Três Desejos escrita por Kayra Callidora


Capítulo 17
Capítulo Quinze




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Capítulo Quinze

Atena pediu que seu café da manhã fosse servido na cama assim que uma criada entrou em seu quarto, se oferecendo para arrumar o cômodo. Não estava nem um pouco a fim de sentar na mesma mesa que Poseidon e Helena - dois cúmplices até o Tártaro - e sentir o peso do silêncio mórbido sobre os ombros depois da discussão da noite passada.

Depois de tomar café e se aprontar devidamente, enquanto a criada arrumava sua cama, Atena foi procurar por Jack. Sabia que Poseidon o estava mantendo sob vigia, então o rapaz provavelmente estava no calabouço. Só o que faltava agora era encontrar o tal calabouço. Atena vagou por minutos que pareciam não ter fim pelos corredores, descendo escadas sempre que encontrava uma, já que a arquitetura padrão sugeria que as celas deveriam ficar debaixo do palácio. Por fim, depois de caminhar tanto que suas pernas começavam a doer, chegou a uma grande e grossa porta de ferro, guardada por dois tritões com lanças nas mãos. Atena tentou manter a postura e caminhar com naturalidade, e mesmo assim foi barrada pelos homens, se é que podia chamá-los assim, com as caudas no lugar de suas pernas.

— Desculpe, minha senhora, mas a entrada só é permitida com a autorização do rei.

Atena sorriu, transmitindo tranquilidade.

— O rei me deu permissão para circular por qualquer área do castelo.

— A senhora pode provar o que diz?

Atena pensou em qual seria a reação de Poseidon se ela aparecesse na frente dele e contasse que precisava de sua autorização para fazer algo de que ele sequer podia saber. Um arrepio subiu por sua espinha só de imaginar o furacão que ele se tornaria.

— Não – ela respondeu.

— Então peço perdão, mas não pode entrar – disse o soldado.

Atena respirou fundo. Não queria ter que chegar a esse ponto, mas era preciso.

— Qual o seu nome, soldado?

— Hans, minha senhora.

— Hans. Muito bem. Já que não posso entrar, talvez eu deva encontrar Poseidon - disse Atena, fazendo menção de se virar para sair -, e dizer que um certo soldado está me impedindo de passar...

— Mas senhora, é porque...

— ... Sendo que ele ordenou expressamente que todos os funcionários do castelo obedecessem às minhas ordens.

— Ele ordenou?

— Sim. Posso chamá-lo aqui para confirmar, se quiser. Mas não acho que ele vá ficar satisfeito de ser incomodado a essa hora por conta de um inconveniente pequeno como esse – as palavras só vinham à cabeça de Atena conforme ela tinha que dizê-las. – Hoje ele estava com um péssimo humor, sabe? Ouvi ele gritando com um mordomo, foi horrível...

Era uma mentira deslavada, é claro. Era mais provável que Poseidon mandasse jogá-la no calabouço junto com Jack se descobrisse o que ela estava fazendo; mas funcionou. Hans olhou para seu companheiro de guarda, que permanecera calado durante todo o tempo. Os dois trocaram um olhar significativo, e pareceram chegar a um acordo mudo. Nenhum deles queria ver Poseidon irritado. Atena tinha experiência com a ira de Poseidon, sabia que ninguém era audacioso o suficiente para enfrenta-la. Então, sem dizer mais nada, os guardas abriram as pesadas portas. Os corredores dali para frente eram bem diferentes do resto do castelo. A iluminação era precária, composta por lampiões que apareciam de vez em quando nas paredes de tijolos de barro cobertos de musgo. Mesmo com sua visão divina, Atena não conseguia enxergar muito bem, mas não precisou procurar muito para encontrar a cela onde Jack estava, que era uma das primeiras. Havia um candelabro aceso especialmente dentro da cela dele, dando uma visão minimamente razoável daquela área. Sentado no chão, com as costas na parede, Jack tinha o rosto pálido, os braços cortados e uma mão sobre a barriga. Seus olhos estavam fechados, e seus lábios torcidos em uma careta de dor. O sangue que escorria de seus braços molhava o chão, e a camisa branca que ele usava quando Atena o viu pela primeira vez estava praticamente toda vermelha.

— Jack?

Com dificuldade, o jovem se virou para Atena, abrindo lentamente os olhos azuis.

