Vazio escrita por AntareElAmore


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Yoo~

Bem, acho que tudo que tinha que ser dito já foi dito no começo. Então...boa leitura! :D



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   Silêncio. Muito silêncio. Um hall tão grande e cheio de atrativos estava vazio. Vazio de sentido, de sons. A única coisa que era possível escutar eram sons dispersos. Água escorrendo de uma pia e descendo até onde a vida pudesse levar. Tintilares finos e agudos, porém baixos. O barman lavando os copos sequer se lembrava de uma sensação vazia como essa, mesmo não havendo nada de estranho pra se sentir. Afinal, era o seu trabalho. Vive com isso desde que se lembra de existir. Ainda assim, tinha um calor junto com ele. A manequim bem vestida lhe trazia memórias de bons momentos. Os pequenos bonecos de pano nas mãos dela explicavam essas memórias. O quadro abstrato de uma beleza única acima dela apresentavam essas memórias. Era um luxuoso bar, vazio de sentido, de sons...porém não de vidas.

  Era apenas a preparação. Um novo convidado logo chegaria e tudo tinha que estar nos lugares e correndo bem. Jogos com a vida e vidas em jogo. Era tudo que se tratava o Queendecim:

   - Estou pronto. Pode mandar as memórias.

   No instante em que terminou a frase, imagens transbordaram dentro de sua mente. Aquele barman de cabelos alvos e pele pálida perdia por um pequeno instante sua concentração. Eram imagens demais para se processar. No entanto, algumas eram familiares, quase como um dejá vu. Foi por um instante, mas era tudo o que precisava pra entender o que teria de enfrentar:

   - *Não pode ser...!*

   A campainha do elevador tocava. O convidado chegou. O homem ainda tinha que manter a compostura. Parecer o mais real possível. Todas as peças tinham de estar em seus respectivos lugares. E a última acabara de chegar:

   - Muito obrigado por vir. Seja bem vinda ao Quindecim. Eu sou Decim, o barman deste lugar.

   O barman repetia suas mesmas palavras que todos uma vez já ouviram ou um dia em suas vidas ouvirão. A convidada era uma só: uma mulher atingindo o início da fase senil. Vestes simples de uma moça, poucas rugas no rosto e um cabelo escuro, começando a se acinzentar. Mesmo com sua idade, ainda era bonita. Decim reconhecia aquela beleza. Um fato mortal para um Juiz:

   - Que lugar é esse? – A mulher olhava, estranhada de tanto luxo ao seu redor.

   - Eu irei lhe explicar tudo. Por favor, sente-se.

   Ela se sentou em frente ao balcão da entrada. Ainda não se acostumou com tudo que via. Esperava algo acontecer. Olhava e olhava, procurando algum ponto de repouso e seguro:

   - Antes de mais nada, eu devo lhe perguntar: você se lembra de algo antes de vir pra cá?

   - Não. Por mais que eu tente, não consigo me lembrar de nada. Que estranho...

   - Muito bem. Espere um instante.

   Decim foi para baixo do balcão, procurando algo. A mulher ainda estava distraída, mas dessa vez em uma coisa apenas: o manequim de uma mulher segundo 2 pequenas pelúcias, bem ao lado do balcão. O quadro acima dela também lhe chamava a atenção. Eram bonitos. Por mais que o Quindecim fosse por inteiro uma obra de arte, naqueles dois enfeites apenas ela sentia uma empatia. Um senso de preocupação. De humanidade e conforto.

.

   Quando ele voltou para sua posição, se deparou com a mulher olhando para o manequim, sorrindo. Ele suava frio por dentro. Era mais do que prova que o trabalho seria complexo:

   - Algum problema, senhorita?

   Ela sorriu muito, rindo um pouco:

   - Ah não, não se preocupe. É que eu achei aquele manequim tão bonito. Parece que foi feito apenas para ficar lá, como uma maneira de nos confortar.

   - Entendo. A maioria dos convidados tende a observa-lo algumas vezes.

   - É tão bonita. Eu consigo ver a delicadeza nela. Fica bem agradável aí. Tão agradável que parece até familiar.

   E observava mais. Alegre e radiante. Sua idade apenas a fez ser uma pessoa ainda mais amorosa com relação a esses pequenos detalhes. E Decim estava apenas lutando para manter a compostura:

   - Senhorita, poderia me dizer seu nome?

   - Ah sim! Que rude da minha parte. É Yumi. – A mulher respondeu, com o mesmo humor de antes. Mas algo ainda assim lhe soou estranho. Lembrar apenas do seu nome e de mais nada.

   - Muito bem, Yumi. Por favor, aperte este botão.

