Caring escrita por Mildrith


Capítulo 1
Capítulo único; Cuidando.




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Caring.

Quando as folhas caem antes da hora, alguém tem de segurá-las.

“Kyoutani, não chegue atrasado!”

“Kyoutani, toma cuidado com essa bola!”

“Kyoutani, se não levar isso a sério, te chuto da quadra!”

“Kyoutani, não se faça de idiota!”

“Merda, Kyoutani, seu idiota!”

 Aquela era a rotina do garoto cujo nome parecia mais uma sina, saindo incontrolavelmente dos lábios de um outro de seu mesmo ano. Mas o ano era a única coisa que tinham em comum.

Yahaba Shigeru.

Aquele que parecia ter prazer em encher o seu saco, em vê-lo irritado e prestes a explodir. Aquele que não tinha medo ou deixava-se intimidar com suas ameaças - o que no começo, fora um choque qual não estava preparado para receber.

Não havia nada que irritasse-o mais do que alguém pegando no seu pé, principalmente, se fosse alguém como aquele carinha que nem titular era. A injustiça era tamanha que nem mesmo podia enfiar o punho na cara dele. Se o fizesse, muito provável que seria expulso. E por mais que tivesse um gênio difícil – o que não era difícil de deduzir, era só deitar-lhe um olhar -, amava o vôlei. Não sabia se “amar” seria o termo correto, inexperiente para com o termo como era. Entretanto, pela intensidade que as pessoas ao seu redor atribuíam ao sentimento em questão, deduziu que era exatamente isso que sentia. Sim, Kyoutani Kentarou amava o vôlei.

O adolescente tinha apenas duas certezas naquela época.

Uma, era esta de que amava o vôlei. A outra, era que odiava Yahaba. Aquela implicância era de propósito, tinha quase – total - certeza. Não o via fazendo do nome dos outros hábito para seus lábios, nem mesmo criticando tudo que os demais colegas – que também eram humanos, que também erravam -, faziam. O problema era consigo, e quando alguém tinha um problema consigo, Kentarou preferia que fossem resolvidos diretamente.

Mas como alguém como ele, que passou toda sua vida resolvendo as coisas na base dos punhos e da intimidação, resolveria aquilo de maneira que não prejudicasse seus treinos; como resolveria algo que nem sabia o motivo de existir? Não podia bater naquela cara de mimado, a resposta óbvia, e aquilo o deixava puto. E o pior, agravou-se quando nem mesmo conversar com seus senpais ajudou.

“Ah, Kyouken-chan, só você não percebeu ainda!” O capitão, Oikawa, dissera, num tom animado e alto, quando fora questionar o que o maldito levantador que ficava no banco tinha contra si.

“Percebi o quê?” Resmungou de volta, encarando o sorriso cúmplice que todos pareciam trocar, exceto o próprio Yahaba que estava longe demais para participar da conversa.

No fim, voltara para casa com a mente carente de qualquer informação que pudesse ser útil às suas dúvidas. Seus punhos estavam apertados, vibrando para fazerem o caminho até a pele macia e clara, deixar umas boas marcas para mostrar quem é que criticava quem ali; a diferença, é que sua crítica doeria menos do que as de Shigeru doíam.

Afinal, sabia melhor que qualquer um o quanto era impulsivo, descontrolado, sem qualquer bom senso tanto em jogo quanto fora. Ele tentava, desde que se vira responsável pela derrota da Seijou contra Karasuno. Desde que se sentira aceito pelo time. Ele tentava o seu máximo, mas era impossível mudar de um dia para o outro até mesmo com a mais profunda das determinações. Mas continuaria tentando para preservar aquela sensação. A sensação de ter a mão dos colegas dando-lhe tapinhas amigáveis no ombro, comemorando um ponto, ou mesmo, cedendo-lhe um elogio; aquilo incentivava-o mais do que poderiam imaginar.

Naquele quesito, sem dúvidas, era quase como um cão. Não um louco como o capitão insistia em apontar, mas sim, um daqueles que estão apenas à espreita, rosnando, ansiando por um carinho na cabeça para finalmente poder sacudir a cauda.

“Kyoutani, você não está indo com tudo!”

Eu vou com tudo é nessa sua cara. Pensava com amargura, fitando com as sobrancelhas juntas aqueles olhos grandes e castanhos, que mais pareciam duas avelãs. Avelãs que permaneciam fitando-o sem emoção, na maioria das vezes distraído ou mesmo, com uma emoção demasiada para o seu gosto; apontando cada um dos seus defeitos que lutava para encobrir com a explosiva - mas ainda pouca - habilidade que tinha. Não sabia qual daqueles dois tipos de olhares mais o perturbava. Se limitou à manda-lo aos lugares desagradáveis e continuar o treino. Como sempre se limitava.

Odiava se sentir limitado.

Naquela tarde, uma sexta-feira de um início de uma primavera, pouco depois de começar o treino, estava tão distraído que não percebeu quando a bola viera. A afirmação do outro dia de que apenas ele não percebera passava a ideia de que se tornara piada interna do time. Murchava lentamente, toda a esperança de ser parte de algo se esvaindo, tanto quantos seus reflexos naquela tarde em questão. Seu ânimo ia esvaindo-se da mesma maneira que o sangue escorreu do seu nariz e lábios cortados quando a bola acertara sua cara, em cheio, com um baque de chamar a atenção de qualquer pessoa há menos de cem metros.

Veio tudo de uma vez; a irritação em ser acertado, a dor, a percepção de que sangrava. Todos interromperam o treino, mas ninguém ousou falar - e muito menos se mover - por longos segundos. Exceto o gemido dolorido e arrastado que saia de sua garganta, a vastidão só era quebrada pelo quicar da bola que acertara seu rosto.

— Kyoutani, toma cuidado com essa bola! – a primeira voz que quebrara o silêncio era a que menos queria ouvir. O garoto falava como se não fosse a distração pura, infernos!, não tinha direito de criticá-lo num quesito que se igualava. Sua irritação só aumentou, deixando o rosto do loiro quase tão rubro quanto seu sangue. Levou a mão até o nariz, onde o líquido escorria com maior intensidade em finas linhas, enquanto todos começaram a se mover ao mesmo tempo. Estava com o xingamento preso à garganta quando sentiu um par de mãos guia-lo até um banco.