— Milady - sua voz era fraca e baixa.

Atena usou sua magia para destrancar as grades e adentrou a cela, se agachando para ficar na altura de Jack.

— O que aconteceu com você? - perguntou, horrorizada, ao ver os machucados em sua pele.

— Poseidon - Jack balbuciou. - Me capturou.

E talvez Jack não fosse a pessoa mais confiável do mundo, mas seu estado era tão deplorável que despertou pena em Atena. A deusa passou um braço por sua cintura, e jogou o braço de Jack sobre seus ombros.

— Você consegue andar?

Jack balançou a cabeça negativamente. Atena inspirou o ar profundamente e se colocou a andar. Por sorte, o rapaz era muito leve, e carregá-lo na volta não seria tão difícil. Hans e o outro guarda protestaram quando ela passou pela entrada do calabouço, mas Atena apenas continuou andando e os deixou para trás gritando. Ela carregou Jack nos ombros até seu quarto, e chegando lá, colocou-o sobre sua própria cama.

— Escute aqui, Jack - Atena virou seu rosto para ela. - Eu quero que tome um banho. Leve o tempo que precisar. Eu vou arranjar roupas limpas para você e volto logo. Tudo bem? Consegue fazer isso?

Jack assentiu e se levantou, cambaleando na direção do banheiro. Atena temeu que ele batesse a cabeça na pia ou na beirada da banheira, mas o deixou nas mãos de Tique e saiu mesmo assim.

Tinha assuntos mais importantes para resolver.

                                                                          ∆∆∆

— O que foi que você fez?

Atena entrou no escritório de Poseidon como um furacão, abrindo a porta com tanta força que fez voar um punhado de folhas que estavam sobre a escrivaninha. Atrás do móvel, Poseidon, que lia um papel, ergueu os olhos, interessado. Atena tinha que admitir que fraquejou ao sentir aquele olhar sobre si, mas manteve-se firme.

— Bem, eu fiz muitas coisas - replicou Poseidon sugestivamente. - Você vai ter que ser mais específica.

— Com Jack - Atena explicou, impaciente. - O que você estava pensando ao deixá-lo daquele jeito?

Poseidon estreitou os olhos flamejantes para ela.

— Agora você é a defensora do garoto? - Poseidon se levantou, contornando a escrivaninha e parando na frente de Atena. Ele continuou, apontando o dedo em sua cara. - Escute aqui: ele fugiu do palácio, sabe-se lá para onde, quando eu deixei bem claro que ele só tinha permissão para circular aqui dentro. Ele me desobedeceu, e foi punido por isso.

— Punido? Aquilo não foi uma punição, foi uma tortura - Atena bateu uma mão na mesa. - Por acaso você viu o estado dele? Ele nem consegue andar!

Poseidon franziu o cenho e em seguida ergueu as sobrancelhas.

— Mas eu não fiz nada com... – seu rosto se iluminou de repente. - Espera, como você sabe disso?

Atena mordeu o lábio, e seu nervosismo já dizia mais do que qualquer coisa. Poseidon respirou fundo antes de falar:

— Você não o tirou de lá, tirou, Atena?

— Talvez - disse Atena baixinho. - Ele estava terrível, Poseidon. Eu tive que cuidar dele.

Atena sentiu, tão bem quanto fosse possível, a temperatura do cômodo despencar. Ela nunca havia visto aquilo acontecer antes - Poseidon influenciar o clima de um local por causa de seus sentimentos -, provavelmente só acontecia no fundo do mar, mas de toda forma, foi o suficiente para despertar uma pequena pontada de... Não medo, mas talvez apreensão dentro dela. A fúria de Poseidon não era, afinal, conhecida por ser fraca. E se ele era capaz de mudar o clima ali, quem sabia o que mais ele poderia fazer? O silêncio que se seguiu àquilo foi o pior de todos os tempos. Os dois deuses se encaravam, dominados por sentimentos diferentes, um fervilhando em fúria e a outra sustentando seu olhar, mas ambos compartilhando uma mesma percepção: estavam próximos demais. Tão próximos que Atena podia sentir a respiração de Poseidon em seu rosto. Tão próximos que qualquer movimento brusco poderia fazer com que seus corpos colidissem, assim como Atena sentia milhares de ondas revoltas em todo o planeta colidindo com as encostas praianas naquele momento por causa da raiva do deus dos mares.

