Segredo Virtual escrita por Alehandro Duarte


Capítulo 44
2º T: Capítulo 19 Exaustão




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As pálpebras subiam lentamente, despertando Mark de algo que parecia profundo.
Tinha a sensação de que por algumas horas estivera na presença de Luke. Sozinhos em uma paz agora distante.
Sua cabeça latejava, e aos poucos seu corpo foi recobrando a dor. Dos pés ao couro cabeludo. Mais ainda centralizada na perna, lá ardia cada segundo mais.
Os olhos borrados foram diretos nas chamas consumindo madeira. Aquilo iluminava o breu, e se olhasse um pouco mais para o lado veria outras tochas erguidas na parede.
Do seu lado esquerdo, tudo escuro. Sem o menor sinal de luz. Lhe dava mais sono.
Mark ouviu murmúrios e gemidos alguns metros longe dele, onde sua cabeça não tinha virado o suficiente para olhar.
Abaixou a vista para a coxa, a encontrando enfaixada. Formigas subiam no seu calcanhar, querendo adentrar na atadura. Isso o fez levar a mão para ali o mais rápido possível, expulsando todas de cima do corpo. Cada mísero esforço físico o deixava cansado.
Outro gemido ecoou pela caverna, agora mais alto. Mark se virou para descobrir quem era.
Veio a confirmação de que não estava sozinho naquele canto escuro.
Lídia e Jason repousavam quase dormindo de encosto na parede à frente, enquanto Sara e Rafael tratavam Rebeca amordaçada suando como um porco. Daniel ele não encontrou ali.
Rebeca disparou outro gemido, mexendo a perna cheia de feridas.
— Calma!- Instruiu Rafael, segurando o cantil com álcool achado no meio dos suprimentos deixados pelos neoidrios.- Calma.- Com a outra mão segurava um pano já cheio de sangue, com o objetivo de tentar limpar aquela perna. - Fica parada, por favor.
Rafael também tinha ferimentos por toda parte superior do corpo sem blusa, porém mais inofensivos que aqueles cortes profundos.
Sara firmava as mãos na perna de Rebeca, as pressionando contra o chão. Os seus olhos emitiam calma para tentar a relaxar, e contrastavam com as roupas pretas achadas na caverna. Finalmente se encontrava vestida.
Mark balançou a cabeça, piscando muito os olhos. Queria saber quanto tempo tinha passado desde que explodiram tudo. Mal conseguia enxergar com as manchas pretas recém aparecidas, permeando cada canto que olhasse. Ele fechou com força os olhos, pressionando as mãos sobre eles.
— Calma.- Daniel disse, vindo do canto escuro com um cantil.
Abaixou-se ao lado de Mark, apoiando a mão em seu ombro.
— Vai passar. Bebe.- Ofereceu o objeto, esperando sem pressa ele o atender.
— Quanto tempo a gente...- Agarrou e levou à boca o que deduziu estar cheio de água.
— Achamos que horas. Cinco ou seis. Ninguém ficou acordado por muito tempo depois do...- Ele não completou. Não conseguia explicar o que aconteceu.- É melhor dormir de novo, não deu tempo de descansar ainda. Já cuidei do seu ferimento.- Sinalizou o corte enfaixado, mas também o machucado no rosto.
— Obrigado.
Mark deu um longo gole, escutando os gritos sufocados.
Não tinha mais coragem para olhar aquela cena arrepiante.
Sara e Rafael continuavam fortes aguentando o corpo agitado de alguém sentindo muita dor. Eles também estavam sentindo, mas esse alguém precisava expressar o sofrimento bem mais do que eles.
Tinham que ter calma.

 

 

A primeira coisa que pensou quando acordou foi em seu irmão. Antes mesmos de abrir os olhos, Rose já tinha certeza de que precisava ir até ele.
Seu conhecimento sobre o dia que passou dormindo foram apenas palavras da voz aguda de Kauan. Não sabia o quão grave Miguel se encontrava, mas se Luke concordava em não interferir, então podia ser muito sério.
Tirou a coberta de cima de si, catou o primeiro calçado que achou no chão e andou até a porta. Não tinha barulho algum no corredor, nem mesmo nas divisas que ele fazia. O mais completo silêncio.
Encarou a maçaneta do dormitório de Miguel, pensou por três segundos antes de a girar, e se deparou com uma cama intocada ao entrar.
Seu irmão não era de arrumar a cama após acordar. Apenas ela fazia isso.
Rose foi até o banheiro da suíte, olhando para todos os cantos, até dentro da banheira. Tudo estava arrumado demais.
Os olhos começaram a ficar perdidos, procurando por algo. Entre viradas e reviradas por todo o cômodo, resolveu sair e ir procurá-lo em outro lugar.
Se Miguel estava mesmo tão abalado, seu maior medo era um risco real. Tinha que achá-lo antes que fosse tentar confrontar Dylan sozinho. Sabia que ele era capaz daquilo. Sem dúvidas era tolo.
Rose bateu na porta de Luke, agitada demais para esperar, simplesmente entrou. Ele também não estava.
Seu coração acelerou. Aonde tinha ido parar todo mundo?
Começou a andar rápido demais, qualquer um que visse pela frente interrogaria, mas ninguém aparecia. Guarda, camareira, babá. Ninguém.
Engoliu a seco, e correu desesperada, sem noção alguma de como se acalmar. Apenas uma fábrica de paranóias trabalhava consciente no corpo. "E se Luke foi atrás de Miguel pra impedir?", "E se Miguel o convenceu a ir?", "E se Dylan levou todos para uma execução pública?". Cada nova ideia parecia pior, mais real. Miguel era fraco demais.
Rose só engoliu o choro porque viu Kauan saindo da sacada, com sua cara sonsa.
— Você!- Gritou, mais alto do que planejava.
Kauan parou, abrindo um sorriso forçado, enquanto esperava ela chegar.
— O que...- "Houve", pensou ao ser interrompido.
— Cadê o Miguel?!
Ele suspirou, penetrando os olhos ansiosos dela. Pensou em todo o caos que se instauraria quando a verdade fosse contada. Mas não esperava ser quem revelaria isso à ela.
— Me fala! E o Luke? Eles tão aonde?!
Ela tinha remela nos olhos, foi uma das primeiras coisas que reparou. Kauan desviou os olhos para começar a falar:
— Era pra eu e o Luke termos te contado ontem, mas...Era tarde da noite, não valia apena.
— O que não valia apena?!- O rosto de Rose empalideceu, com a testa franzida e a boca seca aberta. Se corroendo para saber o que aconteceu com seu irmão.
Ele fixou as pupilas nas dela, vendo desespero dentro do verde claro.
— O Miguel foi pego depois da morte da Clara. Era um plano. O Alan ficou puto, foi até ele e eu não sei pra onde ele levou o seu irmão.- Derramou tudo de uma vez.
Rose arregalou tanto os olhos que pequenas manchas escuras ficaram à mostra no canto dos globos oculares. Seus pés foram para trás, e seu braço esquerdo se apoiou na parede, antes que caísse pelo golpe da informação.
— Qual era o plano do Miguel?- Perguntou encarando o chão. A boca tão aberta para respirar, que serviria de passagem para uma tarântula.
— Acho que era pegar um pen drive naquele negócio do Alan, bengala, sei lá.- Ele esperou ela se acalmar para prosseguir.- Não vi ele o dia todo, e nem o Luke.
— Cadê o Luke? Ele não tava no quarto.- Perguntou por só prestar atenção na última palavra.
— Faço a mínima ideia, como acabei de dizer. Deve ter ido tomar café.
Tudo já tinha acontecido, e a deixaram continuar dormindo. Horas na cama, enquanto Miguel ia contra tudo por um pen drive. Rose sentia tanta dor, que passou depressa pelo garoto, mudando sua expressão para raiva. Tão focada, que todo o calor na barriga se converteu em energia pelo corpo todo. Disposta à tudo, e pensando em nada.
Atravessou os corredores com passos imparáveis, abrindo com impulso as portas que queria.
A camareira que passou por Rose, tratou de ficar o mais longe possível quando olhou seu rosto vermelho. Não duvidaria de ser acertada com unhas e dentes se ficasse na frente da fera.

 

— Obrigado.- Agradeceu Alan ao receber seu café e pães na bandeja traga por um guarda.- As mesas precisam ficar nos cantos, o centro é vazio para dança.
A correria de pessoas pelo salão deixava-o barulhento demais, mas ele não se incomodava se fossem apenas alguns minutos lá embaixo. Claro que o silêncio era seu barulho favorito, entretanto tinha obrigações à cumprir. Sentado numa mesa, indicava tudo o que precisava para mais tarde.
Fitas decorativas, cortinas douradas, mesas pra lá e pra cá, projetores de luz, decorações vitorianas e rústicas nas paredes, tinha que tomar conta de tudo isso enquanto lia as instruções em mais de vinte páginas empilhadas.
A menina ruiva não notou nada disso quando entrou séria no salão de baile em arrumação e focou no rosto da pessoa sentada tomando café.
Alan imaginava a beleza que aquele lugar ficaria quando tudo estivesse pronto e de noite renasce a encenação. Sua parte preferida era o lustre imenso pesando no teto.
Reparou isso quando foi empurrado da cadeira por Rose furiosa.
— Cadê o meu irmão?!- Ela gritou, tão alto que todos os funcionários do salão pararam para olhar, e logo em seguida voltaram ao serviço.
Alan demorou alguns segundos para processar a queda, ainda mais pelo café derramado esquentando seu peito.
— Olha aqui, garota. Não vou...- Se levantou e pegou um guardanapo, quando quase foi atingido por uma faca.
Rose sentiu seu corpo ser puxado para trás, sem que a lâmina acertasse o local molhado de café quente no corpo dele.
O guarda a imobilizou com os braços para trás, ainda com a faca da bandeja na mão. Tentou tirar a todo custo, mas aqueles dedos não soltavam.
— Cadê ele?! Eu não vou sair daqui sem o Miguel!
Alan respirou, se acalmando, olhando para ela e ouvindo sua ladainha contínua de "quero meu irmão, quero meu irmão". Depois ouvira alguns xingamentos também, mas ignorou. Tinha foco em tentar limpar aquela mancha com o guardanapo. Teria que jogar a roupa no lixo pelo jeito.
— Senhor...- O guarda chamou fazendo esforço, recebendo chutes e tentativas de acerto com o cotovelo. Ela não parava quieta enquanto gritava. Seu irmão poderia estar quase morto, e nada era mais importante do que salvá-lo.- Senhor!
Alan saiu de seu transe da mancha de café, soltando um som de desperto. Ele encarou a situação e remedeou em sua cabeça. Os gritos continuavam.
— Dá pra ficar quieta?!- Disse mais alto que a voz dela.
Rose fechou a boca com certa resistência. Seu rosto tremia e pulsava ansioso em pontos específicos.
— Se você quer ver o seu irmão de novo, vai ter que ficar quieta. Eu não matei ele. Ninguém fez nada com ele.
Isso não a acalmou nem um pouco. Quase chorou. A dor no peito perdurava, com uma angústia pior do que quando presenciara mortes.
— E não adianta rodar esse lugar inteiro, porque você não vai achar ele.
A barriga era uma mistura, e sua cabeça mais bagunçada ainda.
— Eu vou falar o que você vai fazer. Tá bem?
Ela respondeu com suspiros, percebendo que sua única família ali poderia estar com medo, passando fome ou sofrendo tortura.
A imaginação não a deixava quieta. Ploriferando mais sentimentos que afetavam todo seu físico e mente.
— Vai ter um baile aqui hoje à noite. O Dylan já te avisou. Você vai ficar quietinha no seu quarto, vai esperar o vestidinho feito pra você, ficar linda pra esconder essas olheiras e cabelo de ninho, com muita maquiagem pra conseguir esse feito.
Rose se impulsionou pra cima dele, mas tudo o que conseguiu foi uma queda ao chão com mãos ainda a prendendo.
Alan se apressou para dispensá-la logo:
— Você vai receber instruções e seguir elas. Pronto. Só isso. Aí no final você vai ter seu irmão de volta.
— Vai tomar no cu!- Ela levantou e tentou cuspir nele como fez com Dylan, mas não o acertou.- Traz o meu irmão!
Alan separou a pilha de papéis rapidamente, dizendo durante a arrumação:
— Deixem ela lá fora. Já já entende. É igualzinha ao irmão. Esperneadora.
Ele a olhou pela última vez. Não emitiu reação vendo o rosto vermelho em pânico, ou com a contração de ansiedade na barriga que ela fazia. Apenas deu um rápido sorriso torto e deu meia volta, se dirigindo para o outro lado do salão.
Rose gritou por ele até cansar. Ou até os guardas a arrastarem para longe o suficiente e ser arremassada para fora do salão.