   Colocou o dispositivo na mesa, enquanto a tela para que se escolhessem os jogos descia. A mulher não entendia nada e perguntava:

   - Pra que isso?

   - Iremos jogar um jogo. Para isso, você deve apertar o botão e veremos o jogo que vai ser.

   - ...Certo.

   Ela não perguntou. Apenas apertou o botão e esperou o jogo ser mostrado na tela. Decim nem ao menos começou o processo normal do julgamento e já sentia coisas muito estranhas na convidada. Não perguntar as consequências do jogo...era raríssimo. Será que era confiança excessiva em Decim? Ou talvez em si mesma?

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   A tela então mostrou qual seria a atração de hoje: Jogo da Vida. No mesmo instante, o bar magicamente mudava o hall de entrada pra se transformar em uma pequena bancada, com apenas uma cadeira. Encima da bancada, um tabuleiro já montado, com 5 dados de seis lados precisamente alinhados:

   - Por favor, sente-se próximo à bancada.

   - Uau, eu não deixo de me impressionar com esse lugar!

   Sentou-se em frente ao tabuleiro, observando-o. Tinha o desenho de nuvens por ele inteiro. O começo era claro e radiante, porém a medida que se seguiam as casas, elas escureciam e se tornavam mórbidas. O nome do jogo era autoexplicativo: o começo e o fim. A vida e a morte:

   - As regras do jogo são simples. Há 15 casas percorrendo o tabuleiro todo e você terá direito à 5 rodadas, cada uma jogando um dado. Em cada casa, haverá algum efeito que poderá tanto lhe prejudicar quanto ajudar. Você apenas saberá o efeito na hora em que parar nessa casa. Chegue até o final usando os 5 dados oferecidos e ganhará. Caso o contrário, perderá.

   Ao terminar a explicação, uma pequena peça de ludo surgiu na primeira casa do tabuleiro. Ela era parecida com Yumi, que adorou aquilo:

   - Que bonitinho! Mas me diga, o que acontece se eu perder o jogo?

   Ah, a pergunta de um milhão de dólares:

   - Eu não posso responder isso. Me desculpe.

   - Tudo bem. Não é como se fosse algo de muito ruim, não é mesmo? E também, faz tempo que não jogo algo assim. Acho que vai ser divertido.

   Talvez a idade da quase-senhora veio com a melhor combinação de seu bom humor e sabedoria. Realmente, nada de muito ruim aconteceria dali pra frente. Até porque, a pior parte já passou. Ela apenas não se lembrava:

   - Muito bem. Pode começar a jogar.

   A mulher estava confiante. Pegou o primeiro dado, fechou bem a mão e o jogou. No entanto, algo foi muito estranho. No momento em que soltou o dado, algumas coisas lhe vieram a cabeça. Vozes, propriamente ditas.

“Ei, isso não é justo!”

“Você sempre tira números bons”

“Vamos querida, não há porque ser tão competitiva”

“Se você perder, vai ter que ler uma história pra mim!”

   - Algum problema, senhorita?

   - N-Não, foi só uma dor de cabeça. Não se preocupe.

   Começou. Decim não podia demonstrar nenhum envolvimento com aquilo e nisso era especialista. Nenhuma vez se importava muito com os convidados se lembrando de tantas memórias, mas desta vez era diferente. Ele também iria se lembrar de coisas maravilhosas e dolorosas.

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   O dado parou. Um 4 aparecia para ela. Ela, fazendo o máximo de esforço pra tentar entender o que eram as vozes em sua cabeça. As vozes de uma garota. Moveu sua peça adiante. Ao repousar ela na casa, uma mensagem apareceu, no meio do ar, encima do tabuleiro

.

“O começo amadurece e te incentiva a nunca parar. Avance 2 casas”

.

   - Ahahaha! Que ótimo.

   Yumi logo não se preocupava mais com tanta coisa. O prazer era o melhor remédio da alma, afinal. Decim se mantinha neutro. Era seu trabalho apenas observar. Estendeu a mão, pedindo para que jogasse mais um dado. Fez o mesmo ritual de antes. Era um jogo curto, e avançando tão rápido apenas a incentivou. Dessa vez, o resultado foi 1. Foi meio decepcionante, mas era o jogo. Avançou e logo surgiu mais uma mensagem:

.

“A vida solitária é triste. Dar um tempo para nós e dá-lo também aos outros. Perca 1 dado”

.

   Não demorou muito pra mais vozes e momentos retornarem à sua cabeça

“Acho que o casal terá um presente a mais nesse natal”

“Vai ser uma menina”

“Que nome daremos para ela?”

“Ela vai se chamar...”

