momento. Por mais frio que Hades pudesse parecer, ela sabia que tinha nele um amigo fiel.

Perséfone, por outro lado, não escondia sua empolgação; se levantou do trono num pulo e saltitou na direção de Atena, irradiando luz por onde seus pés pisavam. Seu vestido esvoaçava, e pequenas flores se espalhavam no chão com o movimento, e tudo ao redor criava vida. A deusa abraçou Atena com entusiasmo, dando um pequeno pulinho para alcançar seu pescoço. Por mais incrível que fosse, Perséfone conseguia ser ainda menor que a deusa da sabedoria.

— Atena! - Perséfone exclamou, seu grito ecoando por todo o cômodo e provavelmente por todo o Érebo. - Que saudade! Você está bem?

— Estou maravilhosa! - exclamou Atena, se afastando, os olhos brilhando. - Hoje é um dia tão lindo!

Hades, que estava quieto até então, levantou uma sobrancelha, esboçando um sorriso de canto.

— "Hoje é um dia tão lindo"? - repetiu, com incredulidade. - O que diabos aconteceu com você? E que camisa é essa?

— É bom te ver também, Hades - Atena respondeu, educada, apesar do sarcasmo de Hades. - Eu vim justamente para te contar o que aconteceu. E tem a ver com a missão. A camisa é uma outra história.

Hades abriu um sorriso, mas não havia alegria nele. Era um sorriso irônico, malicioso, daqueles que sempre se podia encontrar em seu rosto quando pensava em algo maligno.

— Ah, a missão - Hades se sentou na ponta de uma mesa enorme de mármore negro, e apontou para o assento ao lado, indicando que Atena também se sentasse. - Imaginei que tivesse vindo falar sobre isso.

— Espere - Perséfone interrompeu antes que Atena se sentasse. - Tenha mais educação, querido - ela dirigiu um olhar reprovador para Hades. - Você quer alguma coisa, Atena?

— Desculpe, meu amor - Hades sorriu carinhosamente; Perséfone era o único ser vivente ou não vivente a quem aquele sorriso era direcionado.

— Na verdade, um vinho seria bom - disse Atena logo depois, surpreendendo até a si mesma.

— Eu volto já.

Perséfone se afastou, pulando alegremente pelo salão, e saiu de vista quando entrou em um corredor lateral.

— Você não teria um casaco para me emprestar? - perguntou Atena, sem conseguir esconder o frio que sentia, enrolando os braços ao redor do próprio corpo. - Estou congelando aqui.

Hades tirou o próprio paletó e o entregou para Atena. A peça de roupa cheirava a perfume masculino e ficava um tanto grande em Atena, já que, ao contrário dela e igual a todos os outros deuses, Hades era alto, mas era quente e confortável, e isso era tudo o que importava.

— Já me acostumei ao frio desse lugar - Hades deu de ombros. - E por sinal, desde quando você bebe?

— Desde que seu irmão me forçou a beber - Atena retrucou, mas não estava reclamando. O vinho era um dos maiores prazeres que já tivera em toda a sua vida.

— Ah, meu irmão - Hades se inclinou preguiçosamente para trás. Algo em seus movimentos lembrava os de um felino, cautelosamente calculados e sempre prontos para o ataque. - Ele é a razão para você estar aqui, não é?

— Sim - Atena olhou para o lado, envergonhada. - Aconteceu algo entre nós.

Um flash de malícia perpassou os olhos de Hades quando ele inclinou a cabeça, lançando à Atena um olhar cheio de significado. Ele não precisou dizer nada para que ela soubesse o que ele estava pensando.

— Não, não desse jeito! - Atena exclamou, horrorizada. - Pelos deuses, será que isso é só o que vocês, homens, tem na cabeça?

Hades gargalhou, um som atípico e estrondoso muito raro de se ouvir. Atena apreciou a gargalhada com certa cautela, tentando guardar a lembrança em sua mente. O deus dos mortos respirou fundo para recobrar o ar e sentou-se mais ereto, mas continuava sorrindo.