 

No chão, em cima do tapete escarlate com detalhes dourados, Rose foi cozinhando cada pensamento de desgosto, colocando-os numa panela de pressão até a borda.
Miguel, seus pais, os mortos, Dylan, Luke, Alan, Kauan, a pressão em sua cabeça toda vez que a encostava na cama. Não ficou nada de fora daquele aço transbordando.
O calor que prenssava em sua cabeça e seguia o corpo inteiro aquecia os problemas acumulados. Fechou todos eles ali dentro, aumentando as chamas.
O guarda mais próximo encarava sua cabeleira ruiva na frente do rosto, tampando a reação que tanto queria ver. Aquilo tudo era um espetáculo, um verdadeiro show com interação. Ver personagens tão incríveis ao vivo, era algo sem descrição de tão emocionante e entretivo.
Mas enquanto ele e alguns funcionários se divertiam internamente com o suco do entretenimento, ela estava exausta, eufórica de tanta dor. Completamente louca.
Se segurando até onde pôde, deixou a consciência ultrapassar o limite, mas agora não suportava mais.
A panela explodiu, e do vermelho saiu uma face gritando de horror, destruída. Um zumbido interminável em seus ouvidos.
O grito deixou todos os guardas e pessoas próximas que ouviram arrepiados. Soava como vindo do inferno. Fino, estrangulado, desesperador.
Ela se levantou e começou a andar, completamente acabada, e continuou gritando entre ruídos bruscos o nome que buscava, arranhando sua garganta chorosa. "Miguel!", "Miguel!". Seus olhos perdidos procuravam sem parar.
— MIGUEL!- Arrastou o nome até ficar sem ar.
O som que fazia suas cordas trêmulas era o som de maior agonia que poderia fazer, de quem está sendo esquartejado vivo.
Ela estava tendo uma crise, como nunca antes havia tido. Seu corpo expelia água por cada cavidade do rosto.
— MIGUEL!- Correu para abrir portas, se esgueirar nas janelas, rodou em círculos tentando encontrar a pessoa mais preciosa.
Se virava para todos os lados. Não parava de pronunciar o nome, alongando-o ao máximo e machucando o maxilar dolorido que não a fez parar de gritar.
Passou por diversos corredores, quartos, salas. Transtornada por nunca o achar em nenhuma. Passou por tantos cômodos, que suas costas se curvavam de dor na barriga à cada vez que abria uma porta e chorava o nome do irmão.
Qualquer um que a visse poderia dizer que nunca, em hipótese alguma, viu alguém tão quebrado.

 

Luke vinha carregando uma bandeja pelo corredor dos dormitórios. Lá tinham torradas, sanduíche, frutinhas e suco. Pôs tudo com cuidado para levá-lo à amiga ruiva, com certa fé de que poderia acalmá-la quando a fatídica pergunta viesse. Se tivesse sorte, a faria comer pelo menos um pouco, antes de começar a zona.
"Boa sorte pra mim", disse introspectivo.
Quando chegou ao quarto dela, a porta estava com uma fresta aberta. Bisbilhotou para saber se tinha enfim acordado, e ao que percebeu ao não vê-la na cama, parecia que sim. Pensou que talvez estivesse no banheiro, e resolveu entrar, colocando a bandeja ao pé da cama.
— Rose?
Por dois segundos se viu refletido no espelho. Detestava o que via, então virou de costas para ele. Prestou atenção no outro lado do quarto, bem na cabeceira da cama. Tinha esquecido de tirar os remédios dali.
Sentia ser culpa sua não ter reparado naquele frasco, no cansaço mental ou não ter se preocupado mais com ela antes de tudo acontecer.
Ela aguentava muito sozinha, não podia deixar ela continuar segurando todo o peso.
Não se perdoaria se algo mais acontecesse com ela.
Luke se direcionou aos remédios, observando a atratividade. Não a julgava por isso, quem sabe teria feito o mesmo em alguma noite angustiante. Tinha dificuldade em dormir com as imagens de pessoas mortas passando na cabeça. Pessoas conhecidas.
É, talvez não devesse se desfazer dos comprimidos. Poderiam ser úteis. Suas mãos ficaram alguns centímetros de pegar o frasco, quando Rose entrou no quarto com a cara vermelha inchada se recuperando da falta de ar. Mas logo sua postura caída se ergueu malignamente, quando viu que Luke vinha em sua direção.
— Rose...- Ele abriu os braços para a confortar.
Ela o empurrou contra a cama. Toda a comida que trouxera virou em cima dele.
— POR QUE VOCÊ NÃO ME CONTOU?!
A bandeja caiu no chão, sonorizando todo o quarto com a dança da prata. Cada pelo de Luke se enrijeceu com a presença em sua frente. Nunca viu alguém com tanto ódio e choro tão descontrolado quanto agora. Ela parecia capaz de mata-lo com o nervoso da quantidade de músculos expostos em todo seu rosto.
— MENTIROSO! Ele pode morrer! E você não me deixou saber! Cadê ele?!
Luke ficou de pé, ainda muito assustado. Tentou manter distância, mas ela veio até ele esbravejando.
— Você mentiu pra mim!
— Rose... Eu tava tentando te proteger.
— Me proteger?!- Raiva e tristeza tomaram ainda mais forma em seu rosto avermelhado.- É o meu irmão de quem estamos falando! Você podia ter mentido pra mim sobre qualquer coisa, menos isso! Ou melhor, a gente não pode mentir, senão como eu vou resolver?!
Luke se afastou, expressando nos lábios semiabertos e na testa franzida o choro.
— Meu irmão é tudo o que eu tenho, você não tinha o direito de esconder isso de mim!
— Eu pensei que era o certo. O Kauan começou a mentir quando você acordou e eu fui na dele sem pensar...
— Kauan?! A gente mal conhece ele, Luke, pelo amor de deus! Não é possível! Burro!- Ela balançou a cabeça em negação. A cada movimento, seu corpo dava a sensação de que ia explodir.- E se eu fizesse isso com você? Com o Mark? Como se sentiria com eu mentindo que a ÚNICA pessoa que você tem tá bem? Quando ela pode estar sendo TORTURADA.
— Não coloca ele nisso.
— Você também não sabe se ele tá vivo, né?! Sabe como eu me sinto. Sabe que dói! E mesmo assim você fez.
Luke continuou a se afastar, dando passos até ficar a poucos centímetros da porta.
— Eu confiava em você!- Esbravejou batendo no peito. Rose respirava aos prantos, tão vermelha que suas sardas opacavam da face. Assuou o nariz, sujando a mão, e voltou a chorar amargamente.
Os olhos do garoto apertaram. Lábios levantados, uma cara desgostosa.
— Desculpa.- Ele murmurou.
Rose ficou parada debulhando seus sentimentos. Luke foi embora.
E durante horas no quarto, Rose transbordou cada partícula de choro que tinha no corpo. Pensando em mil e um jeitos de escapar da dor.
Chegou a pôr as mãos no frasco de remédios, chegou a encarar. Mas o tacou com força para longe. Pelo seu irmão.
Não aguentava mais. Não aguentava nem um pouco. Queria morrer.

 

 

Quando Jason abriu os olhos, Daniel estava olhando diretamente para ele.
Aquilo o pegou de surpresa, intimidando. Por alguns segundos Daniel continuou o encarando como se não tivesse visto que ele acabou de acordar, até que virou o rosto para frente.
Jason mudou de posição e se sentou mais perto dele, esperando com que falasse.
O clima era estranho, faziam mais de dez anos que não se viam. Eram como desconhecidos que se conheciam. E para um deles, estivera morto.
— Se sente bem?- Daniel iniciou.
— É...Me sinto quebrado.- Disse cutucando o próprio pulso.
— Também.
Olharam ao mesmo tempo para Rebeca. Agora dormia, dando trégua para si mesma após os dois médicos de improviso terminarem os cuidados. A perna limpa e enfachada era vitória após tanta luta.
Os dois homens aparentemente eram os únicos acordados na caverna.
Jason reparou Sara ao seu lado, desacordada. Tinha a cabeça encostada perto de si, e manifestava cansaço nas feições.
Ele não emitiu reação, só acariciou um pouco o cabelo sujo dela antes de voltar a conversar.
— Já cuidou das suas costas? Você se ralou todo, dá pra ver.
— Ainda não.- Daniel abaixou a cabeça, pegando um cantil deixado entre as pernas.- Precisavam de mim, outros chegaram mais feridos. Não dava tempo. Quando estiverem melhor vejo isso.
— Ah, para.- Jason se indignou.- Você rolou um barranco, se ralou, caiu, correu pra caralho, lutou com aqueles troços e se encharcou de sangue. E explodiu esse lugar! Tá igual todo mundo, então para de negligência.
O ouvinte então bebeu a água, enquanto o outro falava. A voz tão familiar, mas ao mesmo tempo tão distante. Por que todo esse cuidado? Seu cérebro não queria desassociar ele de um zumbi.
— Deixa eu ver suas costas, vou cuidar delas.- Pôs a mão na camisa dele, fazendo gesto para que tirasse.
— Não.- Daniel negou no último gole, tampando o cantil.- Deixa assim, depois vemos isso.
Jason não deu bola, já estava indo despejar álcool num dos poucos panos ainda limpos e em seguida trazendo em sua direção. Daniel apenas o encarou.
— Vamos.- Não cederia.
Após alguns segundos, a camisa foi erguida e tirada pelo próprio dono, ficando de costas para que o lavasse.
Suas costas estavam imundas de sangue seco, coágulos, barro, espinhos e pequenas pedrinhas. Jason pegara outro pano, com água, para limpar a sujeira antes de chegar melhor nos ferimentos. Fez tudo com cuidado, sem reparar as pequenas reações de dor que Daniel fazia com o álcool ardendo em seu corpo.
Quanto mais limpa a carne era os hematomas ficavam amostra, fazendo aquela região se igualar a uma pintura que exibia diversos tons de roxo e vermelho. Uma harmonia bonita, porém dolorida em rasgos.
Daniel viu sua esposa se mexer enquanto dormia. Torcia para que ela não acordasse agora. Talvez se sentisse mal por não ter tido o cuidado de verificar se tinham cuidado de seus machucados, um desconhecido agora tinha. Mas o marido só queria que ela descansasse. Todos precisavam daquilo, e cuidar uns dos outros desgastava demais.
Não tinham mais capacidade de fazer esforço físico e psicológico, além do que já eram obrigados para sobreviver.
— Ai!- Daniel bateu os dentes, respirando pela boca trincada que esfriava a saliva.
— Desculpe.- Tomou mais cuidado ao tirar as pedrinhas de dentro dos cortes.
Já tinha feito isso antes, mas estava enferrujado na coordenação motora da delicadeza. Ainda assim, suas mãos eram talentosas. E deixou a ferida melhor mais rápido que qualquer outro que tentasse.
— E você? Não vi ninguém te tratando.- Daniel se sentiu insuficiente ao afirmar isso.
— Mas já cuidaram de mim. Não estou limpo, mas não tenho machucados expostos.- Mentiu. Ninguém tinha cuidado de seus ferimentos.
Daniel acreditou, e ficou quieto por dez minutos, até suas costas não parecerem mais um aglomerado de sujeira. Depois, começou uma série de resmungos por meia hora, Jason fazia o máximo que podia para costurar sem fazê-lo sentir dor, mas era impossível.
— Pronto, terminei tudo.
— Graças a deus.
Enquanto Jason colocava as coisas no lugar, a sensação de que tinham muitas coisas para conversar tomou Daniel. Afinal, ninguém tinha lhe explicado o que ele fazia ali.
— Como você sobreviveu?- As palavras saíram objetivas, curiosas.- No penhasco?
Jason estava de pé, de costas para todos da caverna, numa região escura. A pergunta o pegou desprevenido, mas logo retomou postura. Sua figura alta, estranhamente sombreada trazia um tom soturno. Depositou o pano sujo junto a outros, virou a cabeça e olhou nas íris curiosas.
— Não era eu naquele dia no penhasco.
Daniel não tinha certeza se era ele ali agora.
— Me trouxeram pra cá. Me prenderam numa cela, também não sei porquê. Mas cuidaram de mim.- Retornou para perto dele.- E durante dez anos eu fiquei lá. Comia o que me dessem, tomava banho quando quisessem, me divertia às vezes quando um guarda estava entediado e jogava uns jogos estranhos comigo. Geralmente fazia muito calor. Era bem chato na verdade. Mas eu escapava de noite, nos meus sonhos. Revivendo o que nunca mais vivi.
Daniel não piscou os olhos até ele terminar o monólogo. Aquele jeito dramático, corpo escorado para a frente, aqueles olhos chorosos e tristes. Era Jason. O gene da família Augustos. Daniel tinha certeza.
— Entendi. E... você viu Dylan ou algum lugar que ele poderia estar, no tempo em que ficou...?
— Dylan nunca veio me visitar. Eu só descobri que ele estava vivo quando Lídia me contou.
— Então não sabia de nada?
— Não. Só sabia da tal profecia, e só vi alguns lugares ali perto, de quando me levavam nas águas.- Sentou-se novamente.
O que recebeu após dizer as respostas foi um singelo aceno de cabeça, para então a caverna mergulhar no silêncio perduroso, durante os pensamentos de Daniel.
Assimilar tantas coisas era complicado, e nenhum cérebro se acostuma com tanta loucura.
Mesmo que milhares de questões voassem de um lado para o outro, apenas uma saíra de sua boca, como uma afirmação.
— A gente precisa explorar esse lugar depois, se quisermos sair.- Disse, ignorando toda a história que o "homem morto" contara.
Mas na sua cabeça, revivia as palavras e o dia do incidente no penhasco, se esforçando para recordar qualquer pista que confirmasse o que foi falado.
Certos minutos depois, Jason voltou a tentar dormir. Durante sua ajeitação, despertou Sara de um inquieto sono. Logo ela se ergueu, vendo no rosto do líder a necessidade de dialogar, seja lá o que o estivesse preocupando.
— Sabe se algum de nós ficou lá fora?- Daniel introduziu. Ela limpava os olhos.
— Acho que morreram todos.- Respondeu lentamente, lembrando de Marcos com pesar.
— Você viu alguém nosso...?- Ele não precisou dizer a última palavra. Sara completou mentalmente com "morrer".
Ela balançou a cabeça em confirmação.
— Sinto muito.- Respondeu, para que não desse a impressão de que iria obrigá-la a dizer quem.
— Não precisa. Todos passamos por isso.
Aos poucos todos foram acordando, dizendo o que viram, ouviram ou viveram. A caverna se transformou em local de roda, para que todos os infelizes entregassem a angústia uns aos outros. Mas Mark era o único que parecia mais sobressaltado sobre tudo o que ocorreu. Alguns comentavam com um tom tão ameno sobre as mortes e explosões, talvez fosse o jeito que encontraram para lidar. Ainda assim, ele se perguntou se os monstros do lado de fora, na verdade não estavam ali dentro.