— Isso dói! – deixou escapar, se negando a retirar as mãos que tapavam o nariz e apertando os olhos para afastar a tontura. Sua camiseta branca estava manchada de vermelho, pequenas gotas escarlates decorando a peça enquanto o cheiro férrico se espalhava.

— Tire a mão, se não, não posso ver – Yahaba pediu, tentando puxar estas mesmas e sujando os próprios dedos longos no processo. Assustou-se com a insistência, o que não era uma surpresa considerando sua relação com o dono das mãos macias. Com muito êxito, o rapaz ignorou seu sobressalto e permaneceu com um lenço no colo e a garrafa de água ao lado, pronto para estancar o sangramento – mesmo que fosse quase nulo -, e limpar o rastro sutil que transformou sua cara numa bagunça avermelhada. Lentamente, ainda um pouco receoso, abaixou as mãos para o colo e fixou o olhar, levemente ardente pela dor súbita, no rosto concentrado do mais alto. Shigeru molhou o lenço com a garrafinha de água enquanto o restante do time se reunia ao redor, curiosos olhos sobre a inusitada interação.

— Vão buscar uma toalha – pediu seu enfermeiro improvisado e de plantão e a audiência se dispersou, deixando-os ali. Alguns riram enquanto se afastavam, deixando-o ainda mais confuso e frustrado com sua situação.

— C-cuidado! – reclamou alto e rude quando o tecido fino raspou em seu lábio, onde seus dentes cortaram sem pena.

— Sua cara ‘tá toda vermelha – e riu dessa sua mesma cara.

— É claro que ‘tá, imbecil!

Nem mesmo percebia a imensidade de caras e bocas que fazia enquanto era tratado, tão inabitual para olhares terceiros como um verão sem chuvas. Normalmente, sustentava a carranca como um acessório e o Yahaba pareceu fascinado com a facilidade como conseguia as expressões, simplesmente de acordo com a intensidade com que esfregava o leve corte.

— Mantenha uma mão no nariz até voltarem com a toalha – instruiu, com as avelãs disfarçadas de íris presas no lábio inferior ferido, vermelho. Sua ordem foi obedecida para sua satisfação e o sangue parou de pingar no short alheio. Quando o lábio não mais sangrava, subiu até onde a mão cobria e afastou-a, sentindo um pequeno choque quando os dedos roçaram de leve; tratou de apertar o nariz dele com o lenço surrado, apenas de provocação. – Nem sangrou muito, Kyouken exagerado.

E fizera uma expressão debochada que nada combinava com aquela carinha estúpida de criança. O loiro se limitou a rosnar, dando ênfase ao seu apelidinho.

— Pronto, pode ir lavar o rosto e se trocar – anunciou o moreno, deitando agora um olhar para os próprios dedos. Mas por mais estranho que fosse, não sentiu nojo quando notou-os sutilmente manchados. Foi a reação reflexiva, ajudar o Kentarou.

Disse a si mesmo que faria por qualquer um.

O mais baixo acenou, se levantando e mantendo a toalha que já havia recebido junto do nariz, seguindo para o vestiário.

— Tomem mais cuidado! – ouviram Tooru anunciar após checar que o garoto estava bem. Quando este sumiu de vista, a expressão tranquila foi substituída por uma um tanto indignada. — Yahaba, você não aproveitou a oportunidade?

— O quê?!, o Yahaba perdeu uma bola de graça? – foi a vez de Watari provocar.

Yahaba corou até os cabelos castanhos.

A risada do time dispersou o clima tenso, e logo, o “ferido em batalha” retornou, carrancudo, com dois pequenos pedaços de algodão enfiados no nariz mesmo que já não mais sangrasse.

— É melhor você não treinar mais. Ir na enfermaria, talvez.

— Hã?

Mais risadas, e agora ambos que viviam implicando um com o outro estavam confusos. Era só uma instrução, afinal, se Kyoutani treinasse, podia reiniciar o sangramento. Um bico se formou nos lábios do mais jovem, e para surpresa de todos – principalmente de um loiro em especial -, seu rosto permaneceu corado mesmo quando voltaram a treinar. E não era por esforço.

Que cara estranho. 

E de fato, o atacante passou a vê-lo com aquele adjetivo cada vez mais frequentemente.

“Kyoutani, mais forte!”

“Kyoutani, atrasado de novo, quem você pensa que é?”

“Kyoutani, respeite os senpais, inferno!”

“Kyoutani...”

Sabia o quanto Yahaba era tranquilo, apesar dos comentários. Tranquilo, sim, mas também implicante. Aquela tranquilidade, entretanto, podia desaparecer quando a situação exigia; trazendo à tona um lado menos afável à vista de todos. Principalmente, à sua própria.

Independente da intonação do dia, do sermão; a voz ficava cravada nos tímpanos mesmo quando deixava o ginásio, irritando, instigando-o a questionar o que diabos tinha com seu nome. Um dia, planejou fazer exatamente isso, após o treino. A primavera já estava ali e o ar trazia um cheiro bom de grama, flores, brisa fresca e algo mais que não conseguia identificar, não ainda.

Cheiro esse que descobriria ser de alguém, não necessariamente algo.

Cheiro esse que conseguia se sobressair ao desagradável do sangue de semanas antes.

Cheiro esse que era de Yahaba, que viera se instalar no seu olfato com grande acomodação desde que fora “ajudado” pelo rapaz. Seu joelho ainda formigava sempre que lembrava do mesmo se esbarrando com o do outro, mais suave, quando estavam sentados de frente um para o outro. Faziam semanas já, mas a lembrança era fresca tanto quanto o vento breve que agitava suas roupas, enquanto esperava-o recostado à parede ao lado da saída do ginásio.