— Tudo bem, parei - ele disse, a voz oscilante, beirando uma nova explosão de risos. - O que, exatamente, aconteceu entre vocês?

Atena foi poupada de responder tão diretamente à sua pergunta constrangedora quando Perséfone voltou, ofegante, anunciando que havia encontrado o vinho.

— Deuses, aquela adega é enorme - ela expirou, entre uma respiração e outra. - Espero ter escolhido um bom vinho. Não costumo beber muito.

Perséfone pousou uma garrafa empoeirada de Mount Eden sobre a mesa, olhando de Atena para Hades como se pedisse silenciosamente por uma opinião. Atena não comentou, já que sabia tanto de vinhos quanto ela.

— Esse é um dos melhores, na verdade - comentou Hades, depois de um tempo de silêncio.

Perséfone sorriu satisfeita e fez surgir três taças de vidro sobre a mesa. Ela encheu cada uma até a metade e serviu-se da sua própria, fechando os olhos ao dar o primeiro gole.

— É maravilhoso - disse, deliciada.

— É sim - quem respondeu foi Hades, também pegando sua taça. - Não vai beber, Atena?

— Hades! - Perséfone desferiu um tapa fraco no braço do marido (ela também era a única pessoa que podia fazer isso e sair viva do ato), que sorriu, como se apreciasse o toque. - Ela pode beber quando quiser.

— Tudo bem - Atena a tranquilizou. - Eu só estava um pouco desligada.

Pegou sua taça e bebeu mais da metade do vinho de uma só vez. Perséfone e Hades a encaravam impressionados quando ela voltou a pousar a taça na mesa. Atena ignorou. Adorava a sensação agridoce quando o vinho descia queimando por sua garganta, o líquido quente varrendo, por segundos, as preocupações de sua cabeça.

— Parece que você realmente tem muito a nos contar.

Atena respirou fundo, se endireitando em sua cadeira.

— Sim, eu tenho.

***

Entre goles de bebida, exclamações de surpresa e gritos de indignação, mais de três garrafas e meia de vinho já haviam sido esvaziadas quando Atena terminou seu relato. A deusa sentia uma tontura leve e uma alegria fora do normal, mas acima de tudo, se sentia extraordinariamente leve. Hades e Perséfone ouviam tudo com atenção, e reagiam do jeito certo nas horas certas (Perséfone sendo um pouco mais animada do que o marido). Atena contou toda a história, sem deixar passar nenhum detalhe, de tudo o que havia acontecido desde o começo da missão até o presente momento. O casal já tinha conhecimento sobre Oceano e todo o drama antigo entre Atena e Poseidon (isso porque, em seu desespero e falta de concentração, Atena disse especificamente à moira que queria que todos os olimpianos se esquecessem de seu romance com Poseidon; Perséfone e Hades, no entanto, não eram olimpianos, e sua memória permaneceu intacta), e inclusive a haviam ajudado na guerra, então era fácil conversar com eles sobre o assunto. Eles conheciam cada motivo por trás da hesitação de Atena, mas ao final apoiaram veementemente a decisão da deusa de dar uma chance para Poseidon.

— Ah, a parte do beijo - Perséfone suspirou, o olhar distante. - Foi tão romântica.

Atena corou violentamente, mas Perséfone estava demasiadamente afundada em seus devaneios para notar; Hades, por sua vez, olhava fixamente para a borda da mesa. Atena também olhou naquela direção, procurando o objeto de seu interesse, mas voltou a olhar para frente ao constatar que não havia nada ali, Hades apenas estava pensando.

— Hades? Tem algo a dizer?

— Não agora - disse Hades se endireitando. - Apenas que sinto vontade de cometer uma atrocidade com você por despejar o segredo que eu guardei com a minha vida durante todo esse tempo para a última pessoa que poderia saber sobre ele.