Atena ficou parada, esperando que Poseidon fizesse das duas uma: ou agarrasse seu pescoço para beijá-la ou para esganá-la. Ele parecia muito capaz de fazer qualquer uma dessas coisas no momento. Afinal, o olhar com que ele percorria cada centímetro de seu rosto, até parar em seus lábios, era extremamente sugestivo, assim como a fúria no mesmo olhar. Mas, para grande surpresa da deusa da sabedoria, ele apenas fechou os olhos por um demorado instante e se afastou, voltando a se sentar atrás da escrivaninha.

— Você fica responsável por ele - disse, sem olhar Atena nos olhos. - E se qualquer coisa acontecer, a culpada vai ser você.

Não era uma ameaça, ela sabia, apesar do tom perigoso usado por Poseidon. E ela sabia que estaria abusando da pouca paciência dele nos próximos segundos, mas permaneceu de pé onde estava. O deus voltou a erguer os olhos para ela, e dessa vez começava a parecer mais irritado do que qualquer outra coisa.

— Você quer mais alguma coisa? - ele perguntou com a voz arrastada de tédio.

— Na verdade, sim - Atena se afastou um pouco da escrivaninha, agoniada com o olhar de Poseidon tão próximo do seu. - Eu queria te devolver os seus poderes, agora que não estamos mais na ilha e... você sabe, muito perto dos titãs. Foi muita gentileza sua ter me emprestado, mas agora me parece um abuso ficar com eles e você com certeza não quer deixá-los comigo...

Atena estendeu o pulso para ele, esperando que ele fizesse o que quer que tivesse feito da última vez, mas Poseidon, apesar de parecer surpreso, apenas balançou a cabeça negativamente, e seus olhos estavam mais amenos agora. A temperatura da sala voltou a subir e normalizar outra vez.

— Não seja estúpida, Atena - ele respondeu, mas seu tom era mais brando. - Você morreria aqui embaixo no mesmo instante se eu os tirasse de você. Além do mais, vamos precisar voltar à ilha dos titãs eventualmente, e você vai precisar deles.

Atena já sabia de tudo isso (era a deusa da sabedoria, afinal; ela sabia de tudo isso muito antes de Poseidon), mas queria dar a ele a chance de tirar os poderes dela se quisesse, sem ter que pedir. Ainda não estava certa da resposta dele, mas já era um alívio saber que a raiva de Poseidon ainda não era tão grande a ponto de deixá-la às relés da sorte tentando respirar a mais de quinze mil pés de profundidade.

— Tem certeza? - ela insistiu uma última vez, o pulso ainda estendido.

— Tenho - Poseidon envolveu seu pulso com a mão e o empurrou de volta para Atena. - Isso é tudo?

Atena abaixou o olhar. Mesmo na época em que eram inimigos declarados, ela não se lembrava de uma única vez em que Poseidon a tivesse tratado daquela forma: querendo estar longe dela, expulsando-a de sua sala. Um sentimento doloroso apertava seu coração ao receber aquele tratamento. Há poucos dias, estava naquele mesmo cômodo com Poseidon, conversando e corando pelas coisas que ele dizia. Agora, tão pouco tempo depois, já era tratada como uma intrusa ali.

No entanto, se essas eram as consequências de fazer o que era certo, Atena teria que aceitar.

— Sim, é tudo.

Poseidon sequer respondeu ou se despediu; apenas voltou a olhar para os papéis em sua mão como se Atena já não estivesse mais lá. E a deusa, sem nenhuma outra escolha, teve que se retirar.

                             ∆∆∆

No fim das contas, Atena ficou tão ocupada pensando em Poseidon que se esqueceu das roupas de Jack. Só se lembrou quando estava na frente da porta de seu quarto, prestes a entrar. Ela forçou seu cérebro a funcionar. Os empregados do castelo poderiam emprestar roupas, mas Atena não tinha coragem de pedir (não sabia nem onde encontrar um funcionário; eles pareciam sumir enquanto trabalhavam), e tampouco podia deixar o pobre Jack sem roupas. Por costume, seus olhos recaíram sobre a porta do quarto de Poseidon, logo à frente da sua. Seria uma péssima ideia. Talvez a pior ideia que já tivera em toda a sua vida. Sua própria mente estrategista dizia que aquilo daria errado. Mas Poseidon tinha centenas de roupas e já estava bravo com ela de toda forma, então o que quer que acontecesse, não poderia ficar pior do que já estava.