O sol estava brilhante, mas não insuportável, pelo contrário, chegava a ser inspirador. Relaxou ali, afinal, era comum esbarrarem na saída, - mesmo que normalmente não era o que chamariam de esbarrada amigável -, e não seria mal compreendido... certo? Lembrar-se quantas vezes já se esbarraram - e era sempre o maior a cair de bunda no chão - lhe trazia um leve sorriso sarcástico aos lábios, tão desacostumados com o gesto, tão ressecados por si só. Não negava que um dos motivos de ir de frente com o mais fraco era porque gostava de poder vê-lo por cima, abaixo de si e sem aquela atitude impotente que tinha consigo sempre que encontrava brecha. Mas após um tempo, que não percebera quando iniciara, ver a expressão surpresa naquele rosto não era mais satisfatório. Principalmente, depois de ver decepção neste, na última esbarrada.

— Aí – se aproximou, chamando-o e saindo das próprias divagações assim que viu os cabelos castanhos e conhecidos. Os olhares se encontraram por tempos, mas logo, acabou desviando sem nem saber porquê. Quando Shigeru se aproximou também, confuso e estranha mas compreensivelmente receoso, voltou a erguer o olhar e falar, grave. – Eu não agradeci por aquele dia...

Ainda estava sendo encarado com tal temor que chegava a ser desconfortável. O garoto nunca se deixava intimidar, então, por que agora estava ali, olhando-o como se fosse ser atacado a qualquer momento? Aquilo frustrava-o, mas seu gênio fez com que se tornasse habituado a esse tipo de olhar ao longo dos anos e deixou o desconforto em segundo plano.

— Eu faria por qualquer um – o levantador deu de ombros, como se não fosse nada.

Mas para si, era muito.

Ninguém nunca fez aquilo para si, nunca ajudaram-no tão espontaneamente, sem nem lhe dar opção de aceitar ou não. E a forma como sentiu-se bem em ver preocupação voltada para si naqueles olhos, surpreendeu-o.

— Mentiroso – atirou a palavra, liberando toda sua frustração naquelas sílabas, dando mais um passo e tendo de erguer mais o queixo. Por mais que a diferença fosse apenas três míseros centímetros, queria observá-lo na mesma altura. – Você faz coisas por mim que não faz pelos outros.

Engoliu duro após soltar aquilo que tanto – e há tantos meses -, queria falar. Era pretensiosismo, talvez, mas era mais uma certeza que pudera acrescentar na sua pequena lista.

Ou talvez, substituir.

A falta de resposta desconcertou-o, entretanto. As árvores ao redor da propriedade eram as únicas fontes de sons, enquanto as folhas dançavam e vez ou outra, desprendiam-se dos galhos. Passado um longo minuto fitando um ao outro, logo suspirou pesado e estava quase desistindo, mas deteve a língua ao notar os lábios alheios se entreabrirem, se moverem com fluidez invejável.

— Tipo o quê? – a questão veio calma, quando as respirações se misturavam em suspiros entediados, resignados, derrotados pela parte de ambos.

— Meu nome. Você fica se preocupando comigo, e não sai do meu pé. É pior que garotinha apaixonada, porra.

Se arrependeu do que disse com a mesma rapidez com que cortava uma bola. A expressão neutra, os traços angelicais, tudo era substituído pela irritação crua em Yahaba. Já vira-o irritado uma vez. Como pudera esquecer? Nunca haviam batido de frente consigo, empurrado-o contra a merda de uma parede. Nunca deram aquele tipo de sermão que aquele reserva lhe dera, e Kentarou descobriu que as vezes tudo que precisava era de um sermão.

Abaixou o olhar, curioso com o movimento das mãos menores. Primeiro, sentiu o choque da dor. Um punho em seu estômago, deixando-o quase tonto. Mais era de surpresa que realmente dor. Por mais durão que aquele garoto fosse, ainda era mais fraco que si. Kyoutani provou isso após recuperar o fôlego, segurando ambos pulsos e puxando-os brutalmente para trás, prendendo-o, empurrando contra a parede.

Pagando na mesma moeda.

— Me solta! – foi a primeira coisa que a irritante e repetitiva voz gritou, irritado. Mesmo que movesse os pulsos, apenas conseguia fazer com que os dedos rudes se cravassem com ainda mais força na pele. Após alguns xingamentos, o loiro notou que respirava rápido, assim como o cativo de suas mãos. A adrenalina já surgia efeito em seus corpos.

Finalmente, vou meter o soco nessa cara idiota.

A situação favorecia-o, mas o olhar castanho que vinha encontra-lo por sob o ombro ainda era prepotente, como se tivesse algo em controle mesmo quando era óbvio que não tinha nada. Apertou mais os pulsos, mas a resposta à sua provocação foi diferente do que esperava. Ou melhor, a sua própria reação diante a resposta era diferente do que esperava.

— Hnng, Kyoutani... Me solta!

Seu aperto afrouxou sem seu consentimento, seus olhos alargando-se com a reação imediata de seu corpo, dando a brecha que o astuto garoto usou para empurrá-lo e se afastar, se pondo em defensiva.

— O que é que... – começara, o rosto vermelho e os ares irritados, massageando os pulsos feridos pelo atrito. Mas a reclamação ou indagação morreu ao fixar o olhar no cão. - Kyoutani?

Novamente, a preocupação indiscreta naquela voz irritante.

Novamente, o seu nome.

Que cara estranho.

Finalmente acordou do transe momentâneo e ergueu o olhar, buscando aqueles olhos quentes e incompreensíveis. Em seguida, compreendeu muitas coisas que estiveram expostas durante o tempo todo dentro daquele mar incompreensível. Só precisou seguir a maré, e entendeu. E olha que nunca fora alguém de compreender facilmente. Preso no líquido do castanho brilhante, se perguntou como podia ser tão lerdo em relação à algo que estava embaixo do seu focinho. Grunhiu em seguida, fazendo punhos firmes com ambas mãos e fechando ainda mais a expressão.

— Você é um covarde – acusou, e então, se virou para seguir rápido pela grama aparada. O cheiro era bom, mas em nada podia superar o daquele ser às suas costas.

Fugiu com a mesma covardia que acusara Yahaba de ter, com os passos firmes e rápidos, tendo os olhos acusatórios e as bochechas coradas gravados em sua memória, demonstrando o constrangimento que o garoto deve ter sentido ao perceber que já sabia.