— Desculpe - pediu Atena com sinceridade. - Mas eu não podia mais adiar esse assunto. Eu teria que contar, uma hora ou outra.

— É verdade - Perséfone concordou.

Um tempo de silêncio se instalou no ambiente quando os três mergulharam em pensamentos profundos, cada qual tirando suas próprias conclusões e opiniões sobre a história contada, mesmo a própria Atena.

— Eu acho... - Hades se pronunciou, escolhendo cuidadosamente cada uma de suas palavras. - Que você fez muito bem ao contar seu segredo para ele.

Atena ergueu os olhos para ele, surpresa, mas Hades estava convicto do que dizia.

— O quê?

— Cartas na mesa, Poseidon não é lá o homem mais perfeito do mundo - disse Hades. - Não consegue ser sério como você o tempo todo - bem, para ser justo nem eu consigo -, e tem o dom de irritar, todos os que convivem com ele. Mas eu confio plenamente no seu senso de julgamento, Atena, e se você está aqui, declarando confiantemente que o ama e não se arrependeu ainda, ele não pode ser tão terrível assim.

— E Poseidon tem muitas qualidades - emendou Perséfone, incentivando o discurso. - Ele é paciente, é carinhoso e muito gentil quando quer. Além do mais, mesmo não sendo o deus da sabedoria, ele é bem esperto.

— E como você sabe de tudo isso? - perguntou Atena.

— Eu também observo um pouco o comportamento das pessoas - Perséfone deu de ombros como se não fosse nada. - E a melhor parte: você seria minha cunhada!

Atena sorriu. Era verdade: casando com Poseidon, seria cunhada de Perséfone. E também de seu próprio pai, Zeus. Pensar nisso era tão bizarro que ela se obrigou a afastar esse assunto da mente e focar no momento presente.

— É verdade - Atena anuiu, balançando a cabeça. - E quem sabe eu pudesse vir te visitar mais vezes, uma vez livre de grande parte das obrigações no Olimpo.

— Sim! - os olhos de Perséfone brilharam intensamente. - Oh, Atena, isso seria maravilhoso!

— Não quero baixar o astral de ninguém - interveio Hades. - Mas você já está pensando em casamento assim tão rápido?

Atena corou.

— Não tão rápido assim - contrapôs. - Já estivemos à beira do casamento uma vez, há muito tempo. Depois de todos esses anos, se tem uma coisa que não tivemos foi rapidez.

— Mas vocês só se... reconciliaram recentemente. Tem certeza que está pronta para algo dessa dimensão?

Atena deu de ombros.

— Não tenho interesse em me casar tão cedoe acredito que Poseidon também não - disse. - Temos muitas coisas para resolver antes de começar a pensar nisso, e talvez eu nem me case com ele, no final. Mas isso não nos impede de viver juntos.

Hades correu a mão pelos cabelos, a pele pálida como papel contrastando com o preto de seu cabelo que combinava com todo o resto do lugar. Quando fitou Atena, havia preocupação, mesmo que muito bem escondida, no brilho de seu olhar.

— Não estou muito certo sobre isso - ele declarou. - Mas se é o que você quer, então eu concordo.

Um longo suspiro escapou pelo nariz de Atena. Era de cansaço, de preocupação e de confusão. Tudo havia acontecido tão rápido - a súbita declaração de amor de Poseidon, o segredo contado, os beijos trocados - que mesmo sua mente, mais veloz do que qualquer outra pudesse ser, não conseguia processar todas as informações.

— Eu vou me arrepender disso depois? De... me envolver emocionalmente com alguém?

Hades olhou para o lado, para Perséfone, e abriu um sorriso carinhoso, um sorriso que só a deusa das flores era capaz de extrair dele. A mesma devolveu o sorriso e o olhar, e de repente Atena sentiu como se interrompesse um momento íntimo.