Olhou rapidamente para os lados, certificando-se de que não vinha ninguém, e abriu a porta cuidadosamente. Não sabia o que tinha acontecido, mas o quarto de Poseidon estava milagrosamente arrumado. Sem roupas no chão, sem colchas bagunçadas sobre a cama. A única coisa fora do lugar era um livro grosso em cima do criado mudo, que ele provavelmente estivera lendo na última noite. Atena quase involuntariamente procurou vestígios de que outra pessoa tivesse estado ali, mas não havia nada: nenhuma peça desconhecida de roupa, nenhum cheiro diferente no ar, nem mesmo uma dobrinha para indicar que aqueles lençóis haviam sido usados ou bagunçados. Ela sequer sabia explicar porque se sentia aliviada depois de constatar isso.

Sem perder mais tempo, Atena correu até o guarda roupa e pegou as primeiras peças que viu pela frente: uma calça jeans escura, uma camisa polo azul e um par de tênis esportivos brancos. Enrolou tudo debaixo do braço e, no momento em que se virou para sair, ouviu o clique da porta abrindo.

Atena não precisou de mais de um segundo para saber que estava muito encrencada.

Poseidon não a viu inicialmente, parada no canto ao lado do guarda-roupa como se fosse uma horrorizada vítima de Medusa. Ele entrou no quarto distraído, arrancando a camisa que usava pela cabeça, e só quando o tecido saiu da frente dos seus olhos e ele parou na frente de um espelho foi que o deus olhou pelo reflexo e a viu.

Atena não soube dizer ao certo qual era o sentimento nos olhos de Poseidon, mas conseguia, no mínimo, interpretar um "você de novo?" enquanto ele a encarava, meio incrédulo, como uma ladra com suas roupas debaixo do braço.

— O que você está fazendo?

O coração de Atena falhou uma, ou talvez dez batidas. Antes sequer que prestasse atenção ao que ele disse, corria um olhar pelo peitoral exposto de Poseidon: os bíceps delineados que ela admirava sem parar, o abdômen forte e o peito firme onde adorava deitar a cabeça. Ela precisou balançar a cabeça e pigarrear para prestar atenção ao que realmente acontecia.

Sua mente de deusa da sabedoria imediatamente analisou aquela pergunta: Poseidon, dolorosamente para ela, não perguntou o que ela estava fazendo ali, em seu quarto. Perguntou o que ela estava fazendo, porque era muito mais comum ter Atena ali do que ter Atena ali pegando sorrateiramente suas roupas para levar à alguém.

Aquela era uma das pouquíssimas vezes em seus milênios de vida em que Atena se viu sem palavras.

— E-eu só estava... - ela gaguejou. - Eu só...

Poseidon ergueu uma sobrancelha, e Atena podia jurar que ele estava achando graça daquela situação. Assim, só para recuperar seu orgulho e dignidade, ela respirou fundo e falou calmamente.

— Eu precisava de algumas roupas para o Jack, mas não sabia onde encontrar...

— Então você veio pegar das minhas - Poseidon completou. - Escondida.

Ele definitivamente estava se divertindo com a situação, e aquilo só fazia Atena ficar ainda mais brava. Infelizmente, ela não podia dizer nada em seu favor ali, já que realmente estava errada (em partes).

A deusa, audaciosamente, deu de ombros.

— Onde mais eu pegaria?

Ela sabia que estava brincando com fogo ao provocar Poseidon daquele jeito, mas qual o pior que ele podia fazer? Tratá-la como se fosse uma sujeira, do modo como fazia agora?

O deus foi até a porta e a segurou aberta. Atena olhou confusa para a saída.

— Eu levo as roupas ou...?

Poseidon rolou os olhos.

— Leve, Atena.

A deusa caminhou lentamente até a saída, seu coração pesando de um jeito que ela jamais havia sentido. Poseidon continuava ali, esperando que ela saísse, seu olhar indiferente à tudo o que ocorria dentro de Atena. Ela já estava na soleira da porta, prestes a sair atravessar o corredor, quando um impulso saído de qualquer lugar a fez virar e encarar o deus dos mares:

— Poseidon, chega, não dá mais - ela soltou, exasperada.