 

 

O corpo suava num calor de começo de tarde, sem a mínima pena da carne ferida e sem se incomodar com o cheiro de podridão exalando de si próprio. Arrancava toda pedra que via na frente, com rapidez, sem baixar o ritmo incisivo de esforço de um doente ferido.
Baham levaria dias para desobstruir aquela passagem, e mesmo que lhe custasse a vida, despenderia horas ali e mais horas cuidando dos companheiros neoidrios feridos gravemente pela floresta.
Cada suor de pedra erguida ou de corpo dolorido de tanto tratar os outros, valeria a pena. Vidas dependiam dele, não queria decepcioná-los, o resultado seriam mais mortes. Essa culpa não carregaria, nunca.

 

 

Mesmo com a dor ainda torturante, Rebeca tirava esforços para se concentrar na conversa da roda de sete sobreviventes do massacre. Já tinham discutido os acontecimentos da noite, o racionamento de comida e bebida, seus ferimentos, mas o impasse de o que fazer a seguir era um debate sem solução correta.
— Os nativos falaram sobre encontrarem coisas na cachoeira. Eu tenho certeza que aqui é uma passagem.
— Daniel, se algum deles tiver sobrevivido, deve tentar tirar a gente daqui em breve.- Sugestionava Lídia.
— É, mas até lá não sabemos quanto tempo e se vão conseguir. Esperar não é uma boa opção.- Daniel se manteve no raciocínio.- O que fizeram com a Rebeca é a prova disso, não podemos confiar nem em nós mesmos. É como eu falei: melhor entrar.
Lídia mirou para o túnel escuro citado por Daniel. O caminho tinha sido escolhido como um refúgio, antes de derrubarem a entrada. Porém os indígenas nada disseram do que poderiam se deparar ao outro lado.
— É perigoso, mas realmente.- Rebeca acrescentou.- Melhor cair numa armadilha do que morrer de fome e sede aqui dentro.
Sara tinha suas dúvidas que em vez de saírem, ficaram bem quietas na mente perturbada. Ela olhou para Rafael, que como um bom ouvinte analisava cada inclinação para uma nova opção. Percebeu a visão fixante, e lhe deu um breve e afirme aceno de cabeça. Significava um tudo bem, independente do que fosse acontecer.
Mark nada disse. Se alguém segurasse seu pulso perceberia a ansiedade que aquele assunto o trazia. Era quem mais caíra de paraquedas naquele novo estilo de vida. Estilo "caralho, de repente sobrevivente ao lado de assassinos numa ilha com indígenas e humanóides".
— Não devemos confiar em mais ninguém.- Rafael decidiu acrescentar.
Aos poucos, Sara foi percebendo os dedos de Jason chegando perto dos seus. Ele não aparentava nervosismo, porém não conseguia a encarar. Entrelaçou de vez as mãos, e viu um breve sorriso de canto permear a face. Momentos antes tinham dado por impulso um beijo enquanto conversavam, mas que na verdade, Sara quis muito.
— Bem, já que ninguém se opõem, tá decidido que vamos entrar.- O líder concluía.- Eu vou ir junto com mais alguém lá pra dentro.
— Não.- Lídia segurou-lhe o braço instantaneamente, não aceitando processar mais uma separação.- Deixe outra pessoa ir.
Ele a encarou sem receio. Tinha feito o mesmo. Agora, deveria ser sensato.
— Eu tenho que ir. Quando você decidiu sair de lá, você saiu. É hora de me retribuir isso. Por favor.
Lídia ponderou com tristeza.
— Vocês não são propriedade um do outro, podem decidir sozinhos.- Rebeca não era tão amarga, mas ser compreensiva com casais com certeza ficava bem longe de sua doçura.
Eles viraram a cabeça ao mesmo tempo, acompanhados dos quatro curiosos ao redor.
— Essas decisões doem e temos que ter responsabilidade com os nossos sentimentos.- Lídia não alterou seu tom.
— Casais em situações normais sim. Casais numa ilha infernodisíaca é outro dilema. E já vimos esse filme dias atrás, deixa logo ele ir.
Sara achou graça da analítica e engraçadinha, ela não mudaria o jeito com que tentava aconselhar mesmo que a amputassem a perna.
Finalizaram ali. Não viram como grosseria, só que isso incomodou, era uma impertinência sem aviso, mas logo não ligaram mais. Entenderam o conselho.
— Eu vou com você. Acho que sou o menos ferido.- O homem morto se ofereceu, ainda que talvez não fosse o menos machucado.
Daniel considerou, mas não sem antes olhar para a cara de todos. Jason era um desconhecido. Iria ter desconfiança, só que ninguém olhou torto para a opção.
— Está bem. Vamos juntos.
Quando todos os detalhes acabaram de ser discutidos, a reunião foi dada como encerrada. E as conversas que ficaram pendentes, foram feitas cada um no seu canto.

 

 

Luke se debruçava aturdido no amurado. Sem flores, a sacada tinha ficado um nada triste e sem beleza. Se viu representado nela.
Murmurava palavras indecifráveis no meio do choro que agora cessava após quase duas horas contínuas.
Passava os dedos ásperos na região molhada do parapeito, as lágrimas mancharam como gotas de chuva, porém imaginar chuva naquele lugar parecia algo distante na cabeça de Luke.
Tudo parecia distante. Inclusive quem amava.
Precisava de Mark ali. Ansiava tanto por Mark, que se imaginava saltando daquela altura para encontrá-lo em outra vida, dimensão ou no inferno. Esse jeito se mostrava mais fácil. Mesmo que acreditasse que ele ainda estivesse vivo, a incerteza se transformava cada vez mais em pessimismo, vontade de se desiludir.
Amar o que é incerto destrói.
Após um suspiro longo e um baixíssimo cantarolar melódico, levou as mãos até o marejo para secá-los. Os olhos arderam um pouco. Passou logo. E decidiu que iria para o quarto em alguns segundos.
— Falou com ela?- Reconheceu a voz na hora.- Tive que contar quando ela acordou. Ouvi os gritos do quarto.
Luke respirou fundo. Depois dos questionamentos de Rose, percebeu que não devia ter se permitido omitir junto do garoto nas suas costas.
Virou-se pra ele com os olhos baixos. Incerto do que tinha para falar a Kauan.
— Tá arrasada. Acho que não vai mais confiar em mim.- Lamentou.
— Claro que vai. Ela é sua amiga.- Luke tinha dúvidas sobre aquele rótulo no momento.
— É...Mas amigos não mentem.
— É claro que mentem. O tempo todo. Mas se quiser uma saída melhor do que esperar, conta do afogamento.- Luke levantou a cabeça, mirando ele. Incompreendendo aquela sugestão.- Ela tem medo de você acabar morrendo. Nem falo pelo Dylan, mas por...
— Também tenho, mas por ela. Dela morrer por ele. A Rose é...como uma mãe.
— Não tô falando do Miguel.- O ruivo ficou confuso. "Do que então?", pensou.- De você se matar mesmo.
Luke enrijeceu o rosto. Incrédulo do assunto mórbido insensível que se formava. O locutor continuou:
— Depois das menininhas, você sempre foi o elo mais fraco.- Kauan se moveu para trás, com as mãos escondidas pelas costas. Não tinha receio algum de falar aquilo.- Por pena a Rose vence qualquer raiva. É o tipo dela. Mãe. Precisa proteger a ninhada.
Luke ficou estagnado por mais alguns segundos, até que por fim concordou para evitar ter que ficar perto dele por mais tempo. Trocou algumas palavras mecanicamente, devaneando no impacto que as poucas palavras cruéis tiveram e saiu da sacada assim que teve a chance. Viu pela primeira vez o sadismo claro naqueles olhos.
"Eu não posso confiar nele", enfim o menino ruivo entendeu.

 

 

Enquanto metade do grupo voltou a dormia, Daniel arrumava o que seria essencial levar para ir em direção ao desconhecido. "Foi assim que ela se sentiu? Valente?", passou-lhe pela cabeça ao se comparar com Lídia saindo da agora destruída vila. Foi um momento apavorante para ele, pensava a todo momento que toda a sua família permanecia à deriva. Contudo, agora se colocava no lugar dela.
Iria levar a arma. Achava que todos concordariam com aquilo, já que se pode encontrar qualquer coisa dentro de um buraco fundo como uma caverna. Até que se deu conta de algo quando Jason o interrogou:
— Vai levar isso?- Apontou para a arma de fogo em suas mãos.
Daniel já ia responder quando sua mente emitiu flashs da noite passada, o deixando arrepiado. Ele entregou a arma a Jason, querendo deixá-la bem distante.
— Eu sou um idiota.- Murmurou.- Tá vazia.
— Ah.- Jason segurou o revólver, desanimado.
Contudo, sua expressão mudou quando abriu o tambor sem expectativas, vendo nele balas armazenadas.
— Não está não!- Jason voltou a arma para ele, mostrando o revólver carregado com três munições.
Daniel abriu muito a boca, não tinha como não notar seu rosto embasbacado. Segurou a arma e a tocou por todos os lados.
— Isso é impossível. Eu dei três tiros com essa arma, e só tinha três balas.
— Você deve ter se confundido.
— Não! Outras pessoas também viram!
Daniel foi acordar Sara para comentar o mais novo milagre.
Rebeca parecia em um sono profundo. Na realidade ouviu cada palavra dita naquele lugar. Preferiu ficar quieta. Se levantasse a hipótese de alguém ter ido até eles enquanto dormiam e recarregado a arma, não saberia o quanto mais assustaria todos. Ainda mais se esse alguém tivesse dormido com eles.

 

Rose tinha acabado de ter um colapso como nunca teve. Debruçada na cama já cansada de tanto chorar e fungar, havia desidratado tanto seu corpo em seis horas, que criou uma pequena coragem para se levantar e ir até o banheiro. Com as duas mãos postas, abriu a torneira da pia e bebeu dali mesmo, levando de pouquinho em pouquinho a água na concha de palmas, até não aguentar mais e colocar a boca embaixo do jato d'água. Ficou ali até se sentir saciada, aproveitando para molhar o rosto inchado. Não tinha disposição para tomar banho, queria morrer afogada ali dentro da banheira. Seu irmão a segurava de qualquer loucura, ele constantemente na sua mente a mantinha viva, precisava salvá-lo.
Se olhou no espelho. Os olhos mais vermelhos do que nunca tinha visto, e seu rosto indescritivelmente cansado. Aquilo sim era derrota. Bebeu mais água para refrescar a garganta ardida.
Após alguns segundos fixos na própria cara, ouviu batidas na porta. Primeiro pensou em permanecer quieta, não queria ter que ver ninguém. No entanto, mudou de percepção ao imaginar que poderia ser notícias de Miguel. Independente do que fosse ela correu para abrir a porta, esperançosa e com medo ao mesmo tempo.
Para sua surpresa não havia ninguém para falar com ela, apenas uma caixa azul grande em largura, mas não em tamanho no chão. Um pouco maior que as de pizza que recebia em casa.
Recolheu com cuidado, fechou a porta e colocou a caixa em cima da cama.
Um laço rosa amarrava firme para que nada aparecesse sem ser de fato desfeito. Ela rezava para não ser uma bomba, literalmente e figurativamente.
Indo com delicadeza, Rose começou a desfazer o que antes mais trazia graça ao recebido. Fungou novamente o nariz, parando o choro.
Quando levantou a tampa, lembrou das palavras que Dylan lhe disse à noite sobre o baile que realizaria. Esse era o motivo de receber um vestido dourado que a deixava maravilhosa, e um convite irresistível a convidando para a festa.
Ela pegou o convite e o leu com atenção, era claramente um chamado para participar, escrito em letras prateadas que cintilavam dependendo do modo que as virasse.
Rose olhou para o verso do pedaço de papel, e aí sim encontrou algo que a interessava muito. Escrito à mão de modo amador com uma caneca preta, havia um chamado para algo maior que o baile.