— Nem um pouco - Hades declarou. - Se você realmente o amar.

— Veja, Atena, é claro que existem as partes ruins - Perséfone parecia meio temerosa ao dizer isso, relanceando olhares nervosos para Hades a todo segundo. - Vocês não vão concordar em tudo, e vai haver uma briga ou outra por um assunto banal - nada com que vocês dois já não sejam muito acostumados, é claro -, mas em suma, não existe nada melhor. Olhe só para mim - ela balançou a mão, indicando o próprio corpo bronzeado. - Eu sou a deusa das flores, e ao mesmo tempo, a rainha do Submundo. E estou feliz com isso. Entende como funciona? Quando se quer viver com a pessoa que você ama, a vida não se adequa a você, você é quem se adequa à vida.

— Poético - Atena comentou com sarcasmo, embora a frase tivesse ficado gravada em sua cabeça.

— Obrigada - Perséfone dobrou os joelhos e se curvou, como uma bailarina que agradece.

— Bem, eu acho que preciso voltar - Atena suspirou pesadamente. - Tenho muito trabalho a fazer amanhã.

Poderia ser impressão, mas Atena pensou ter visto os olhos de Hades entristecerem, era difícil dizer através da máscara de impassividade em seu rosto. Já Perséfone foi além disso: lágrimas começaram a escorrer de seus olhos no momento em que Atena pronunciou a sentença. Ela nunca fora boa como Hades em conter seus sentimentos, e era sempre muito transparente sobre suas intenções. E por isso era a única pessoa capaz de derreter o coração de Atena o suficiente para que a deusa se impulsionasse para frente e a abraçasse.

— Eu sinto muito - Atena sussurrou, sabendo que aquilo dizia tudo.

Que sentia muito por ter que ir embora. Que sentia muito que Perséfone, tão cheia de vida, tivesse que viver rodeada de morte para estar ao lado de quem amava. Que sentia muito pela injustiça do destino.

— Eu sei - Perséfone enxugou os olhos e abriu um sorriso simpático, que escondia mais dor do que Atena pensou ser capaz de ver.

Atena olhou para Hades mais uma vez, sem saber como se despedir adequadamente da figura forte e imponente que nunca parecia precisar de consolo.

— Você ainda está com o meu terno - ele lembrou, então.

— Oh - Atena tirou a peça, colocando nas mãos geladas do deus. - Aqui está. Obrigada, Hades.

— Au revoir, Atena.

Hades parecia tão contido, com as mãos seguras atrás do próprio corpo e a postura ereta, que era fácil para qualquer um pensar que ele não tinha sentimento algum. Mas Atena o conhecia há séculos, e esse conhecimento ensinara que a única parte legível de Hades não era seu corpo - eram seus olhos. E foi nas duas esferas negras ofuscadas pelo tempo que Atena encontrou aquilo que ele escondia com a própria vida: a dor. Estava ali, debaixo da espessa armadura invisível que o revestia, bem escondida, mas estava. E Atena não queria que Hades sentisse dor. Ele não merecia. A deusa puxou a mão que segurava, fazendo o paletó escorregar para o chão, e fechou os braços ao redor da cintura de Hades - o ponto mais alto que os braços de Atena alcançavam - em um abraço. Hades demonstrou surpresa, o que já era um triunfo para alguém que não parecia sentir nada, e levou algum tempo até envolver o pequeno corpo de Atena com os próprios braços, esfregando os fios loiros com os dedos.

— Eu vou voltar para ver vocês logo - Atena disse como numa promessa.

— Obrigado, Atena - disse Hades.

Atena sentiu que aquele agradecimento abrangia mais do que apenas sua promessa de retorno. Ela se afastou, acenou com a cabeça e olhou para o casal, que sobrevivia à morte todos os dias por amor, e sorriu antes de se transportar de volta para o palácio de Poseidon.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Três Desejos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.