O deus continuou inexpressivo diante de sua explosão, os músculos de seu rosto mal se movendo quando ele perguntou:

— O quê?

— Isso tudo. Não dá, é demais para mim - Atena continuou; era a primeira vez em que se via tão desesperada por perdão. - Você está com raiva de mim?

O olhar de Poseidon passou de indiferente para incrédulo, e Atena tinha sua resposta bem ali antes mesmo que ele falasse em voz alta.

— Eu não sei se raiva é a palavra - sua voz estava hesitante, grossa, e aquela parecia ser a primeira vez em que ele falava honestamente com Atena naquele dia. - Mas enquanto não encontro outra... Sim, raiva vai servir.

— Então me fale isso - Atena pediu. - Grite comigo, me expulse do seu quarto, me expulse do seu palácio, me mande para longe dessa missão e nunca mais olhe na minha cara, mas faça alguma coisa. Fale comigo. Eu aguento o que você fizer. Mas esse silêncio... - a deusa suspirou. - Com isso eu acho que não consigo lidar.

Poseidon se desencostou da porta, os olhos muito fixos nos de Atena. Algo parecia ter mudado nele agora, a deusa não saberia dizer o quê.

— Eu só estou retribuindo o que você me fez, Atena - ele respondeu, a voz firme. - Não se esqueça de que foi sua escolha que as coisas entre nós ficassem desse jeito. Não precisava ser assim.

E Atena entendeu o tamanho da implicação daquele "não precisava ser assim". Ela sabia o que Poseidon queria dizer. Não precisava ser assim. Não precisavam estar sem se falar. Não precisavam dormir em quartos separados. Não precisavam lançar olhares de fúria toda vez que se encontravam. Essa era, afinal, uma escolha de séculos. Não precisava ser assim. Nunca precisou ser assim. Mas outra vez, Atena decidiu que era.

— Eu sei - Atena admitiu. - Mas eu não queria que fosse assim. Eu queria... Eu não podia... Não podia mais ser aquilo.

Poseidon balançou a cabeça negativamente.

— Com você é sempre isso. Não pode, não pode... - ele já parecia cansado de dizer aquilo. - É claro que pode, Atena. Do modo como você escolheu acabar com isso, poderia ter escolhido continuar.

Atena abaixou a cabeça. Não enxergava um jeito de fazer Poseidon perdoá-la, entendê-la, sem contar a história toda. E isso ela não podia fazer. Aí é que ele não a perdoaria mesmo.

— Mas também não precisava ser desse jeito - ela tentou uma última vez.

— Como eu disse - Poseidon repetiu, - você escolheu de que jeito seria.

Atena ergueu a cabeça, o encarando fixamente.

— E eu ainda tenho uma escolha?

Era uma pergunta direta demais para ser interpretada de outra maneira, mas Poseidon apenas se afastou, fazendo menção de fechar a porta.

— Você sempre teve uma escolha.

Atena queria escolher voltar atrás. Queria escolher ouvir suas piadas idiotas o dia inteiro nos momentos mais inoportunos. Queria escolher que ele a abraçasse durante a noite e nunca dormir com frio outra vez. Queria escolher deitar em seu peito enquanto assistiam a um filme besta e conversavam sobre o que não deviam. Mas como ela diria para ele que essa era sua escolha quando havia dito exatamente o contrário na noite passada? Como ela deixaria para trás todos os seus medos, todas as ameaças, as palavras ecoando em sua cabeça?

A deusa não conseguiria olhar para ele nem mais um segundo com aquela dor que sentia, então simplesmente deu meia volta e correu para seu quarto. Se assustou um pouco ao encontrar Jack enrolado em uma toalha quando chegou, mas pensou que não poderia ser diferente. Afinal, as roupas dele estavam em sua posse. O menino ainda parecia fraco depois do banho, mas ao menos estava limpo. Sem toda a sujeira que o revestia, Jack lembrava ainda mais Apolo. Até o físico dos dois era parecido, embora Atena não estivesse reparando em tal coisa, é claro.

— Eu, hum... Trouxe suas roupas - disse Atena, estendendo aquele bolo de tecidos para Jack.