 

   E pararam. Ela se lembrava de algo crucial para sua vida. Mesmo assim, ela riu um pouco. Estava sozinha com Decim naquele bar, mas tinha alguém para quem voltar. Agora se lembrava de quem eram as vozes. Ela tinha uma filha, que precisava ser cuidada. Poderia nesse momento estar sentindo falta da mãe. Poderia estar com fome. Que mãe seria se deixasse a filha nessas condições? Mesmo assim, ria. Decim então lhe questionava, com boas intenções:

   - Algo lhe perturba, senhorita Yumi?

   - Não, não. É apenas que eu tenho que voltar para casa logo. Tem gente me esperando lá.

   - Entendo.

   Decim entendia bem o sentimento, mesmo nunca passando. Contar os convidados que tinham um motivo para voltar era como contar estrelas no céu. Ou o tanto de manequins que o barman já fez em sua...vida. Um dado foi tirado do jogo. Apenas dois restaram. Ela segurou um deles, com um sincero sorriso no roso, perguntando:

   - Decim, você já jogou isso?

   - Não posso dizer que tenha jogado ou não. Mas porque a pergunta?

   - É porque quando era mais nova, costumava jogar com minha filhinha. Ela sempre reclamava como eu era boa nos dados e ganhava muitas vezes. Um dia fizemos uma aposta e então eu perdi. Desde então, eu tinha que ler a história que ela quisesse quando ela quisesse.

   -...Entendo. – Se ressentia. As memórias da mulher também afetavam as suas.

   - O que eu quero dizer é que esse tipo de jogo com apenas eu no tabuleiro é chato. Eu gostaria de ter um motivo para sentir que devo ganhar ele. Tenho que voltar pra casa ou então não vou conseguir manter a promessa pra minha filha de ler pra ela.

   Decim ficava quieto. Falar qualquer coisa agora seria entregar o ouro a Yumi. Não demorou muito até que ela fizesse a proposta:

   - Então vamos fazer uma aposta.

   - Uma aposta? – O barman estava curioso.

   - Sim. Se eu ganhar este jogo, você me deixa voltar a ver a minha filha e cumprir a minha promessa.

   - E se perder?

   - Hmm...bem, se eu perder, eu deixo isso nas suas mãos!

   - Muito bem. Eu...aceito seu desafio.

   Foi provavelmente uma das escolhas mais difíceis de Decim. Fazer Yumi ver novamente a sua filha, sendo que ambas estão tão longe uma da outra. Se lembrava do seu trabalho como Juiz. Consistia nada menos que persuadir, enganar e por fim julgar. Se perguntava se nesse momento estava exercendo sua função como o maior êxito do mundo ou a pior das falhas.

.

   Yumi jogou o dado. Depois desse, tinha apenas mais um para poder ganhar. Ele rodava muito. O tempo andava devagar enquanto os números giravam. Ambos na torcida para algo que pudesse lhes ajudar. Uma pena que fossem coisas diferentes que dariam satisfação para cada um. Ao final, a surpresa. Um 6 virado para cima. O maior valor que podia tirar. Ela seguiu, alegre, 6 casas com sua peça. Ao pisar lá, sua felicidade foi preenchida, coberta, sequestrada pelo desespero fugaz...

.

“As tragédias tomam o seu lugar e sua alma anseia por nostalgia. Retorne 3 casas”

.

   ...e com ele mais uma vida que dança nas mãos do julgamento.

“Ela nunca mais voltará a ativa”

“Me deixe sozinha e vá embora...”

“O que vamos fazer com ela? Ela não pode ficar deprimida assim!”

“Não...! Abra a porta, Ch...!

   Yumi estava respirando pesado e suando frio. E o pior de tudo, estava chorando. As lágrimas não paravam de sair do seu rosto. Sua mente travava, ligando os borrões de imagens que pôde ver com as vozes dispersas que entravam na sua cabeça. Uma história se formava. Uma vida ali renascia. Decim apertava os punhos. A pessoa que lhe ensinou a amar e se importar agora teria uma parte em todo esse julgamento:

   -...Ei.

   - Qual o problema, senhorita?

   - Eu me esqueci. Eu nunca mais seria capaz de ver minha filha...ela se foi...

   Mais lágrimas corriam de seus olhos, Ela colocava as mãos no rosto, tentando esconder. Tentando se esconder:

   - A parte engraçada é que...eu também me fui, não é? Eu já morri, não é mesmo?

   - ...Sim. Você se foi há pouco tempo. Está aqui para ter sua alma julgada. Essa é a minha função.