"Caça Ao Tesouro

Para achar seu bem mais valioso, faça o que o mestre mandar. Com as pistas que ele lhe dará, até às onze você pode encontrar."
Iria encontrar o seu irmão.

 

Quando Jason e Daniel ergueram as tochas no começo da caminhada, analisaram as paredes rochosas como se nelas se escondesse um tesouro camuflado, prestes a ser encontrado. Seja lá onde estivesse, tinha algo ali para ser visto, e rezavam para ser a luz do sol. Durante cinquenta minutos não acharam nenhuma relíquia de ouro, alavanca travada, passagem secreta ou sequer desenhos tribais. Apenas a reta escuridão claustrofóbica, com dois metros de largura.
Querendo iniciar uma conversa para que aquilo ficasse menos sufocante, Jason abriu a boca.
— Lídia me contou sobre as crianças. Eu sinto muito.
Seu comparça ficou em silêncio, aceitando os pêsames, ainda que não estivessem mortos.
— Lembro da Rose pequenininha, a criança mais fofa que já vi.- Continuou.- Muito espertinha. Nem consigo imaginar como deve estar agora.
— Você vai vê-la.
— Vou vê-la, é claro.- Reforçou sem realmente demonstrar muita fé.- E o Miguel? Como ele é?
— Não mudou muita coisa.- Respondeu vago, analisando o chão.
— Careca e sem dentes?
Daniel o encarou, inexpressivo. Jason receou-se, até ver um sorriso tímido brotar no rosto carrancudo.
— Eu só o vi quando era um bebê.
Aquilo fez Daniel se recordar de como o filho chegou aos seus braços. Um humanozinho tão pequeno, tão frágil com a pele franzida esbranquiçada demais. E ao longo dos anos tomando nova forma, conteúdo, característica. Amava seu filho, assim como amava sua filha e sua esposa. São pessoas que viu mudar de diferentes formas, e que ainda assim faziam parte dele, independente de em qual fase e tom se encontravam.
— Miguel é altinho, tem o peso certo, é infantil pela idade, né, e inconsequente. A irmã é quase igual, mas mais responsável. Confiaria assuntos sérios à ela, mas não a ele. Ainda não está pronto pra vida.
— Parecem bons filhos.- Eram quase as mesmas informações que Lídia o contara.- Eles tem bons pais.
Secretamente Jason invejou aquilo. Sofia foi péssima, e seu pai prefereria ver morto. Os parentes não se escolhe, infelizmente.
Passaram-se mais de cem minutos até encontrarem algo realmente interessante que talvez enfim desse em algum lugar.
— Uma bifurcação.- Jason disse em voz alta para si mesmo.
Duas cavidades apontando para direções distintas os intimidava. Não dava para saber se um túnel daria para a luz e o outro para um desfiladeiro de lava. Tudo podia ser possível, e nada seria descartado das mentes férteis surradas.
— A gente vai junto ou se separa?
— Voltamos e buscamos mais gente.
— Sem condições, Daniel. Já se foi quase duas horas de caminho, e não sabemos o tamanho disso aqui.- Apontou com a mão livre para o grande buraco à direita.
— Se for armadilha fica cada um por conta própria, vamos nos ferrar.
— Então escolhemos um túnel e vamos juntos. Mas aí também perdemos tempo, e não temos comida por muito tempo, você sabe disso.
Era verdade. Mesmo se repartissem em quantidades mínimas, o que os Neoidrios trouxeram de estoque não duraria mais de dois dias para quase dez pessoas muito cansadas. Não era parte do plano explodir a única entrada óbvia.
Daniel tentou refletir, ser consciente. Mas é muito difícil pensar quando o seu corpo, coração e cabeça não se sustentam mais.
— Não é uma decisão esperta.
Era tudo o que ele conseguia concluir.
— E existe decisão esperta em um lugar tão aleatório?- Jason pôs a mão na cintura, sentindo que ainda tinha madeira para acendar outras diversas tochas.
— Você quer se dividir?
— Eu aceito o que você decidir.
Durou quase um minuto para emitir nota, mas na realidade ele não pensou nem por cinco segundos.
— Tá bem, vamos lá. Se encontrarmos outra bifurcação voltamos direto pro nosso grupo. E quando sentir que já andou o tempo combinado, voltamos também. Certo?
Jason acenou a cabeça. Trocaram orientações e verificaram o que levariam mais uma vez.
Respiraram fundo, encararam as duas passagens como se fossem narinas de um gigante com um tesouro desconhecido dentro dele. Daniel foi pela esquerda, Jason à direita. E logo ficaram sozinhos, cada um por si dentro de uma pedra imensa.

 

 

Nas paredes, do teto ao chão. Cada canto daquele castelo era venenoso. E há cada segundo que ficava lá dentro se asfixiava. Luke não tinha escudo para cruzar aqueles corredores, já com tanta história, sem sair torturado. Mas com cautela, caminhou e se posicionou atrás dos grandes portões onde dois irmãos em tempos diferentes desafiaram seu maior medo.
Ela estava lá dentro. Conseguia sentir a fumaça espessa e suja saindo a fora pelos vãos. Ainda que não fosse visível, foi isso que transbordava.
Não tinha palavras exatas, nem discurso pensado. Apenas queria encara-la e se desculpar. Mesmo que nem assim seus ombros ficassem mais leves, tinha que fazer.
E foi se sentindo transtornado, que abriu um pouco das portas, o suficiente para adentrar no escuro da sala do trono, e enxergar de relance uma figura de cabelos vermelhos de costas para ele, espiando pela divisa das cortinas a grande janela. Também percebeu que o trono não jazia ali.
Luke se encaminhou devagar em sua direção, esperando qualquer movimento brusco para parar, mas ela permanecia imóvel vidrada no horizonte laranja entardecido.
O ar pesado aumentava no corpo o peso de dois, dificultando cada vez mais seus pés levantarem do chão. Era tudo mental.
Mas tomou coragem.
— Ei, preciso...
A nuvem suja dissipou-se quando Rose se virou deslumbrada. Não por ele ali, mas para o que tinha além da vidraça oculta pelas cortinas escarlate.
— Vem ver isto.- Seus olhos cruzaram do breu de volta para o pôr do sol, ela não se desgrudava do vidro, não era possível.
Luke não entendeu sua indiferença, nem o que a fixava tanto para fora. Entretanto, para a fascinar tanto, evitando com que levasse uma surra, devia ser surpreendente.
Seguiu o que lhe mandou, e sem saber o que o esperava, cruzou a sala com passos largos e ficou de pé ao lado dela, até conseguir uma deixa para pôr os olhos na fenda.
E ali, com a labareda laranja clareando parte do rosto, teve a visão. As sobrancelhas ergueram, a boca abriu, o coração bateu forte, visto que desciam da rampa de um navio enorme ancorado no cais da praia, nobres homens e mulheres mascarados carnavalescos do século XVIII em trajes arcaicos e de gala, quais foram convidados para um baile de máscaras que havia sido mencionado apenas uma vez.
Ele tentava reconhecê-los, mas não eram familiares por trás das máscaras. Eram das mais variadas em formatos e tamanho, algumas ocupavam apenas uma pequena parte do rosto.
Portavam-se com elegância, postura, cabeça reta. Não paravam de sair mais e mais deles da embarcação, reluzendo joias pesadas, coordenados com classe, sem um único mexer de lábios ou considerável afastamento entre-os. Entravam sem pausa na grande Coruja Negra, por portas que Rose e Luke não conseguiam enxergar dali, mas não importava, sabiam que eles estavam entrando.
As interrogações fervilhavam, mas ninguém tinha as respostas.
— Não sei de nada, antes que pergunte.- Ela disse.
Luke parou de olhar, pensativo no que viria a seguir. Já tinha tanto medo guardado. Ele se afastou da janela, aturdido o suficiente para não querer mais pensar naquilo.
— Rose...- Não obteve resposta do sussuro.- Ele tentou me afogar ontem à noite.
Ela não disse nada, porém tirou os olhos dos desconhecidos e o encarou por segundos, inerte.
— Na banheira.
Não necessitou mais palavras. Ela tinha noção do que aquilo significava.
Sem mais raiva nos olhos, ela transformou a falta de emoções positivas em um abraço. Era quente, confortável. E queria dizer muitas coisas.
— Vai ser uma noite longa. Vamos precisar um do outro.- Ela alisava seus cabelos, analisando-o calmamente. Precisava botar delicadeza em cada palavra com ele.- Posso contar com você?
Ele quase chorou ali mesmo, esgueirando-se em cada pedacinho de afeto.
— Sempre.
Passaram alguns instantes lá dentro, encarando as duas ou três centenas de pessoas mascaradas sumindo de vista, para dentro do cativeiro.
Saíram de lá quando a noite começou a surgir, sem um plano a seguir. Sem uma rota de encontro. Apenas decidiram dançar com a música que Dylan escolheu. Não é como se tivessem escolha.
Enquanto atravessavam os corredores, viram passar uma criada segurando a criança de Dylan nas mãos.
Luke ignorou aquela presença. Não suportava se lembrar do tiro que saiu pela culatra quando Rose a sequestrou, ou quando Miguel também a sequestrou.
Mas Rose não. Rose não conseguia ignorar aquele bebê sendo levado. E se Luke a tivesse olhado nos olhos por um segundo, veria a mais pura caça naquelas íris verdes, como nunca antes ninguém viu a maldade.
— Eu não comi nada hoje.- Parou de andar, dando meia volta.- Preciso comer alguma coisa.
— Tudo bem. Se alimenta de verdade, ok?
Ela concordou, se afastando na direção oposta até surmir da vista de Luke.
Tinham feito às pazes, o que o deixou humorando bem, e pela primeira vez desde um bom tempo, ele se sentiu confortável.

 

 