Ele disse um "obrigado" que seria inaudível se Atena não estivesse bem à sua frente e voltou ao banheiro para se trocar. Quando saiu de lá, parecia até um ser humano decente, não fossem os cortes em seu braço e seus olhos, que fechavam a todo instante.

— Precisa descansar? - Atena perguntou, sem precisar de resposta.

Apesar de tudo, Jack tentou ser modesto e afirmou que estava bem, mas até um cego poderia ver que ele estava prestes a desmaiar ali mesmo. Não foi necessária muita insistência para que, por fim, ele aceitasse a oferta. O jovem dormiu na mesma hora em que recostou a cabeça no travesseiro.

Atena sentiu-se satisfeita ao vê-lo descansar. Jack não parecia ser má pessoa, apesar de tudo. Só queria dar menos despesas à própria família e ter alguma honra. E ela o ajudaria nisso. Estava indo para o andar térreo quando foi parada por Helena, que tinha uma feição preocupada.

— Atena - a menina sorriu. - Eu estava preocupada com você. Por que não veio tomar café da manhã conosco?

— Eu comi no meu quarto - respondeu Atena. - Não estava muito a fim de ficar perto de Poseidon, você sabe.

— Aquele idiota também não apareceu para o café. O que aconteceu? Ele fez alguma coisa? - Helena fechou a cara. - Se ele fez, pode me contar. Eu estou mesmo precisando ter uma conversa muito séria com ele quanto a tratar bem as mulheres.

Atena riu, balançando a cabeça.

— Não, ele não fez nada. Receio que você não possa resolver esse problema.

Helena colocou uma mão sobre o ombro de Atena.

— Quer falar sobre isso? Eu tenho um tempo livre.

Atena ponderou. Conhecia Helena há poucos dias, e ainda não tinha uma base que provasse que a menina era digna de confiança. Quem garantia que ela não contaria tudo à Poseidon mais tarde? Contudo, não podia conter mais o que se acumulava em seu peito, e quando Helena entrelaçou seus braços e a levou para fora, Atena contou a ela tudo o que havia acontecido, desde o dia em que conheceu Poseidon até a noite anterior, quando a menina chegara na sala anunciando a fuga de Jack.

O assunto levou horas e horas para ser bem explicado, mas Helena era uma ouvinte excelente. Não interrompia, prestava atenção e fazia as expressões certas nas horas certas. Ao final, exibia no rosto o sentimento esperado: choque.

— Oh meus deuses - sussurrou, pasma. - Atena, eu sinto muito. Nem sei o que dizer. É... Realmente uma história forte.

— Eu já esperava.

— É uma situação complicada - afirmou Helena. - E por favor, não fique com raiva, mas se aceita um conselho, eu acho que você deveria dar uma chance para Poseidon.

Atena não sentiu raiva, mas ficou surpresa ao ouvir as palavras da amiga.

— Depois de tudo o que eu disse, você acha que eu devo dar uma chance a ele?

— Sim. Sabe, ele é um bom homem - disse Helena. - Odeio ter que falar bem de Poseidon, mas é verdade. Ele é mulherengo, sim, mas isso é porque ele ainda não encontrou alguém por quem valesse a pena esquecer todo o resto. E eu posso afirmar com propriedade que ele mudou muito depois que você chegou aqui. Não sei o que você fez, mas acendeu algo nele que eu nunca vi. Ele está realmente tentando. E sabe de uma coisa? Ele não ficou com nenhuma mulher desde que você chegou aqui. Nenhuma. Sabe o que significa isso?

Bem, essa não era realmente a maior preocupação de Atena. A deusa seria bem capaz de superar algo assim, se fosse por Poseidon. Não, o problema maior era o problema. Atena jamais se perdoaria se algo acontecesse com Poseidon por sua culpa. Mas claro, Helena só conhecia parte da história, então só poderia oferecer parte da solução.

— Ele com certeza deve estar preocupado com a missão - justificou Atena. - Esse é o motivo.

— Ora, vamos lá, Atena, você não é burra - exclamou Helena, impaciente, e Atena teve que admirar sua audácia. - Não vê o que está bem na sua frente? Poseidon venera você. Ele fica diferente quando você está aqui. Fica mais alegre, mais relaxado. Se você morasse aqui a tanto tempo quanto eu, perceberia a mudança.

Atena balançou a cabeça.