Primeiramente, chegara a achar que o garoto só queria fazer amizade, por isso o tratava com todo aquele cuidado à parte. Mas era ingenuidade demais até partindo de alguém inexperiente em relações, como ele. Os olhos sempre postos em si, as risadinhas do time, as bochechas vermelhas naquela tarde do acidente, as bochechas vermelhas agora. Os olhos alheios observando-o como se estivessem encurralados pelo seu próprio olhar, estreito e delineado.

Desde a primeira vez que vira aquele garoto não gostara dele. Era um fato.

Não que Kentarou fosse do tipo que gosta de qualquer um, também, mas a coisa com aquele Shigeru era diferente. A voz, muito calma. As atitudes, muito tranquilas. A raiva, muito súbita. O rosto, neutro. Os traços, finos. O corpo, magro, esguio demais. E ele ser aqueles três centímetros mais alto mexia com seu orgulho de mais velho.

Passara longos anos de sua vida sendo julgado, portanto, era comum e previsível que agisse hostilmente em território desconhecido; e para ele, todo lugar era um território desconhecido. Foi assim que as desavenças vieram.

Aqueles olhos bonitos postos em si por tanto tempo, em todo treino, eram um lembrete do quão deslocado estava ali. Cabelo extravagante, delineador, mal-encarado, desleixado e bruto. Eram uma das poucas de muitas características que lhe eram atribuídas, na maioria das vezes, sem nem mesmo um fundamento que não fosse superficial.

No fundo, não era tão ruim, era?

As primeiras provocações – ou assim o loiro tomava como -, partiram do bonitinho. Chamando-lhe a atenção toda maldita hora, como se fosse a merda do capitão. Este qual, não ficava muito para trás em seu quesito de desgostar. Oikawa era extravagante, mas contanto que não viesse de extravagancia para consigo, pouco ou nada ligava. Agora, o garoto do cabelo certinho vir com toda a petulância dar opinião sobre sua força, sua postura, suas ações, seus atrasos, era algo que não podia engolir, e muito menos, ignorar.

Frustrado com as lembranças, tanto a respeito da primeira vez que conhecera o time, quanto em quesito das mais antigas; se sentou na mureta da construção ao lado de uma lojinha de conveniências, onde uma vez, a única que lembrava-se, se deixara levar pelos colegas de time e acabaram ali, sentados naquele mesmo lugar, cada um com um sorvete em mãos. E por mais que ainda sentisse-se terrivelmente deslocado, as risadas – até mesmo do babaca do Yahaba -, pareceram quase agradáveis. Suportáveis, reconfortante. Naquele dia, lembrava-se de estar mais para baixo que em qualquer outro, e talvez por isso, baixara a guarda ao nível de seu desanimo, o suficiente para deixar de rosnar e segui-los por uma vez sequer. Um cão obediente.

As lembranças, entretanto, vieram naquele dia enquanto encarava com estupidez o sorvete que derretia, lentamente, e escorria para sua mão.

“Porra, Ken, vai arranjar um trabalho.”

“Mas que caralho de cabelo é esse, garoto?”

“Que vergonha você dá ‘pra mim e ‘pra tua mãe.”

“Dá o fora daqui.”

E então, só ai, sua mãe interferiu. Continuava lá, dividindo a casa com completos estranhos, com a condição de não ficar no mesmo cômodo que o homem que já chamou de pai ficava. Era deprimente, cansativo. Uma hora, até a mais firme das folhas é levada pelo vento. E foi assim, uma folha verde, antes do outono, sendo arrancada dum galho tão podre quanto uma família hipócrita poderia ser. Não se arrependia, mas sentia falta de algumas coisas. Pequenas, singelas, mas importantes para um adolescente naquela idade.

— Ô, Kyoutani-san, vai sujar sua roupa – uma voz já vagamente conhecida na época, mesmo pelo pouco tempo que a ouvira, chamou sua atenção e não precisara se virar para saber quem estava ali, ao seu lado. Todos os demais conversavam, mas ali estava ele, enchendo seu saco e apontando-lhe sobre o seu sorvete.

Desde aquela época...

Pelo menos, ele ainda me tratava com honoríficos.

Sentado agora, naquela mesma mureta, se absteve em olhar para o céu opaco. Mantinha os braços cruzados sobre o peito e as sobrancelhas franzidas, concentrado em encontrar uma resposta satisfatória para aquilo tudo que rondava sua mente. Uma resposta para uma pergunta que nunca viria se dependesse do mais jovem.

O cheiro bom.

O toque quente e elétrico.

A voz e olhar preocupado.

O jeito que pegava no seu pé.

Aquelas eram, mesmo de longe, algumas das coisas qual sentia falta.

E mesmo tendo supostamente à sua disposição, não sabia como agarrar a chance. Acabaria afastando-a, como afastava à tudo e todos. Quando os olhos passaram a queimar pela claridade, fechou-os e deixou as horas passarem com uma lentidão tortuosa, mas necessária para que esquecesse ou lembrasse, não fazia mais diferença.

Uma semana depois.

— Kyouken-chan, vai deixar o Yahaba sem uma resposta?

Kyoutani olhou para ambos lados, só para conferir que a pergunta era realmente direcionada à si. Bem, não que houvesse outros com aquele apelido - que por mais que fosse inconveniente, não negava fazer sentido - tão carinhosamente doado por Tooru. Quando constatou que a questão era para ele mesmo, voltou a encarar os olhos curiosos, com as sobrancelhas acima destes arqueadas. O sorriso estampado ali naqueles lábios finos lhe dava ganas de socá-lo.

— Ei, Shittykawa, deixa o Kyoutani – a salvação veio com os cabelos espetados e expressão irritada. A bola que Iwaizumi trazia em mãos logo fez o caminho até a cabeça do levantador, que resmungou e olhou para trás, encontrando o Ás ali.

— Só quero ajudá-los! – se justificou, transformando o sorriso num bico que ninguém se compadecera por.

— Ele precisa de tempo.

Ah, merda, quando chegara naquilo? Todos pareciam saber. Sabiam também que ambos sabiam que sabiam.

Não saiam decidindo minha vida!