A agitação pela mansão começava a cessar nos andares superiores. O grande salão também não estava mais lotado de empregados, entretanto nos arredores lá embaixo podia se ver desespero em qualquer corredor destinado a criados. As equipes de funcionários se descabelavam para os toques finais de arrumação antes de serem enfurnados na cozinha ou mandados para seus quartos.
Em menos de quinze minutos a nobreza seria autorizada a entrar para o baile, e já com um azul escuro se formando pela janela, Kauan sabia que poderia descobrir mais algum fascínio antes da festa, através desse que era seu melhor hobby: ficar pelos corredores.
Tudo o que sabia era fruto do mais puro "ouvir atrás da porta". Esteve sempre alheio a verdade, ao grande maior que nunca soube o que significava. Fora instruído sem muitos detalhes a apenas ser mais um personagem a dançar conforme a música. E pela vibração vinda dos andares anteriores, os instrumentos já se iniciavam a tocar as músicas clássicas.
O mistério nunca foi um problema na quase uma semana de hospedagem ali, mas pela curiosidade de terminar esse quebra-cabeça muito confuso que começaram, andava em espreita no caminho em que viu Alan seguir e sumir de vista.
— Ele já está aqui! Avise!- Afirmou quase gritando uma criada em outro corredor, informando a um guarda genérico.
Genérico porque não era um que Kauan achava bonitinho ou um dos carecas com cara de besta. Era genérico, sem graça.
Mesmo sem entender o código que persistia na frase entregue a ele, Kauan descobriu onde o guarda estava e seguiu atrás dele, prevendo que o mensageiro entregaria sua informação à segunda maior autoridade presente. Andaram um pouco. Não demorou muito para descobrir que a sua convicção acertara. E de mansinho se escondeu atrás de uma parede, no corredor em que o funcionário enfim parava para bater numa porta.
Não tinha necessidade de se esconder, já tinha entendido que os guardas só passavam de enfeites, inconcendiveis de tocar ou deter qualquer um sem receber ordens claras para isso. Mesmo assim, ele ficou escondido.
A porta se abriu, e com um pouco de espaçamento viu seu guia sumir adentro.
Nunca teve acesso a nenhum cômodo desse andar, provavelmente um dos últimos, já que nunca foi permitido chegar ao topo. Ainda assim, não era o último andar, pois fazia alguns minutos em que viu Rose seguindo uma criada com a pequena Lily no colo por uma escadaria que não terminava ali.
Ao ficar alguns segundos na espreita de que alguém logo saísse, decidiu ir em frente e espiar pela fresta aberta, já que as pessoas naquele lugar tinham a falta de atenção de encaixar o trinco da porta.
Assim que se aproximou, Kauan ouviu vozes, reconheceu logo o subalterno que procurava e se esforçou para distinguir as palavras dos murmúrios que entendia. Seus olhos chegaram no alcance do que tinha dentro, destacando duas sombras conversando, com luzes atrás delas de diversas cores. Aos poucos entendeu do que se tratava, monitores com vídeos rodando. Conseguiu ver de relance numa tela um homem desconhecido segurando uma tocha em meio a paredes rochosas. "Não precisam vigiar mais nada, despense todos. Irão embora junto com os convidados", ouviu Alan dizer. Transmitindo em outro monitor, a câmera voava como um drone, mostrando o exterior da Coruja Negra, provavelmente bem agora. "Sim, à noite". Kauan avistou outra tela, via Rose em seu quarto através de onde fica seu espelho, mas assim que a câmera trocou de ângulo, numa vista panorâmica, e trocou novamente para uma que deveria ser de sua cômoda, olhou para os quadros que permeavam as paredes de todos os corredores, e para os lustres, até para o grande tapete estendido. Poderia ter câmeras ali também. Nunca tinha se preocupado com isso, nesse momento sua cabeça explodiu.
O pensamento de estar tendo uma paranoia sem razão se dissipou ao ver serem ligadas telas espalhadas por toda a parede, transmitindo dos mais variados lugares, não só do castelo, mas de onde imaginava ser a floresta além dos muros. Estaria sendo vigiado independente de onde estivesse. "Antes do sol raiar então", confirmou o guarda, se aproximando da porta.
Kauan andou para trás ao sentir que seria descoberto, e sem conseguir fugir a tempo, deu de cara com Alan quando a porta foi escancarada por ele. Se assustou com a expressão fechada dele, que significava querer dar o mesmo fim de Miguel ao menino de cabelo azul. O que Kauan não sabia, era que Alan não podia.
— Tá bisbilhotando de novo? Seu idiota.- O empurrou, trancando a porta logo atrás assim que o guarda saiu.- Vaza daqui! Leva ele! Vá colocar seu traje.
Kauan não disse nada, não tinha piadas para a sensação de vigiado que sentia. O guarda agarrou seu braço, o levando para descer corredores e escadarias até o andar de seu quarto. Os quadros antes inofensivos, agora se tornavam fantasmas escondidos.
Durante toda a travessia, Kauan sentiu vultos voando pelas janelas escadaria abaixo. Achou ter visto as asas de uma ave, mas não tinha como ter certeza sendo puxado com brutalidade pelos corredores.
Ao passar pela sacada de portas abertas, confirmou o que tinha visto. Viu contrastando com a noite uma coruja de penugem reluzente e olhos cintilantes, apoiada no parapeito. A mente de Kauan se abriu. Eram câmeras.

 

 

Céu azul escuro, ondas calmas indo e vindo, um clima fresco. A embarcação flutuando como numa linda pintura. Foi o que Dylan viu, esperando pacientemente em um quarto de detalhes dourados que parecia ter sido feito por um arquiteto de hotéis luxuosos.
Olhava o mar pelo grande vidro que o mostrava da cabeça aos pés. Não tão largo quanto o da sala do trono andares abaixo, mas ainda assim espaçoso o suficiente para um vago horizonte que contrastava com seu terno elegante.
Ao seu lado jazia um carrinho de bebidas com uma jarra cheia de algo alcoólico. Ele despejou um pouco do líquido num copo e bebeu, refletindo sobre a sombra que assolava todo o complexo chamado de Ilha. Aproveitou também para ingerir uma pílula com o resto do álcool.
Tinha voltado cansado, cansado fisicamente e mentalmente. As notícias que recebeu ao chegar não eram boas, a pessoa que deixou responsável pelo castelo o havia desrespeitado. Não queria mais mortes, não queria mais jogos. Seu arco narrativo já dava sinais de se encaminhando ao fim, não queria postergar ou improvisar essa história. Mas não foi sua escolha. E isso o irritava muito. Decidiu repôr a bebida.
Colocou a mão no pescoço. A dor lembrava a de torcicolo de uma noite muito mal dormida, só que mais intensa. Ingeriu mais uma pílula, só para garantir.
A porta do quarto se abriu. Sem nem precisar imaginar, os olhos de Dylan logo acertaram Alan entrando com um aspecto receoso.
— Dylan!...- Forçava um sorriso.
Ele deu um último gole que esvaziou o pequeno copo, sem tirar sua atenção do seu subalterno.
— Que bom que você voltou. Animado para hoje à noite?
Sua tentativa de tornar mortes indiferentes era exaustiva e muito óbvia. Diferente de Dylan, Alan era um péssimo ator.
— Os convidados estão divinos como você planejou! Eufóricos!
Ele ainda segurava o copo quando começou a falar:
— Eu não quero crer no que me contaram.
Alan aguardou uns segundos, soltou o ar, aceitando que a atuação não funcionaria.
— Dylan, foi caótico. Você não estava aqui. Eles tem liberdade demais nesse lugar.- Cruzou os braços.
— Por isso você está aqui, ou deveria ter estado. É você quem tinha que ter medido a corda pra ninguém se enforcar.
— Eu fiz o meu melhor, mas...
— A Lily quase morreu.- A bebê estava ali, num canto afastado do quarto, e foi para o berço que Dylan olhou.
— Dylan, a situação aqui não foi como antes, não tinha quem tomasse conta o tempo inteiro, você começou a dispensar. Tinha o baile pra organizar, as crianças pra vigiar, as autorizações. Foi tudo muito cansativo nesse lugar!
— Foi cansativo pra você?- Dylan abriu meio sorriso, preparando terreno para o deboche.- Deve ser muito difícil fazer as coisas num lugar como esse mesmo. Em um lugar com comida excelente a qualquer momento, quartos confortáveis, beira de praia, horário flexível. Como é difícil, né?
Ele deu uma pausa, voltando quando percebeu que o empregado abriria a boca.
— Você trabalha num hotel em que é hóspede, irresponsável. Sabe onde eu tava? Eu tava lá fora!- Levantou a mão, apontando para a janela.- Tava lá com todo mundo desesperado, correndo risco de vida. Pessoas correndo, lutando, caindo na lama, fugindo de ácido, de raio, chuva, monstros. E ainda assim ninguém me descobriu. Isso sim é trabalho bem feito!
— Você fez parte daquilo porque você quis.
— É, porque eu quis. E você só tem que me obedecer, independente do que eu quiser fazer. Você é meu empregado.
— Pensei que fossemos uma dupla.- Alan começou a se aproximar, mas recebeu uma palma levantada como sinal de pare.
— Eu te dei poucas responsabilidades pra cuidar, são só crianças.
— Crianças malucas, malucas demais para tomar conta em uma mansão onde elas tem tudo livre, você quem decidiu tirar as restrições.
— Pedi pra você cuidar da bebê, você não cuidou.
— Dylan, olha...
— Pedi pra você tomar conta dos cinco, você não tomou.
— Cara...
— Pedi pra você descartar todos os jogos, e vou ter que fazer mais um. Então a partir de agora eu vou te ordenar, pra ver se assim você faz o que foi mandado.- Ele apertava o recipiente de vidro, se controlando para não depositar toda sua raiva na mão.
— Mas a gente já tá no final. É a última noite aqui. Você esteve esse tempo todo planejando isso, e agora quer dar pra trás, por quê isso?
— Você só tem que fazer o seu trabalho.
— Não, fala. O que aconteceu com o Dylan megalomaníaco? Aquele que não dava a mínima pra empalar crianças, explodir milhares de pessoas, atirar na própria mãe. Nós estávamos nessa juntos, e por causa de um erro começa a agir comigo como um sultão nos quarenta e cinco do segundo tempo?
Alan tinha notado, mas nada comentaria de como Dylan se tornava um ditador quando se sentia ameaçado.
— Eu saí por um dia! Um dia, Alan! Em nenhum outro elas morreram sem ser planejado!- Contorceu-se o rosto de raiva, enquanto levantava o dedo querendo enfiá-lo na cara de alguém.
— Não é culpa minha se eles são idiotas.
— Não! Idiota aqui é você, que desobedeceu minhas ordens!- Ele colocou a mão na testa, tentando não se alterar mais.- Sai daqui.
— Dylan...
— SAI!- Dylan arremessou o copo de vidro na porta, o estilhaçando em centenas de fragmentos.
Alan o encarou, assustado. Dava para ver uma veia saltada na cabeça do rei. Nunca viu seu companheiro de trabalho agir assim com ele.
— Eu não te reconheço mais.- Abriu a porta e se retirou.
Dylan voltou-se para o berço afastado. Precisando muito de algo confortável para distrair seu coração. Não sabia como aquela gritaria não a tinha acordado, mas a sua pequena Lily continuava a dormir. Para ele era um anjinho. E um sorriso bobo encheu sua face de carinho. Lily era linda, e aquela visão o deixava com a mente limpa. Entretanto, ele também não se reconhecia mais.

 

 

Ela se maquiou com capricho para esconder sua vulnerabilidade. Da cabeça aos pés, Rose decidiu entrar no jogo. O vestido lhe caíra como uma luva, adornando e amostrando todos os pontos mais positivos do seu corpo. Cuidou do cabelo e o penteou com calma para fazê-lo esbelto. Não parecia a mesma menina que mais cedo gritava pelos corredores chorando feito criança. Para recuperar sua família ela aguentaria, ainda que não soubesse o tamanho de sua força.
Encarava seus próprios olhos verdes na penteadeira, aguardando a hora de ser convocada para ter todos aqueles estranhos a rodeando. Uma figuração impecável em trajes e trajeitos.
Com o convite pairado em seu colo, não tinha mais necessidade de analisá-lo, já que cada mínima palavra decorria perfeitamente em seu cérebro. Resolveu aquelas frases subjetivas, sendo que quando pudesse as explicaria a Luke. A ajuda da parte dele era essencial para que às onze não badalassem sem a entregar o que queria. Um horário se tornou seu maior temor para esta noite.
As batidas na porta retornaram, dessa vez com a certeza de que encontraria alguém lá. Libertando-se do quarto, Rose encontrou a companhia de dois guardas, cujos olhavam para Luke e Kauan saindo arrumados de seus aposentos. Os três jovens se entreolharam, e pela primeira vez em todos aqueles dias, se podia ver bem no fundo dos olhos de todos eles o receio. Rose não sabia o que tinha mudado para Kauan, mas também não tinha vontade de descobrir, seu foco era outra pessoa.
Foram levados pelos corredores que já conheciam muito bem. Dessa vez vazios até demais, sem guardas, sem camareiras ou outros empregados. Nem um cochicho atrás de porta. Aparentavam estar sozinhos, senão fosse pelo barulho da música atrás dos portões no fim do corredor que aguardavam ser abertos.
— Tenho que fazer o que ele pedir até antes das onze.- Rose sussurou no ouvido de Luke.- Não posso passar desse horário.
Quando terminou de assimilar a informação, ele acenou a cabeça. Kauan notou a interação, e não quis tentar descobrir do que falavam.
As roupas que usavam eram todas muito bonitas, cabendo perfeitamente em seus corpos. Não lembravam de terem tirado medidas nunca em suas vidas, o que era curioso.
Alan apareceu por trás deles que encaravam os portões, indo colocar suas mãos nas maçanetas.
— Boa noite.- Foi para a frente, olhando o rosto dos três mais jovens convidados para o evento.- Espero que se divirtam aqui hoje. É uma ocasião muito especial. Passamos dias organizando isso, e creio que vocês já tinham reparado na correria por aqui nos últimos tempos. Bem, vai valer muito a pena.
Kauan não conseguiu olhá-lo nos olhos.
— Divirtam-se, e sem mais delongas...Sejam bem vindos ao primeiro baile real da Coruja Negra!- Suas mãos empurraram os grandes portões, abrindo alas para Rose e os dois garotos fazerem sua entrada. Alan sumiu de vista logo em seguida.
Ao pôrem os pés dentro do salão, uma luz forte giratória passou rápido em suas direções. Luke se segurou em Rose para não cair da escada que precisavam descer.
De degrau em degrau, foram enxergando o que as luzes rotatórias os impedia. O baile no salão enorme estava cheio de todas aquelas figuras que viram desembarcarem do navio. Kauan demonstrou tanta surpresa, que Rose cedeu três segundos do seu precioso tempo para o reparar.
Elas dançavam, conversavam e iam de um lado para o outro como as cenas em que viam de filmes de época e de princesas. Até a mesa de banquete era diferente das outras que já presenciaram no castelo, ocupando uma quantidade de metros que eles não conseguiam medir, e com tanta comida, mas tanta comida, que as bandejas de ouro com oito ou nove andares ocultavam os pratos mais baixos. Luke não reconhecia metade, e nem a metade do banquete tinha conseguido enxergar.
Transformaram o espaço completamente. Parecia outro lugar, parecia transportado para outro século, porém com modernidades que não destoavam o ambiente, apenas os aprimorava, como as luzes que emergiam holofotes giratórios. Rose reparou numa pequena parte do ambiente cercada de flores em que um mascarado cabeça-de-sol, tirava a foto de uma moça sentada num trono de rosas. A câmera antiga lambe-lambe disparou o flash, dando a deixa para a mascarada se retirar e dar espaço a outra. O fotógrafo tirou o retrato de dentro da caixa de madeira e o entregou antes que a moça partisse.
Já no meio da multidão, Luke não desgrudava de Rose, enquanto Kauan sentindo que não seria bem vindo com a dupla, foi atordido se distrair no meio dos variados bolos.
Conforme andava, a menina de cabelo ruivo reparava as olhadelas que recebia, e os sorrisos que brotavam nos rostos não 100% tampados. Para Luke era assustador. Mas Rose se esforçava para não se importar, estava procurando outra coisa.
— Rose.- Luke a chamou, apontando para trás.- Olha lá.
Ela se virou, e na altura em que ele apontou viu lá em cima no topo de uma escada do tamanho da que descera, Dylan repousando em um trono, olhando diretamente para ela que era um ponto no meio de vários. Usando uma coroa, ele abriu seu sorriso cínico, sem nem precisar chamar quem queria, pois sabia que ela viria até ele.
— Me espera aqui.- Ela abriu caminho pelo salão, deixando-o para trás.
Cerca de quinze músicos tocavam a valsa perto da janela, motivando os desconhecidos no centro do salão a dançarem em dupla numa coreografia que não erravam.
O sorriso de Dylan foi sumindo enquanto sua filha tentava cruzar o lugar não o prestando atenção. Mas o homem cabeça-de-sol o viu, demorando mais que o habitual para tirar a foto de um convidado.
Ela enfim pôs os pés no primeiro degrau da escada, mirando seu rosto como se desse para colocar fogo. Dylan refez seu sorriso, a esperando subir até vossa majestade.
Em alguns segundos ela tinha alcançado.
— Boa noite, Rose. Está tão linda essa noite, nunca te vi tão bonita.
Ele a tinha chamado pelo nome pela primeira vez no castelo. Reparou isso.
— Recebi o convite.
— É claro que recebeu. Essa festa também é para vocês. É uma despedida.
Rose sentiu calafrios, mas ainda tentou não se preocupar. Lá de baixo, Luke não conseguia desviar a atenção para outra coisa.
— Já comeu algo? Claro que não, acabou de chegar. Então coma.- Disse passeando com a mão para a direção do banquete.
Ela aguardava cada frase com atenção. Não tinha muito mais de uma hora para achar respostas nas entrelinhas dele.
Ao perceber que ele não diria mais nada, entendeu o recado. Se virou para começar a descer, até ser parada por sua voz.
— Ah, espere. Poderia me fazer um favor e trazer alfajores de limão pra mim? É uma delícia!
Ela balançou a cabeça, agora sim descendo os degraus com cuidado para não cair daqueles saltos. Precisava segurar o vestido para movimentar melhor as pernas.
Luke a esperava no final, tão receoso quanto ela há um minuto.
— E aí? Como foi?
— Você sabe o que é alfajores de limão?