— Tudo bem, talvez ele goste de mim, mas não passa disso. Se acha que eu sou o amor da vida dele, por favor, não se iluda com isso. Eu não sou. Se eu fosse, ele no mínimo me entenderia, tentaria me ouvir.

— Eu não disse isso - Helena sorriu. - Mas fico feliz que você tenha ampliado seus horizontes. Meu conselho: façam as pazes. Ele já está começando a ficar insuportável, e olha que vocês só estão brigados há algumas horas.

Atena suspirou.

— Eu não vou pedir desculpas. E duvido que ele vá, também.

— Argh, vocês são iguaizinhos, tão teimosos. Fiquem dançando no escuro, então. Mas quando perceberem que não vivem sem a companhia um do outro, não digam que eu não avisei.

Helena se despediu, dizendo que ia a um encontro com um sereiano, e saiu saltitante, deixando Atena sozinha nos jardins. A deusa decidiu voltar ao quarto e checar Jack. Talvez ele já tivesse acordado.

Estava já no hall de entrada quando ouviu Poseidon conversando energeticamente com alguém em algum lugar próximo ali. Curiosa, seguiu as vozes até chegar a um dos corredores do palácio, um dos quais levavam para o lado de fora. A pessoa com quem Poseidon conversava era um tritão, afinal, e os dois silenciaram assim que perceberam a presença de Atena.

— Aconteceu alguma coisa? - ela perguntou, meio envergonhada por ter sido pega espiando.

— Mais um ataque ao Acampamento - Poseidon respondeu, correndo a mão pelo cabelo. - Os semideuses conseguiram pegar um dos monstros que atacavam dessa vez. Quíron pediu para nos chamar.

— E o que estamos esperando? - Atena perguntou. - Vamos para lá!

Sabia que não estavam em um bom momento da sua relação, mas em meio à afobação e desespero, Atena não pensou muito antes de segurar a mão de Poseidon e transportar aos dois para o Acampamento, se esquecendo completamente de Jack, sem vigia alguma e solto no palácio.

Tudo ainda era um alvoroço quando chegaram, o que indicava que o ataque havia acontecido há pouco tempo. Poseidon puxou de volta a própria mão de forma rude e saiu andando, sem esperar por Atena. A deusa correu para acompanhá-lo, e quando firmou o passo ao seu lado, o silêncio que se instalava era mais do que insuportável. Seguiram assim, naquele clima fúnebre, até chegarem à Arena, onde grande parte dos semideuses estavam reunidos. Não demorou muito para que encontrasse a cabeleira loura de Annabeth no meio das arquibancadas, sentada ao lado de Percy, que falava algo muito próximo dela, por causa do barulho alto de todas as vozes tumultuadas. Feliz por se livrar da companhia de Poseidon - mas não por muito tempo, já que ele também estava ali para ver o filho, que não por acaso estava bem do lado de Annabeth -, Atena correu até sua filha e a abraçou fortemente, sem se importar com o olhar chocado de Percy. Talvez porque já estivesse sentimental por causa de sua briga com Poseidon, ou talvez porque realmente sentisse saudade de Annabeth, mas sentiu vontade de chorar ao sentir os braços da menina circundarem seu corpo algum tempo depois.

— Annabeth, eu fiquei tão preocupada - disse Atena fechando os olhos. - Você está bem? Se machucou? E o bebê?

— Eu e o bebê estamos bem, mãe - disse Annabeth, que também parecia um pouco atordoada. - Foi só um susto. O ataque foi pequeno, e estávamos acordados quando começou, então conseguimos intervir rápido. Capturamos um dos monstros, inclusive.

— Sim, eu ouvi dizer - Atena se virou para Percy, que por algum motivo não falava com Poseidon, sentado ao seu lado, mas observava a conversa das duas. - E você, Percy? Está bem?

— Tive uns arranhões durante a luta, mas não foi nada - Percy sorriu, mas era possível ver o cansaço em seus olhos. - Obrigado pela preocupação, senhora Atena.

— Sem senhora - Atena o dispensou com um gesto da mão. - Você é meu genro. Acho que já chega disso.