Queria gritar, mas apenas fechou ambos punhos com força, como fazia tantas vezes, enfiando as unhas na carne dura da palma.

— Mas o time não tem tempo, Iwa-chan. Eles estão se ignorando! – Oikawa voltou a falar, mas desta vez, lavou fora a expressão infantil e encarou os olhos verdes do amigo de infância, voltando-se novamente para o injustiçado rapaz em seguida, bobo perante a conversa que se desenrolava sem sua participação.

— Algumas pessoas precisam de tempo, não seja um babaca – advertiu o moreno, a expressão subitamente passou a escurecer. O capitão vacilou, e Kyoutani sorriu quando viu o temor no rosto bonito do seu senpai. O clima pesou, e estava cada vez mais confuso. Parecia que o foco nem era mais ele, o que de fato, aliviava seus ânimos. Fosse o que fosse, aqueles dois tinham algo que não podia compreender. E nem queria.

— Não estou ignorando ele – fora sua vez de justificar, desviando o olhar para a rede montada no meio da quadra. Era verdade, mas também não era. Quando voltou o olhar para os mais velhos teve um breve arrepio na linha da coluna. Era encarado por ambos, um brilho de clara mensagem “não fode, a gente não é cego” estampada naqueles olhares que pesavam ainda mais que o clima anterior. Odiava, e também nunca precisou o fazer, dar detalhes ou justificações para alguém, mas não queria soar mais infantil do que já estava dando a entender. - Talvez... um pouco. Ele também me ignora...

— Há – Oikawa apontou, pegando a bola que antes o atingira de leve na nuca e segurando-a em mãos. – Se não se resolverem... – deixou a frase em aberto, mas a sentença estava longe de intimidar o loiro.

— Para com isso, Assikawa!

— Iwa-chan!

E para seu alívio, se afastaram às alfinetadas.

Um suspiro pesado e aliviado abandonou seus lábios, já sem qualquer traço de corte, mas ainda ressecados como sempre foram. Umedeceu-os quando tomou noção do estado dos mesmos e girou os olhos pela quadra, até que pudesse avistar a figura esguia, praticando levantamentos.

Um mês depois.

Só podia ser brincadeira.

Mas felizmente, não era. Bem, feliz, mas também infelizmente.

Após tanto tempo, tomara alguma coragem para chegar até o banco e dizer as palavras. Curtas, diretas, seria assim que demonstraria qualquer coisa se fosse necessário. Pelo menos, é o que imaginara quando decidiu-se, na noite anterior, quando percebeu que não conseguia tirar os olhos do outro adolescente; nos treinos, na saída, nos corredores. E principalmente, no vestiário. Não costumava deitar os olhos por tanto tempo nos colegas, até porque, nunca achou ter qualquer interesse. Um engano leigo, e podia facilmente culpar Yahaba por ter despertado certa curiosidade inusitada. Curiosidade que se tornara impossível de controlar há exatamente uma semana atrás. Lado a lado, de frente para os armários, notou os olhos atentos sobre si conforme trocava de camiseta.

Ele não é nada discreto...

Pensara, com o rosto vermelho e os lábios crispados. Não ousava mover seu olhar, mas sem querer, o fez. Com o canto dos olhos, analisou cada centímetro da pele exposta, do corpo definido, mas magro. Parecia suave, diferente do toque rústico que o seu próprio tinha.

Eu não sou gay, não sou gay, não sou!

Talvez só um pouco.

Só pelo Yahaba!

Assim que terminou de enfiar a camiseta pela cabeça saiu apressado, batendo a porta do armário e esbarrando o ombro contra o do mais alto. Sem querer, mas o toque serviu para lembra-lo o quanto aquilo era comum há tempos antes. Antes de perceber.

Não diria que sentia exatamente “falta” dos encontrões, mas podia dizer com certeza que sentia das implicâncias; da preocupação e personalidade imprevisível que o rapaz trazia. Era frustrante, já que mal tinham contato antes, e agora, parecia faltar algo na sua vida apenas porque não mantinham nem mesmo o pouco que já tiveram. No começo, acreditou que não sentiria falta de nada, como sempre, sem arrependimentos à lhe bater na porta da consciência. Mas ser acolhido daquela maneira – mesmo que implícita -, era demais para poder assumir que nada acontecera, era demais para fingir que não sabia dos sentimentos de Yahaba. Tentou se por várias vezes no lugar do garoto, sendo rejeitado sem nem mesmo tendo se confessado. E sempre que o fazia, conseguia entender porque as avelãs brilhantes não encontravam mais o caminho para si, nem mesmo para seus pés.

Shigeru encarava suas mãos quando se aproximou. E quando notou sua presença, passou a analisa-las com interesse redobrado. Provavelmente esperava que passasse reto, como fizeram tantas vezes naquele mais de um mês se “ignorando”, como era apontado pelo próprio capitão. Evitar seria a palavra mais correta.

— Yahaba – chamou-o, provavelmente assustando o garoto pela iniciativa de uma conversa; ele estava no banco, se recuperando do treino duro. E quando ouviu sua voz, mais grossa que o normal pelo nervosismo, deixou de olhar para as mãos avermelhadas pelo constante choque da palma contra a bola para fita-lo.

Onde estava toda a atitude que decidira ter? Seu já prévio nervosismo aumentou ainda mais quando se encararam, diretamente, depois de todos aqueles dias. O olhar que recebia era indecifrável, mas não tinha ideia de como o seu próprio era ou o que transmitia.

Vergonha.

Arrependimento.

Culpa.

E acima de tudo... Ansiedade.

E se Shigeru não o quisesse mais? E se tivesse entendido tudo errado e não passasse do mais puro mal-entendido? Afinal, não era um cara com muitas qualidades para agradar alguém que parecia o total oposto de si. Conseguia sentir olhos postos sobre si, sobre a cena. Sobre sua insegurança que ameaçava afundá-lo cada vez mais na dificuldade que era até mesmo falar. Pigarreou, lutando para não desviar o olhar. Sua mão, foi até a parte detrás do pescoço e coçou sutilmente a área, tentando ganhar tempo.

— Yahaba...