Afastando-se dos desconhecidos, Kauan se esgueirou até a janela perto dos músicos.
Olhar para fora o acalmava, mesmo que a vista fosse o começo do cemitério. Lá não tinha ninguém, tão vazio quanto a mente que queria ter agora. O céu aparentava mais beleza do que qualquer outro dia, hoje tinha um capricho até no ar que respirava. Kauan conseguiu se distrair por uns minutos.
Enquanto isso, Rose e Luke caminhavam por todas as mesas, procurando um doce redondo que lembravam vagamente.
Aquela tarefa ia ser impossível no tempo que tinham, a comida era muita. Não era só a exorbitância o problema, mas o tanto de pratos desconhecidos ali em cima. Coisas que nem sabiam se eram doces ou salgados.
— Você tem certeza que o único formato é redondo?
— Era o que o seu pai fazia!
Queriam estar de novo na cafeteria, mesmo nos dias cheios em que as pessoas falavam pelos cotovelos. Não era tão alta quanto a música dos instrumentistas, e não dava medo como aquelas máscaras que pareciam argila roubando o formato do rosto de um cadáver.
Depois de muito procurar, passar por comidas estranhas e saborosas, Rose olhou ao redor. Era uma tarefa simples, achar um doce e levar, porque precisava ser tão difícil? Teria alguma pegadinha?
Ela teve uma ideia. E quando Luke se virou para ela, não estava mais ao seu lado.
Dylan observou do trono para onde sua filha foi, orgulhoso de sua engenhosidade em saber como ele pensava. Ela era ótima, e não merecia nada daquilo que a fez sofrer.
Embaixo da mesa tampada por um longo pano branco, Rose engatinhava olhando para cima procurando uma dica.
Talvez estivesse sendo idiota, mas precisava tentar. Se as onze badalassem morreria por dentro.
Após muito se arrastar pela imensidão de mesas, achou como num milagre um pequeno "x" pintado em vermelho brilhando na parte inferior da mesa.
Abriu um sorriso largo, sabendo que tinha finalizado a tarefa. Ela saiu de lá animada. Quando olhou por cima tinha em mãos exatamente o alfajor de limão que Dylan pediu, e fixou o doce que antes era miragem na memória. Luke a encontrou segurando o prato bem longe, ela acenou para ele que retribuiu. Se sentia revigorada.
Firme, ela começou subir as escadas.

 

 

 

O túnel de Daniel não tinha fim. Eram curvas e retas infinitas, tanto que se perguntou em vários momentos se estaria andando em círculos todo esse tempo.
As tochas não durariam por mais horas, e nem foram úteis para achar algo na parede, qualquer mínimo detalhe. A caverna era realmente apenas uma caverna sem nada na parte em que Daniel entrou. Resolveu não se aventurar mais na escuridão e deu meia volta frustrado. Torcia para que Jason tivesse mais sorte.

 

— Isso aqui está uma delícia!- Dylan falava de boca cheia, mastigando com gosto seu alfajor.- Eu amo alfajor de limão. Você provou?
Rose pensou em agir como numa pergunta retórica, mas negou após a insistência do olhar que recebeu.
— Então prove.- Ele esticou o prato.- Você vai amar.
Com medo, pegou apenas um dos mais pequenos. Não queria ser envenenada.
Ela encarou o doce, meio preocupada com o que aconteceria. Luke também encarava a cena com sua cabeça erguida o máximo que dava lá embaixo.
Rose abriu um pequeno sorriso quando se viu com medo de comer um alfajor. Se fosse para morrer com veneno com certeza não seria com um docinho daqueles. Ela provou o alfajor de limão, e percebeu que Dylan possuía extremo bom gosto para comida. Era uma delícia.
— É ótimo, não é?- Reparou as feições dela de alento.
Ele devorou mais algumas porções, oferecendo mais para Rose que rejeitou. Mal sabia o quanto lhe era indispensável algo tão gostoso para repôr as energias. Dylan se sentiu de bom humor, mas a festa precisava continuar.
— Por que você não vai tirar uma foto? Tem que ter um registro dessa noite, está tão linda!
Rose entendeu o recado. Fez reverência e desceu as escadas de novo.
A verdade é que já imaginava esse pedido, não iam ter se dado ao trabalho de montar um cenário se não a quisessem nele.
Ela chegou perto de Luke e o puxou, caminhando em direção ao fotógrafo.
— Onde vamos?
— Tirar fotos, o "mestre" mandou.- E atravessaram pelas figuras estranhas.
Era difícil passar com elas amultuadas em alguns ciclos sociais, cochichando coisas que Rose não dava a menor atenção.
Olhar para as máscaras fez Luke se questionar de algo, quem sabe ajudasse a encontrar o objetivo. Mas sentia a estranheza do que Rose poderia inventar depois de levantar essa ideia.
— Você já pensou que talvez ele esteja aqui, entre os mascarados?
Rose demorou um tempinho para entender. Se dirigiram para onde tiravam as fotos, ficaram dois minutos na fila e foi só quando ela sentou no trono de rosas que aquilo fez total sentido. Luke se portou de pé ao seu lado, pondo uma das mãos no apoio do trono. Eram rainha e escudeiro.
O homem cabeça-de-sol ficou mais tempo nessa foto do que nas outras, essa tinha que ser especial.
— Mais cinco minutos.- Emitiu uma voz abafada.
Ele era com certeza o que mais aterrorizava os dois.
Quando a acabou de tirar, os dois fotografados saíram de suas poses, absortos com a possibilidade de Miguel estar fantasiado. O fotógrafo lhes entregou o retrato, fazendo questão de que olhassem para sua máscara quando o fossem receber. Rose e Luke saíram de lá apressados, voltando a cruzar o lugar imenso.
— Miguel é pequeno, essas pessoas são muito altas.- A menina ruiva o respondeu.- Mas não é loucura, é super possível.
Luke pensou que alguns mascarados ali tinham roupas do tamanho que tranquilamente caberiam um jovem sequestrado, mas não comunicou isso a ela. Era assustador.
Ele parou no início da escadaria, deixando que Rose subisse sozinha novamente. Ela estava agitada, o tempo parecia passar cada vez mais rápido, e senão fosse pelo relógio na parede, teria se perdido no horário. Entregou a foto para Dylan.
— Que foto linda. Vocês ficaram ótimos. Já pensaram em seguir carreira de modelo? Temos um bom fotógrafo- Ele analisou com atenção.
— Queria que meu irmão estivesse aqui.
Dylan não expressou nada, continuando focado na foto. Pensou em uma saída rápida, ainda não podia dar o que ela queria.
— Vocês são bons de dança?- Disse tirando os olhos da foto e mirando nela.
Rose não queria ter que fazer aquilo, mas entendeu o recado.

 

Esperavam ainda acordados pela volta de Daniel e Jason. A hora deles retornarem tinha chegado, e a qualquer momento receberiam a notícia que os salvaria ou entregaria à morte.
No começo da conversa que iniciaram afastados em esporádico, tentaram não puxar os assuntos que lhe eram sensíveis, entretanto o inevitável ocorreu uma hora. E quando viram, já falavam do que fariam se conseguissem sair dali.
— Estamos onde ele quer que nós estejamos.- Rebeca analisou - É o tempo todo assim. Sairemos daqui se ele quiser, e eu acredito que quer sim.
Passou por alguns segundos na cabeça de Rafael que Rebeca poderia saber o que os aguardava, o Cold Blood podia ter razão.
— O que vamos fazer quando a gente encontrar ele?- Deu corda para saber o que diria.
— Não é óbvio? Vamos matar ele.- Ninguém olhou nos olhos de ninguém. Todos sabiam que seriam capazes disso.- Depois vamos pegar um barco, chegar sabe se lá onde, e pedir ajuda.
Mark não entendia como ela dizia isso com tanta tranquilidade. Não apenas ela, como todos ali presente não demonstravam um terço do pânico que sentia.
— Não vou embora sem meus filhos.- Lídia repetia como um disco arranhado sempre que tinha a oportunidade. Não deixaria para trás eles, daria sua vida pelos seus filhos.
— E se eles não estiverem aqui?
— Estão, Sara. Eu sinto. Os dois estão aqui e vivos.
— Você estando com eles é um risco.- Sara iniciou, de modo cauteloso. Tinha analisado aquela situação há mais tempo do que imaginavam.- Não sabemos se o povo alucinado morreu inteiro. Nós somos divindades na ilha. Se eles ainda estiverem por aqui, vão nos caçar, e caçar quem estiver com a gente.
O coração de Mark acelerou ao pensar nessa possibilidade. Lembrou de todos os corpos mortos que viu, do sangue e órgãos pelo chão. Não aguentaria passar por isso de novo.
— Somos sete, todo mundo ferido. Só um milagre pra nos salvar em um segundo round.- Rebeca encarou o resultado da primeira batalha. Sua perna ainda doía muito.
Mark em sua companhia tinha apenas assassinos. E isso o fez lembrar de algo que deixou bem no fundo do inconsciente. Que também era um.
Lídia ia argumentar, mas Rafael começou a falar.
— Primeiro a gente precisa sair daqui. Depois a gente vê o resto.
— Não tem o que ver. Não vou embora sem Rose e Miguel.- Sua resistência não seria vencida numa simples conversa.
— Tudo bem, falamos sobre planos quando Jason e Daniel voltarem. Vamos ocupar a cabeça, gente. Precisamos.- Sara tentou encerrar o assunto.
E por alguns minutos eles realmente pararam de falar sobre aquilo. Direcionando a conversa para sabores e tipos de bolo preferidos. Alguns sorrisos bobos foram estampados durente a conversa, Rebeca fazia piadas sobre cozinheiros, e eles embarcavam com pequenas risadinhas. Bolo de chocolate era o favorito da maioria, e Rafael se sentiu contrariado quando foi o único que disse preferir bolo com recheio.
Aquela foi a gota d'água para Mark, tanta naturalidade ao redor, com a mente cheia de mortes, mortes, mortes, mortes, mortes. Ficou de pé. A calma lhe envenenava, quente, fervilhava no estômago. Precisava vomitar.
— É SÉRIO QUE VOCÊS NÃO ESTÃO APAVORADOS?!- Mark explodiu.- Um monte daquelas COISAS tentaram comer a gente, RASGAR a gente. ESMAGAR, SUFOCAR. Tudo explodindo em toda parte. Aquelas pessoas morrendo e enfiando faca em todo mundo. ISSO NÃO TÁ NA CABEÇA DE VOCÊS, PASSANDO SEM PARAR, SEM PARAR, SEM PARAR?. VOCÊS SÃO LOUCOS!- Os pares de olhos não se mexiam, assustados com o surto presente.- EU NÃO SEI COMO VOCÊS CONSEGUEM ESTAR CALMOS! É IMPOSSÍVEL PARAR DE OUVIR! NÃO SAI DAQUI NUNCA!
Rafael se ergueu, dando passos devagar na direção de Mark.
— Eu não aguento mais...- Respirava ofegante, virando para todos os lados, chorando de raiva. Sua garganta agora era o que mais doía.- Eles não voltaram até agora. Eles não vão voltar. Não tem saída! VAMOS MORRER TODOS!
— Ei, calma.- Rafael se aproximava.
— EU PRECISO SAIR DAQUI! PRECISO SAIR!
Mark começou a gritar, de uma forma que amedrontou todos que presenciavam.
Ele jogou seu corpo contra a parede, e começou a bater a cabeça em um ritmo constante, levantou as mãos e arranhou as rochas com força. As unhas se encheram de sangue, e sua cabeça jorrava para todos os lados.
— PARA!- Rafael foi correndo o agarrar pela frente, afastando ele da pedra suja de sangue.
Mark não se conteve, de alguma forma seus pés acertaram uma tocha que aterrissou no chão. Tentava a todo custo se desvencilhar dos braços de Rafael, distribuindo inúmeros socos em suas costas. Os gritos dele não cessavam, e seu rosto vermelho não era apenas pela falta de ar, mas pelo sangue descendo por ele todo.
Sara pegou rapidamente o álcool, e o despejou quase inteiro no pano. Correu até Mark esperneando sobre o corpo de Rafael, e com força pressionou o tecido contra seu rosto.
Lídia a acompanhou, indo segurar a cabeça dele para ajudar a ir mais rápido, Rafael claramente não aguentava mais o apertar contra si.
Depois de dois exaustivos minutos, conseguiram fazer Mark desmaiar, o colocando com cuidado no chão. Estavam exaustos de fingir estarem bem uns para os outros.