Quem sorriu dessa vez não foi Percy, mas Poseidon. O semideus parecia, sobretudo, chocado e sem reação; já o deus dos mares parecia querer disfarçar seu sorriso, olhando para o outro lado, mas quando seus olhos encontraram os de Atena, ainda havia a sombra de um repuxar de lábios ali. E dessa vez, Atena não desviou os olhos. Queria que Poseidon a visse. Queria que ele enxergasse tudo o que ela queria dizer, o quão arrependida estava pelas coisas que havia dito. É claro que não conseguiria transmitir tudo isso com um olhar, mas esperava que ao menos um "me desculpe" fosse compreendido. E talvez tivesse funcionado, porque Poseidon também não desviou o olhar. Antes que a cena ficasse mais estranha do que já estava, Atena pigarreou e voltou a olhar para Annabeth.

— Eu não queria sair tão cedo, mas vocês devem estar cansados - disse, se referindo a ela e a Percy. - Sabem onde está Quíron?

— Ele está na orla da floresta, perto do refeitório, com o Sr. D. - Percy respondeu. - Prenderam o monstro lá, com a ajuda das ninfas.

— Certo - Atena olhou para Poseidon. - Você vem comigo?

— Sim - Poseidon pigarreou, se levantando. - Foi bom te ver, filho. E a você também, Annabeth.

— Obrigada, senhor - respondeu Annabeth.

— Sem senhor, por favor.

Poseidon sorriu brevemente e saiu andando antes que Atena tivesse tempo para se despedir decentemente do casal. A deusa acenou com a cabeça para cada um e correu atrás de Poseidon. Ela começava a pensar que já estava fazendo isso demais para o seu próprio bem. Ainda no silêncio gélido com o qual decidira tratar Atena, Poseidon seguiu a passos rápidos para a floresta.

Teriam localizado Quíron facilmente mesmo sem a ajuda de Percy. Isso porque o monstro que haviam capturado tinha o tamanho de uma árvore adulta e a largura de dois elefantes. Sua pele alaranjada era coberta de espinhos amarelos, e suas garras pareciam serras elétricas. Atena nunca havia visto nada assim antes.

— Atena, Poseidon, que bom que chegaram - Dionísio gritou quando estavam próximos. - Já estava ficando preocupado. Venham, deem uma olhada no monstro. Pesquisamos todo o bestiário do Acampamento e não encontramos nada parecido.

Não era como se fosse necessário chegar perto para "dar uma olhada" no monstro. Ele seria visível a metros de distância se o refeitório não tapasse a visão da Arena, mas Atena resolveu se aproximar. Conjurou rapidamente uma adaga de bronze celestial e fez um pequeno corte no calcanhar do monstro, o lugar mais alto que alcançava em tamanho humano. Do corte, escorreu um líquido preto grudento. Não era icor, e também não era a poeira dourada que geralmente saía dos monstros. Na mesma hora, tratou de conjurar também um frasco de vidro, e colheu algumas gotas da substância. Não se demorou muito na análise, sabendo que não obteria resultado algum encarando o monstro, e logo voltou para onde todos estavam parados.

— Eu vou fazer algumas pesquisas sobre ele - disse, guardando o frasco no bolso da calça jeans. - Aviso se descobrir qualquer coisa.

— Muito obrigado, senhora Atena - Quíron agradeceu.

— Sempre que precisar, Quíron - Atena sorriu. - A propósito; Dionísio, quem está me substituindo no Olimpo?

— Você acha mesmo que o querido papai deixaria alguém ficar no seu lugar? - Dionísio zombou. - Ninguém está te substituindo. Estamos esperando o fim dessa missão para discutir muitos projetos olimpianos.

Como se já não fosse pressão suficiente ter que matar titãs e agora monstros desconhecidos, Dionísio ainda vinha e soltava uma daquelas. O coração de Atena pesou só de pensar nas consequências que sua demora estava trazendo para o mundo inteiro.

— Nós vamos acabar logo com isso - prometeu. - Só precisamos de um pouco mais de tempo.

— Ah, não se apressem, temos a eternidade toda - disse Dionísio sorrindo.

Atena revirou os olhos. Ou todos estavam sendo babacas naquele dia, ou sua paciência estava esgotada desde a hora em que acordara. Já estava tão farta da ignorância de todos que nem se deu ao trabalho de chamar Poseidon antes de se teleportar para o palácio de Atlântida. Não queria mais sua companhia. Não queria ir atrás dele. Não precisava de mais pessoas frias em sua vida.

Se aquele era o jogo dele, então ela jogaria também.


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