— Fala logo, Kyoutani! – o maior se levantou, perdendo a paciência e pondo ambas mãos na cintura, marcando a curva desta. Desviou os olhos da área rapidamente, erguendo-os e se mantendo concentrado exclusivamente nos olhos. Não tinham nada demais, aqueles olhos, mas possuíam um quê agradável de fitar, passavam a confiança e toda a calma que tinham. “Falar logo” parecia impossível, assim como se manter inerte. Por isso, com uma longa puxada de ar, deu um corajoso passo à frente e agarrou as laterais do rosto de Yahaba, segurando-o firmemente enquanto aproximava os lábios, com rapidez, do par bem feito que se movia agora em surpresa. Os lábios do levantador eram muito mais suaves, nada ressecados como os seus próprios. O gosto levemente salgado do suor que escorrera nestes durante o treino de longe não o incomodara.

Quem disse que não podia resolver as “desavenças” com as mãos? Mas ao invés de cravar os punhos naquela boca irritante, a prensava com os lábios, com as mãos trêmulas enquanto puxava-o para mais perto. Não sabia o que estava fazendo, mas seu coração acelerado e a respiração presa na garganta diziam que era o correto; que era a maneira certa de pessoas como ele conseguirem se expressar.

Quando findou o selinho que durara longos segundos, pôde ouvir um grito eufórico que obviamente pertencia à Oikawa. Desejou que o capitão se engasgasse, mas logo ouviu-o resmungar no mesmo instante em que a “felicitação” cessava. Iwaizumi o calara, mas como, Kentarou nunca saberia. Estava ocupado fitando a expressão alheia; era cedida à si com tanta maestria que assemelhava-se ao prato principal de uma longa noite. No caso, de um longo mês e meio. Ou talvez, muito antes. Os lábios dele estavam entreabertos agora, apesar de que o beijo não passara de um selar bruto e demorado da sua parte. O rosto, num tom vermelho mais intenso que o que vira nas outras vezes. Deu um passo para trás, fascinado, sem saber muito o que fazer, dizer, e nem mesmo o que pensar.

Perdido, e momentaneamente, a ideia de fugir cruzou sua mente.

Chega de covardia.

Os olhos castanhos - que se fecharam em algum momento esquecido durante o ato -, abriram-se e então, se estreitaram.

— Acha que isso basta?

A perguntara o pegara desprevenido. Quando olhou para trás, viu que estavam sozinhos dentro do ginásio. Não que acreditasse que estava mesmo a sós; as janelas estavam lá e seus colegas eram uns malditos curiosos.

— Não, tem mais. Quantos... quantos quiser.

Ah, merda...

Era a coisa mais constrangedora que já havia dito em seus “longos” dezessete anos de vida. Bem, era também a mais constrangedora que havia feito. O silêncio roeu-o por dentro enquanto esperava, olhos fixos um ao outro. A expressão intimidadora do mais novo foi murchando e Kyoutani foi relaxando conforme aquilo acontecia. Deixou de apertar os lábios em uma linha crispada, deixou de formar punhos com as mãos calejadas e deixou que as menores agarrassem a gola da sua camiseta, deixou que estas mesmas mãos o puxassem.

Desta vez, o beijo era de fato um beijo, e começou menos eufórico. Shigeru lambeu a linha entre seus lábios, assustando-o e trazendo cor ao seu rosto. O músculo era quente e macio, e após hesitar, deixou que entrasse em sua boca. O levantador sabia beijar, diferente de si mesmo que se atrapalhava a cada movimento que o ato seguia. Abraçou-o pela cintura e trouxe-o para mais perto, sentindo seu agora conhecido cheiro próximo. O gosto do mesmo invadia-o com entusiasmo inovador, preenchendo cada canto da sua boca com a saliva que não era a sua, e aquela era uma das melhores sensações que já experimentara. Arrepiava os pelos dos seus braços ter lábios alheios sugando os seus daquela maneira. Devolvia as investidas da melhor forma que podia, forçando o corpo a responder por mais que a mente insistissem travar, deixando-o em um branco tão puro que se sentiu cego. Se afastaram para respirar. As mãos ainda seguravam-no pelo tecido, como se para ter certeza de que não fugiria como na vez anterior. Sentia o coração martelando nos ouvidos, fazendo o sangue bombear com rapidez e se concentrar em seu rosto, colorindo-o em um tom rosado e nada conciliável com sua personalidade.

Foi a primeira vez que sorrira daquela forma para alguém.

Seis meses depois.

Kyoutani deslizou a ponta do dedo indicador, com lentidão, pele manchada abaixo. Como uma tela em branco, colorira-a com a cor do seu desejo; marcas de púrpura ao vermelho preenchiam o pescoço delicado de Yahaba, que estava deitado de qualquer jeito sobre a própria cama desarrumada. Sua expressão demonstrava sono genuíno, e o atacante não negava que aquela cena era bem vinda aos seus olhos.

— Oikawa-senpai falou comigo – a voz surgira, rouca e baixinha, invadindo seus ouvidos conforme se ajeitava ao lado do namorado, e com lentidão, levava o olhar dos chupões ao rosto sonolento.

— E? – incentivou, sem expressar a curiosidade que o corroía.

— Ele falou que não vai mais ir aos treinos, nem o Iwaizumi-senpai, nem ninguém do terceiro ano...

— Já estava demorando – resmungou, sem interromper os círculos que fazia com o digito agitado, explorando cada “marquinha de amor”. Vez ou outra, aquele que as hospedava estremecia ou fechava um dos olhos quando o dedo rude pressionava algum local com mais força que o planejado.

— Hm – murmurou evasivo, antes de piscar pesado e continuar. Os cabelos castanhos estavam desgrenhados, espalhados na testa e arrepiados em vários lugares, demonstrando que afinal, não se podia ter um cabelo tão certinho sempre. – Disse o que já sabíamos...

O levantador – e futuro capitão da Seijou -, sabia o quanto era pouco paciente e odiava que contornasse o assunto principal. Provavelmente, fazia aquilo de propósito. Suspirou, e finalmente questionou qual fora sua resposta para a tão previsível proposta de capitão.