 

 

Rose dançava acompanhada de Luke. Eram péssimos em acertar o ritmo dos pés, mesmo não sendo uma dança difícil. Dois passos à direita, dois passos à esquerda, e em constante movimento para continuarem na roda com os outros casais. O mais impressionante era como os convidados não erravam nunca. Ou já faziam aquilo há muito tempo ou praticaram até seus corpos dançarem dormindo.
As músicas que tocavam agora possuíam uma melodia familiar para os ouvidos dos jovens, mas não se deram conta de que ouviam versões orquestradas das músicas que mais gostavam.
Cochicharam um para o outro:
— Você estava certa sobre Kauan.
Olharam para os lados enquanto dançavam, procurando por ele.
— Ele está estranho hoje. Sabe de alguma coisa.- Rose se permitiu pensar naquilo por um tempinho.
Não confiava em nada nele, tinha percebido algo de Dylan no jeito que Kauan agia, puro cinismo. Odiava os homens do castelo com sorriso falso. Porém naquela noite, ele estava mudado.
— E se for parte do fingimento?- Luke disse, quando esbarraram numa dupla.
— Ele merece um Oscar.
Continuaram a dança, ainda em conflito com os movimentos. Sentiam que a música já ia se encerrando, até que ressurgindo das cinzas ela voltou mais potente do que antes, e Rose que ia se desvencilhando de Luke, foi puxada para continuar a dança com outro parceiro. A máscara a encarava como um monstro admirando sua vítima. O mesmo aconteceu com Luke, indo para o outro lado da roda que agora era mais veloz. Não adiantava se atrapalharem, tinham alguém que sabia fazer funcionar.
Rose aceitou ser guiada, mas não encarou mais a máscara do homem que a conduzia. Luke tentou fazer o mesmo com a moça que o pegou como par, porém seus corpos estavam tão próximos que não tinha para onde desviar. Sua mão era apertada com força contra a dela.
E durante dois minutos foram obrigados a continuar na roda, exaustando seus pés.
A música enfim cessou de verdade. Era a deixa para se encontrarem novamente. Os dois se procuraram e se viram no mesmo instante, aliviados, e foram correndo na direção um do outro.
— Espero que ele tenha visto.- Luke respirou fundo.
— Ele tem que ter visto.
Olharam para cima. Lá repousava Dylan em seu trono, terminando o prato de alfajores de limão. Aguardava com que ela subisse.
— Rose, a hora.- Luke apontou para o relógio.
Rose inspirou e expirou o ar com calma. Tinha oito minutos para que as badaladas ecoassem confirmando o fim. Não importava o que Dylan fosse lhe pedir, precisava ser a última coisa, e ter tempo o suficiente para a conseguir.
Não havia mais nada de artimanha para fazer ali. Comeu, fotografou e dançou. O que mais o mestre poderia pedir que fizesse num baile?
Bem, iria descobrir.
Dylan viu quando sua filha começou a rumar em sua direção. "Ela tem pouco tempo", pensou, preocupado com a situação que se meteu. Essa menina teria que correr muito, e talvez uma ajudinha fosse a solução.
— Você me viu dançar?- Ela falou, pulando os últimos degraus agitada.
— Claro que vi, você foi ótima. Essa noite é sua.
Para ele, ela realmente nunca estivera tão divina. Entristeceu por dentro sabendo o motivo.
Pelo menos o baile tinha saído como o planejado. Seus convidados pareciam felizes dançando e desgustando do banquete. A fotografia era um charme, e a decoração impecável. As músicas foram a melhor parte que achou. Gostava do som dos instrumentos tocando algo moderno. Era o novo no velho, a reinvenção.
— Então...- Rose não sabia como cobrar a resposta que ansiava. Precisava terminar logo com isso.- Meu irmão...
Ele a interrompeu, fazendo com que parasse a frase logo no início:
— Ache algo que não está como devia estar.- Disse claro e objetivo.- É essa sua resposta. Me traga e direi o que quer ouvir.
Rose ficou estagnada prestando atenção no rosto dele. Se esforçava para assimilar a frase e decodificar o que de fato significava. Infelizmente, a peça que o enigma pregava a pegou em cheio.
— Vá! Rápido!- Ele mandou, genuinamente aflito.
Rose se virou. Dessa vez não tinha entendido o recado.
Kauan nem precisou que ela chegasse até ele para notar seu rosto perdido.
— Merda.- Sussurou, a vendo atordoada com seja lá o que ele pediu.
Rose parou na metade da escada para ter uma visão ampla de tudo. Sete minutos. Se tivesse algo destoando do ambiente, desde que não fosse pequeno e tivesse posto no chão, daria para enxergar dali. E já cansada de pensar, apenas deixou que suas córneas analisassem sozinhas a pista de dança animada, o gigantesco banquete com um bolo apetitoso, a área tematizada para tirar fotos com o cabeça-de-sol.
Nada a fez sentir "fora do lugar". Parecia normal, absolutamente tudo normal dentro da proposta. O que era diferente?
Luke notou sua demora, indo até ela. Achou que poderia ter entrado em estado de choque.
— Tá tudo bem? O que foi?- Perguntou apreensivo.
Ela aguardava a chave de seu cérebro virar e lhe dar uma resposta.
— "Ache algo que não está como devia estar", foi o que ele disse.
Luke também não entendeu o que significava, e se juntou a menina ruiva buscando algo destoante.
— A dança estranha? Alguma comida?- Começou a listar possíveis resultados.- Os músicos?- Um feixe de luz acertou seu rosto.- Essas luzes chatas?
Não era nada disso. Rose não conseguia pensar em nada. 6 minutos para as badaladas.
— Eu não tô aguentando mais, Luke.- Ela se apoiou nele, fechando os olhos com força. "Surja resposta! Surja!"
— Fica calma, tá? Vamos achar!- Ele continuou procurando. Entretanto nada queria ser achado, e aí se lembrou.- Rose...O Kauan?
Ela não emitiu som. Luke a sacudiu para que acordasse do transe.
— O Kauan! Ele não tá aqui!
Rose olhou para baixo, tinha perdido o menino azulado de vista. Era isso! Só podia ser isso! Por esse motivo Kauan estava tão estranho, com o olhar perdido. Sabia que seria parte do show, era atuação como Luke disse, tinha razão! Foi isso que ela pensou. Precisavam encontrar ele antes que fosse tarde.
— Espera.- A voz de Rose falhou.- Ele tá ali, nas flores.
A comoção se desfez em pedaços quando os dois juntos o viam posar para o fotógrafo. O que caralhos tinham que ver? O que não está como devia estar? Queria desistir, mas Miguel ainda precisava dela, e seu coração não diminuía em aperto nem um pouquinho.
Ela não suportava mais ter que ficar naquele lugar. Cercada de abutres com máscaras que a davam medo. Era tudo muito nebuloso, um pesadelo real. Viver não tinha como ser menos aterrorizante que isso.
5 minutos para as badaladas.
E foi aí que Rose percebeu que um ser a assustava muito mais do que os outros. Todos os deconhecidos usavam máscaras de carnaval, menos um.
— É o fotógrafo! É o fotógrafo!- Rose começou a descer a escada sem esperar por ninguém.
Luke seguiu seus passos, sem entender absolutamente nada. Tentou traçar uma linha de pensamento da frase com a figura, sem resultados. Como teria decifrado isso?
Ela foi atropelando todos pela travessia. Parecia que a maioria dos convidados tinha decidido ir na direção oposta a que tentava chegar.
O homem cabeça-de-sol terminava de fotografar Kauan, quando Rose chegou o confrotando, eufórica pelo pouco tempo restante.
4 minutos para as badaladas.
— Você! A sua máscara é a única que não se parece com as outras. A de todo mundo tem várias, mas mais ninguém tem um astro na cara.- Revelava a resposta aos gritos, fazendo questão de ser bem ouvida.
O fotógrafo nada disse, o que a deixava ansiosa com a possibilidade de ter compreendido tudo errado. Kauan figurava a cena entretido com o resultado que viria. Não tinha mais o sadismo de ver uma irmã desesperada, mas sim a curiosidade de saber se ela conseguiria salvar seu irmão.
Apenas quando o cabeça-de-sol enfiou uma das mãos na caixa de madeira, teve a afirmação de que acertara. De lá ele retirou com cuidado uma marreta, entregando-a nas mãos de Rose.
— Leve a ele.- A voz abafada disse.
3 minutos para as badaladas.
Ela se virou e foi embora sem questionar nada, indo na direção do trono para finalizar o último mandamento do mestre. Entregaria a marreta, teria seu irmão de volta. O pesadelo acabaria e sua cabeça não ficaria mais tão cheia. Estava sendo otimista, sabia. Mas não tinha como não ser quando se prestava a salvar aquela vida.
Quando Rose pôs os pés na escada, viu que o trono estava vazio. De repente os pensamentos aterrorizantes voltaram à mente.
Luke chegou atrás dela.
2 minutos para as badaladas.
— Ele não tá ali.- Ela disse, com a marreta em mãos.
Se virava para todos os lados, procurando em qualquer lugar, precisava achar ele antes que fosse tarde demais. Seu irmão não podia morrer.
No meio da multidão, Rose viu Kauan parado a olhando. Ele levantou o braço e apontou para um lugar no banquete. Era lá que Dylan tinha ido. Ela voltou os olhos para agradecer, mas Kauan tinha sumido de vista.
Rose correu na direção do rei, empurrando qualquer figura que entrasse em seu caminho. Acertou a marreta na barriga de alguém, mas não se importava. Se estava ali era porque merecia.
1 minuto para as badaladas.
Ela chegava perto de Dylan, que montava um prato de comida reforçado.
Ele a olhou com um sorriso, e pôs o prato de lado, bebendo uma taça de vinho enquanto Rose tropeçava em três pessoas para alcançar ele.
— Ah, você está aí.- Dylan iniciou.- Eu tive que vir pegar mais...
— AQUI O MARTELO, agora fala aonde tá o meu irmão!- Empurrou o objeto para ele, que não segurou.
Dylan depositou sua taça na mesa, abrindo uma expressão bem séria. Essa era a grande hora, Rose tinha uma chance, então foi claro.
— Primeiro, isso é uma marreta.- Não fazia diferença para ela, apenas queria que seu irmão sobrevivesse.- Segundo, ele está sepultado num túmulo de concreto, com oxigênio que vai durar...- Olhou o relógio.- Vinte segundos. E contando. Você sabe qual é a cova. Use a marreta e corre!
Rose o encarava, horrorizada. Sua boca se abriu, sua sobrancelha foi franzida e os olhos se encheram de lágrimas. Ela deu meia volta e correu levantando seu vestido, esbarrando e marretando nas pessoas do baile para que a deixassem passar.
Ela correu mais do que antes, mais do que nunca, procurando a saída mais próxima. Luke foi desesperado atrás dela, achando os saltos que Rose tirava pelo caminho no corredor vazio que conseguiu entrar.
Ela não tinha mais tempo. Miguel ia morrer!
Rose abriu com tanta força a porta para o cemitério, que uma das dobradiças de soltou. Ela passou o mais rápido que podia pelos túmulos, procurando aquele em que antes viu o homem pular. Era aquela cova!
Quando chegou nela, estava com a lápide como uma caixa de concreto, e seu irmão estava preso dentro daquilo, agoniando de asfixia.
Ela segurou fortemente a marreta, e começou a destilar golpes com toda a força que tinha, acompanhada dos sinos que badalavam. Era desesperador!
Rachando e quebrando o cimento, Rose não iria parar. Ela não se cansava de atingir o concreto, indo com cada vez mais força para tirar Miguel dali. Já era em cima da hora, não dava pra perder nem um segundo. Ela golpeava. Golpeava. Golpeava. Bateu contra a lápide sem pausa. Todos os sentimentos ruins se tornaram munição socando contra a matéria dura. A saudade dos pais, o medo, os traumas. Colapsavam explodindo através das mãos.
Luke passou pela porta entortada, gritando pelo nome da amiga, mas ela nada respondeu. Continuava a bater sem parar, angustiada. Botava todo o seu esforço ali, chorando tentando salvar sua família.
Ele mal a enxergava com a poeira que subia há cada martelada. Não sabia se o concreto liberava aquela quantidade anormal em outras ocasiões, mas naquela sim. Tentou se aproximar, mas tossiu ao entrar na área esfumaçada.
— Rose!
Ela batia. Batia com toda a força.
— Rose!
Não conseguia parar. Rose colocava pra fora toda a sua dor, na última chance de salvar quem amava. Seu rosto encharcado de suor e lágrimas ficava sujo dos fragmentos que pousavam. O vestido dourado agora se encontrava branco de tanto pó.
— ROOOOSEEEE!
Ela parou de marretar o túmulo. Respirava ofegante, abatida. Enquanto a fumaça desaparecia, viu no meio do cinza despedaçado a cor vermelha. Ficou apavorada.
Ela deixou a marreta de lado, e ao se agachar começou a tirar os destroços do túmulo, arrancando e jogando para o lado.
Rose encontrou aquilo que temeu durante todo o dia, o que lutou para que não acontecesse até o fim: seu irmão morto. Tinha esmagado partes de seu corpo, crucialmente um pedaço de sua cabeça, agora jorrando de sangue.
Luke viu a cena e rapidamente a afastou do corpo. Estavam os dois em estado de choque. Aquilo não era para ter acontecido. Tudo tinha sido em vão. TUDO. O tempo perdido foi apenas tortura com o menino de treze anos.