Depois dos beijos trocados com fervor na quadra do ginásio – supostamente vazia -, Yahaba lhe dissera que “ter mais” deveria incluir leva-lo para o cinema. A frase era, novamente, surpreendente como tudo no mesmo.

“Hum, tá.” Respondera, fitando-o com um bico irritado em ter de parar com o mais novo vício – beijar aqueles lábios gostosos – para ouvir o que tinha de lhe ser dito.

“E também, me levar no parque.”

“Cala a boca!”

Em seguida, puxara-o de novo e estava prestes a beijá-lo pela milésima vez, não fosse as vozes animadas irrompendo em vários comentários que faziam-no queimar por dentro e por fora. Soltara a cintura esguia aos poucos, passando a chutar o piso da quadra enquanto ignorava-os. Yahaba, apesar de envergonhado, lidava muito melhor com a situação.

“Agora que marcaram o casamento, vamos treinar!”, e logo, um sonoro e manhoso: “Ahh! Iwa-chan, você nunca me leva no cinema!”, “Hã? Por que eu levaria?” ou mesmo “Acho que vou chorar, alguém me traz um lenço!”

Um mais dramático que o outro, mas naquele momento, por mais que aquilo negasse tudo que vinha sendo desde que sua vida desandou, não irritou-se.

“Vão se foder!”

Mais risadas, desta vez até daquele que tivera seu primeiro beijo. Seus olhos se arregalaram, enquanto tentava ao seu máximo se lembrar se já ouvira ou não aquela risada. Seu objetivo se tornou ouvi-la direcionada à si, mas não daquela maneira como ocorrera no momento. Queria ouvir uma gargalhada alegre, satisfeita. Queria desfazer a neutralidade frustrante que os traços do distraído levantador traziam. Felizmente para todos, os treinos seguiram tranquilos nos tempos seguintes, e a única preocupação que batia em suas portas acerca do clube era que logo os senpais não poderiam mais participar. Estavam ali de teimosos, já que a orientação era para que se dedicassem 120% em seus estudos.

Bobagem, e se estivesse no lugar deles, faria a mesma coisa.

No mês seguinte, pediu-o em... namoro. Inicialmente, a ideia parecera absurda, incogitável e cria veemente que provavelmente seria rejeitado; mas simplesmente ficar não passava toda a confiança que desejava experimentar. Ter uma relação fixa – mesmo que esta fosse ser sua primeira -, era como descobrir um mundo em que nunca lhe deixaram explorar. Exploraria-o com o irritante garoto, que em absolutamente nada mudara mesmo após acertarem as tão inicialmente questionadas desavenças.

“Kyoutani! Pare de se desconcentrar.”

“Kyoutani, a bola não era para você!”

“Kyoutani...”

Aos poucos, as críticas foram diminuindo e isso o levara a crer que talvez, apenas talvez, estivesse melhorando. Melhor ainda, melhorando aos olhos de Yahaba. Ganhando respeito que sempre quisera, interagindo melhor com os colegas, até mesmo com o extravagante capitão que apenas alguém imbatível como Hajime conseguia aguentar.

“Ei, eu disse que iria ajuda-los!” Oikawa anunciara um dia, alegre, enquanto trocavam-se no vestiário. “Deviam me agradecer, não?”

“Eles precisavam de tempo, como eu disse, idiota.”

“Ah, Iwa-chan entende bem essa de deixar as pessoas sem resposta, não?”

“Fale ‘não?’ mais uma vez com essa voz irritante e eu vou te socar!”

Eles ainda não se acertaram? Lembrava-se de ter se questionado, escondendo o sorriso que se formava nos seus lábios não mais tão secos e a melhor fonte de hidratação tinha nome e sobrenome. Quando virou-se, aquele que há pouco havia se tornado seu namorado tinha os olhos fixos na curva, na sombra do sorriso que decorava seus lábios teimosos, os orbes brilhantes puxando toda sua atenção e condensando-a ali como se não pudesse mais escapar. Tentou esconder rapidamente o sorriso que ameaçava se tornar largo, mas ele apenas crescia e exibia as covinhas esquisitas que decoravam suas bochechas.

Naquele dia, não sabia, mas acabara de selar permanentemente o coração de Shigeru.

Agora, após leva-lo ao cinema, ao parque, ao teatro, à uma festa – coisa que sempre passou terrivelmente longe -, tomara algo como recompensa. Sua virgindade. Não é como se apenas tivesse tomado, já que também dera a sua própria. Mas a pureza do rapaz parecia muito mais venerável que a sua.

— Eu disse que aceitaria, mas só se você fosse o Ás – o garoto finalmente respondeu, trazendo-o de volta ao presente após um período de tempo que passaram apenas aproveitando a companhia um do outro.

Ser um Ás.

A ideia fazia seus olhos se iluminarem, e ali, na intimidade do quarto do namorado, não precisava mascarar aquela animação com uma carranca intimidadora. Deixou que o dedo se afastasse da pele fresca – apesar do recente ato -, e se remexeu ali no colchão, tentando se ajeitar de maneira confortável naquela cama de solteiro.

— E ele disse...? – voltou a incentivá-lo, mas quase chegou a crer que o mesmo já dormia tamanha a demora que tomara para responder.

— Que você daria um ótimo Ás, Kyouken-chan.

O sorriso destinado à si desarmou qualquer protesto que tinha para com o apelido usado. Puxou o lençol para cobri-los, já que naquela altura do ano, o frio já chegara e se esparramava pelos cômodos como se fosse o dono da casa. Nesse quesito, o frio era bem semelhante ao levantador, estirado ao seu lado. Entrara na sua vida sem pedir permissão, sem nem mesmo formalizar suas intenções. Aproximou-o de si, tanto negativa, quanto positivamente. Era um campo de energia, e dependendo de para qual lado pendia, transformava a vida das pessoas assim como transformara a sua.

— Que horas seus pais voltam? – questionou, tomando um espaço para não acabar encostando no corpo alheio, coberto apenas com uma blusa de moletom e uma bermuda curta. Diferente de si mesmo, que estava confortável apenas com a roupa íntima. Yahaba não parecia se importar, ou se o fazia, não era no sentido negativo. Por vezes o loiro o pegava com o olhar preso nos músculos da sua barriga, visíveis sempre que se trocavam no vestiário, ou em momentos íntimos como aquele.

— Amanhã, Kentarou, eu já disse.

“Kentarou.”

Seu coração ainda saltava com tanta ferocidade quanto seu próprio corpo saltava para cortar um levantamento sempre que o ouvia chamando-o pelo primeiro nome, naquela voz suave, coberta de rouquidão pelo cansaço. Quando estava bravo, era “Kyoutani”, quando estava manso, era “Kentarou”. Não era tão difícil mapear a maneira como o garoto se expressava.

— Eu não prestei atenção... Sh-shigeru – permaneceu de costas contra a cama e olhou para o teto, branco e inexpressível. O som abafado de chuva batendo contra o asfalto ecoava impotente sempre que o silencio se estendia entre eles, lembrando-o o quanto o clima vinha castigando a cidade nos últimos dias. Entretanto, aquele não estendera-se com um grande período de tempo, a risada que adorava, que se tornou um dos prazeres auditivos que mais ansiava quando estavam longe, ecoou alta e abafada. A risada que acostumara-se a ouvir - e também de causar, mesmo que não fosse a intenção, exatamente como no momento – passou a substituir o farfalhar violento da vegetação próxima. Por mais que não parecesse, a chuva era firme em sua punição lá fora e apenas eles, presos no próprio universo que criaram dentro dos olhares e do calor que emanavam, não notavam. Aos poucos, virou o rosto para captar as expressões de riso que internamente, era apaixonado por.

Merda, amolecera tanto... Ou quem sabe, já não era mesmo antes de iniciarem aquele relacionamento?

Observou o rosto corado pela recente risada, os olhos semicerrados e pesados, descendo para os lábios entreabertos e não hesitando em encaixar as bocas ansiosas, ficando parado apenas para sentir sua textura antes de sugar e se afastar, satisfeito com o suspiro baixinho que vinha do mais novo. Pelo visto, os meses serviram para que aprendesse a beijar.

— Durma – murmurou, decidido a fazer o mesmo. Controlou a vontade de tocá-lo de novo – e com mais intensidade -, e se esticou para desligar a luz acesa. Quando voltou a se deitar, se surpreendeu com o movimento do parceiro. Yahaba se arrastou até estar com a cabeça pousada em seu peito, e eles nunca, nunca haviam feito algo tão... inocentemente íntimo. Sentiu a respiração engatar, mais rápida, enquanto seu coração provavelmente estava audível mesmo por cima do barulho incessante da chuva violenta lá fora. Felizmente, este não fizera nenhum comentário estranho. E essa era mais uma das coisas que aprendeu a admirar no rapaz; ele não dizia nada em determinados momentos, principalmente, naqueles constrangedores.

— Boa noite, Kentarou – respondeu momentos depois, a voz saindo abafada contra seu peito nu e agitado. Seus batimentos já haviam retornado ao estado estável quando suspirou, movendo sem muita coragem os olhos até o corpo sobre o seu. Aprendeu, naquele momento, a amar a forma como o peso e calor o lembravam de que não estava sozinho. Queria poder passar todas as noites daquela forma, e não no vácuo que era sua moradia. Seus pais continuavam da mesma maneira, ignorantes à como conseguiu-se agarrar a algo. A diferença, é que estranhavam agora como parecia mais animado, enérgico e menos "rebelde". Apenas mais alguns anos, vivia dizendo à si mesmo, e finalmente poderia se mudar.

— Hum... - concordou, tentando relaxar e erguendo, hesitante, uma mão. A mão que cortava os levantamentos. Pousou-a com cuidado nos cabelos castanhos, adoráveis naquele “estilo pós-foda”. Se fosse um pouco mais observador, perceberia o quão alto fora o suspiro que lhe foi dado como resposta quando passou a acaricia-lo com a ponta dos dedos, roçando-os no couro cabeludo.

Os papéis pareciam invertidos.

Ele é quem queria, inicialmente, uma mão em seus cabelos. Ele é quem queria, inicialmente, alguém para cuidar de si.

Invertido, não.

Equilibrados.

Kyoutani cuidava de Yahaba, e Yahaba, de Kyoutani. Afinal, existem muito mais do que apenas uma forma de cuidar de quem se ama.

Não estava pronto para colocar aquilo em palavras ainda; era jovem, inexperiente, e as coisas sempre mudam de uma piscada para outra. Não podia arriscar seu coração e orgulho desta maneira, mas com o tempo, era inegável que acabaria por declarar-se corretamente. O mais jovem merecia algo como isso, e o loiro não era burro em privá-lo de qualquer necessidade que pudesse suprir. Faria qualquer coisa para compensá-lo, agradecer a oportunidade que lhe foi dada. A oportunidade de conhecer, de ser aceito, de ser amado. De ouvir seu nome tantas vezes abandonando a boca que ainda o irritava, mas também que lhe proporcionava uma das melhores sensações do mundo. É bom ser importante, deduziu e adicionou sem demora à sua lista de certezas, drasticamente modificada ao longo daqueles meses.

Dormiram daquela maneira, completando um ao outro enquanto compartilhavam a segurança que conseguiram firmar; o futuro Ás do time sonhou com diversas folhas, verdes, sendo seguradas por mãos elegantes antes que atingissem o solo, guiadas pelo vento desalinhado. Shigeru segurava todas que conseguia, destinado e decidido a não deixar que estas fossem arrancadas antes da hora em que aquilo se tornaria inevitável. Yahaba não o deixaria cair de forma alguma, e Kyoutani não mediria esforços para se manter erguido e pronto para acolhê-lo nos braços; no peito. Sempre que fosse possível, sempre que a chuva fosse alta demais do lado de fora, sempre que o sol queimasse lá no céu, sempre que as folhas caíssem e o clima álgido viesse, e principalmente, sempre que estas mesmas florescessem.


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Notas finais do capítulo

Espero que alguém aí também shippe esses amorzinhos. ♥ PS: revisei, mas se tiver algum erro, peço desculpas e espero que não tenha atrapalhado a leitura.