A mente dela agora pegava fogo. O luto não iria vir tão cedo aquela noite.
Algo nela cresceu, uma ira sem prescendentes. Que a fez deixar para trás o corpo de Miguel morto entre os destroços, pegar a marreta no chão e marchar para o quarto do bem mais valioso de Dylan. Iria tirar dele o que lhe foi tirado. Sua única fonte de amor.
Rose entrou de volta para a Coruja Negra, deixando de lado toda a exaustão para se vingar.
Luke não sabia o que fazer, apenas foi atrás dela, tentando a segurar, a chamar, mas nada a impedia de subir castelo acima.
— O que você vai fazer?!- Gritava, tentando acompanhar seu ritmo, ela subia rápido demais.- Rose!
Conforme subiam, Luke reparava que não tinha um mísero guarda pelos corredores. Ninguém para a ajudar a deter do que faria.
— Rose! Fala comigo!- Insistia, quase tropeçando em um tapete estendido.
Por um segundo passou em frente a uma janela, e viu toda a ala de funcionários da cozinha se deslocando para fora da mansão. Não conseguiu analisar a situação, pois Rose subiu mais uma escadaria.
Luke ia veloz atrás da amiga ruiva, mas ela sempre conseguia ir mais rápido. A única certeza que tinha, é que ela queria dar com aquela marreta suja de sangue na cabeça de alguém. E se tentasse novamente a segurar, seria a sua.
Ela subia furiosa todas as escadas do castelo, chegando no andar mais alto de todos. A cabeça não pensava mais, como se apenas um ato fosse todo o seu corpo. Precisando executá-lo.
— Rose...- Ela já estava no final do corredor, abrindo uma porta.
Ela enfim entrou no cômodo que tanto queria. Aquele em que viu a babá levar o bebê.
Foi direto para o berço, vendo aquela que tentou usar como moeda de troca e não deu certo. Miguel tentou fazê-la de distração, e agora estava morto. Essa criança não servia de nada para ela, só problemas trouxe.
E Dylan não estava lá para vigiá-la no berço, nem seus empregados, muito menos Alan. A pequena Lily ficara sozinha no quarto dourado. E essa era a hora perfeita para a matar.
Rose levantou a marreta, cerrando os dentes, na mesma hora em que Luke chegou na porta. Ia a marretar inteira.
— NÃO!- Ele correu e agarrou seu braço com força, segurando para que não a deixasse acertar o bebê.
— ME LARGA! Ele matou o meu irmão!
— MAS NÃO É CULPA DELA, ROSE! É UM BEBÊ!
— NÃO IMPORTA! É IMPORTANTE PRA ELE! EU QUERO QUE ELE SINTA O QUE EU SINTO.- Empurrou Luke para o chão, voltando a erguer a marreta em cima de Lily que começara a chorar.
— ROSE, PENSA! SE ELA FOSSE TÃO IMPORTANTE ASSIM PRA ELE, VOCÊ ACHA QUE ELA FICARIA TÃO VULNERÁVEL?
Ela respirava ofegante demais, como se o coração estivesse prestes a estourar.
— Ela é só mais uma vítima, Rose. Como eu e você.- Ele se levantou, vendo as lágrimas dela despencaram mais uma vez.
Rose largou a marreta espatifando no chão, e abraçou Luke. As lágrimas que saíam em um soluço alto e triste, foram as piores desde que chegaram ali. A frustração era envergonhada de culpa, de medo.
Aos poucos, foram ouvindo a voz de Dylan cantarolando crescente dentro do quarto. O procuraram em volta, mas ele não estava ali. Era apenas uma caixinha de som, que identificando o choro da criança aumentava até que ela se acalmasse com a voz.
— Vamos embora, vamos?- Luke a persuadia a sair de perto de Lily.- Chega por hoje.
Saíram do quarto arrasados, tentando entender a confusão de sentimentos que se misturavam dentro deles.
Rose ia na frente, desligada com o que tinha a volta. Seu rosto de derrota foi a primeira coisa que Kauan viu ao pisar pela primeira vez no penúltimo degrau para o último andar do castelo.
— O que aconteceu?- Ele perguntou, assim que ia colocar o pé.
Foi o suficiente para Rose reunir o seu ódio num impulso e o empurrar escada abaixo.
— Rose!- Luke gritou com ela, vendo que o menino de cabelo azul despencara.
Ele foi ver se Kauan estava bem, enquanto ela desceu normalmente, passando por cima do corpo dolorido dele, e voltando atordoada para seu quarto.

 

 

Sara repousava a cabeça de Mark em seu colo, terminando de enfaixar a cabeça com um corte grande que tivera aberto. Rafael a auxiliava passando o que fosse preciso. Eram a dupla de médicos pelo visto.
Rebeca se culpou de ter sido insensível e sem percepção do que suas puxadas de assunto poderiam causar em Mark. Não queria que mais alguém surtasse daquele jeito, então se calou o tempo inteiro.
— Pronto.- Sara finalizou.- Vamos torcer pra ele só acordar daqui umas horas.
O clima ficou pesado depois daquilo. Não se falaram muito mais. Apenas aguardavam ansiosos pela volta dos dois homens. Lídia já se mostrava em sinais de arrancar os próprios cabelos.
Felizmente, trinta minutos após toda a confusão, ouviram passos ecoando pela caverna, e viraram a cabeça para a escuridão. De repente, Jason e Daniel emergiram do breu, cansados da cabeça aos pés.
Lídia abraçou o marido com força, e Sara se levantou para receber o homem morto.
— Ouvimos gritos, o que aconteceu?- Jason viu Mark desmaiado com a faixa na cabeça.
— Primeiro vocês quem dizem. E aí, tem saída?- Rebeca perguntou.
Todos os quatro aguardavam a resposta que mudaria suas vidas. Tinham medo do que pudesse sair daquelas bocas.
Jason e Daniel se entreolharam, tomando a decisão de quem falaria. Daniel deu a palavra para ele sem resistência.
— Tem um quebra cabeças na parede. Acho que ele abre uma saída.
Jason tinha salvo suas vidas.

 

 

Se olhava no espelho fixamente há quinze minutos. Já cansada de olhar para a imagem de uma garota chorona toda suja, seu reflexo se transformou em um monstro distorcido.
A água da banheira já transbordava para fora, molhando todo o banheiro e começando a invadir o quarto. Mais água continuava saindo da torneira, sem trégua.
Ela se levantou da penteadeira, caminhou até o frasco de remédios no chão e o pegou. Tinha amassado seu recipiente quando o tacou longe, mas as pílulas dentro continuavam intactas, prontas para o uso.
Rose despejou todas em sua mão e enfiou na boca, engolindo a seco vinte comprimidos.
Não chorou ao aceitar a morte. Estava seca de qualquer coisa amais para chorar. Não tinha mais porquê viver.
Se direcionou ao banheiro, e viu a si mesma na água. Não reconhecia aquela garota ali, não se parecia com ela. A memória que tinha da antiga Rose era de uma adolescente normal, feliz e brigando com seu irmão e seus pais constantemente, porém com amor no fim do dia. Nunca mais teria aquela vida de volta.
A sonolência começou a fazer efeito em seu corpo, era o despertar que precisava para iniciar a entrada na água fria.
Não se despiu, não queria que a encontrassem nua, mesmo que após morta pouco importasse o que fizessem com seu corpo. E já coberta pelo líquido, fechou os olhos e deixou a mente liberta. Livre de Dylan, livre dos jogos, livre das mortes. Simplesmente livre.
Sua cabeça foi deslizando aos poucos para dentro da água, até estar completamente dentro dela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luke limpou as lágrimas antes de sair de seu quarto, não queria ser frágil na frente de alguém numa situação como aquela, que talvez precisasse de um abraço de segurança.
Ele foi até a porta do quarto dela, receoso em chamá-la. Entretanto tinha que ver como estava.
Notou que um líquido começava a sair pela fresta embaixo da porta, batendo nela na tentativa de obter resposta.
— Rose? Sou eu.- Dizia, continuando a bater na madeira.
A preocupação tomou conta de sua mente. Não tinha motivos para estar vazando água de seu quarto.
— Eu vou entrar!- Ele rodou a maçaneta e a procurou dentro do quarto, não a achava. Seu piso se encontrava molhado.
Luke entrou nos aposentos dela, e a primeira coisa que reparou depois da porta do banheiro aberta, foi o frasco vazio em cima da cama.
— Rose!- Entendeu o que ela tinha feito, correndo para onde toda aquela água vinha, o banheiro.- Meu deus!
Todo o lugar estava alagado, e dentro da água o corpo de Rose parecia sem vida. Não sabia há quanto tempo ela tinha se afogado.
— Não! Não! Não! Não morre, por favor!- Ele a arrastou para fora da banheira o mais depressa que conseguiu, a colocando no chão.- Eu preciso de você, por favor!
Abaixou-se junto, a deixando deitada ao lado. Começou a apertar seu peito, pressionando com as mãos, mas não sabia como fazer funcionar. Pôs o dedo no fundo de sua garganta, rezando para que fizesse algum efeito. Não podia perder Rose.
Ela acordou vomitando um monte daquelas pílulas que usou para dormir.
— Rose!
Ela tossia, tremendo de frio e continuando a vomitar. Luke estava aliviado, Rose estava viva. Mas aquela pessoa em cima dele completamente molhada não era mais ciente de si. Precisava cuidar dela. Novamente houve vômito.
— Eu quero morrer! Por favor!- Clamou aos soluços, respirando pela boca.
Ele a abraçava, no meio do molhado. Exaustos da pior noite de suas vidas.

 

 

 

 

 


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