   Yumi começava a rir deliberadamente, desesperadamente. Uma enorme piada de mal gosto, mas, como toda piada assim, ela brincava com tragédias:

   - Ahahaha. Eu prometi uma coisa pra minha filha e ela foi a primeira a quebra-la. Ainda assim, eu vivi como se ela ainda estivesse viva, do meu lado. Como se ela nunca tivesse ido embora daquele jeito. E eu vivi assim...até o dia que tudo acabou.

   Decim não suportava ver ela naquele estado. Um deja vu, isso era. Mãe e filha, passando pelo mesmo processo doloroso, se segurando ao máximo pela sua vida e pela chance que nunca viria de emendar os erros de cada uma. Decim respirou fundo. Seu processo inteiro foi cuidadoso e bem calculado. Nem todas as lembranças estavam claras na mente de Yumi:

   - Por favor, jogue. Ainda há um dado sobrando.

   Yumi olhava para ele. O próprio barman estava com uma feição dolorosa. Estava vendo um espelho de si mesma no juiz. Isso só piorava. Mas enquanto se está perdida no labirinto, a mínima das pistas de saída era uma esperança:

   - E por acaso vai fazer diferença se eu ganhar ou perder...? Estou morta, não é mesmo?

   - Você fez uma aposta. Peço que siga com ela até o final.

   - O que você quer...?

   - Ainda faltam coisas pra você se lembrar. Quer mesmo seguir sem nem ao menos saber o que elas são?

   A mulher se impressionou pelas palavras do barman. Parecia muito mais sábio e empenhado no trabalho de juiz do que esperava. Eram palavras que moviam. Era uma pessoa que movia. Era como...a vida.

.

   Yumi pegou o último dado em suas mãos. Segurou forte. Era ele que poderia decidir saber ou não tudo sobre sua vida. Sua morte. Ela olhava para Decim. Com um movimento de cabeça, a incentivava continuar o jogo. Olhava novamente para o dado. Limpava as lágrimas do rosto e jogou. O resultado foi...4. Ela parou na penúltima casa do tabuleiro. Vagarosamente, colocou sua peça naquela casa. Quando tocou, ela finalmente agora se lembrava de tudo

“Mamãe, lê esse livro pra mim?”

“Chavvot, filha? Mas eu já li ele pra você tantas vezes”

“Eu ganhei mamãe! Eu ganhei!”

“Sim. Ótimo trabalho, Chiyuki!”

 

   “Chiyuki”. O nome que estava faltando em sua mente. O rosto que estava faltando em seu coração. A garota de negros cabelos escuros e lisos, patinando no gelo com graciosidade e acuidade. Yumi estava com o rosto baixo. Sua vida inteira agora se encaixava. Cada passo, cada etapa, cada palavra proferida agora se voltava a ela, envolvendo-a em uma sensação amarga. Seu coração doía por se lembrar e sentir. Decim podia dizer o mesmo sobre si:

   - Senhorita Yumi, por favor, olhe a mensagem no tabuleiro.

   Lentamente, subiu a cabeça e então leu as poucas e fortes palavras:

.

“Ainda não é o fim. Lhe resta apenas seguir. Avance 1 casa”

.

   Era a vitória, ainda sendo apenas uma constatação que agora era óbvia, porém na vida é o maior mistério que se podia imaginar. Algo depois da vida e da existência. Ninguém nunca voltou para poder contar do que seria. Yumi simplesmente pousou a sua peça na última casa, apenas tendo como recompensa um vazio parabéns. Nem mesmo Decim sentiu a necessidade de bater palmas após um tenso jogo. Era mais do que silêncio que precisava agora. Ninguém venceu ou perdeu. Foi apenas o fim de uma vida, nada mais. A solene morte exige silêncio.

.

   Yumi se levantou. Olhou para Decim, mas sua atenção estava totalmente voltada para o manequim sentado atrás dele. Passou pelo barman e foi em direção a sua filha. Ou o que costumava ser ela. Segurava as mãos, passava os dedos pelo seu rosto, seu cabelo. Apenas um manequim, sem reação, trazendo tranquilidade para um coração amargurado. Yumi viu também as duas pelúcias em sua mão. Eram as personagens do livro favorito de Chiyuiki:

   - Foi você que fez isso? Fez ela desse jeito? – Perguntou para Decim, com algumas lágrimas nos olhos ainda.

   - Sim. A senhorita Chiyuki foi uma de minhas convidadas ao Quindecim. Passamos um tempo juntos, com ela sendo minha assistente.

   - Alguém por acaso pergunta sobre seus manequins?

   - A maioria evita por medo. Todos eles são de convidados que passaram por aqui. Você é a primeira pessoa a reconhecer um deles.

   - Entendo. Devo agradecer por isso. Se não fosse por você, nunca mais veria minha filha de novo. Estava com saudade.

   “Saudade”. Uma palavra nova para Decim, que atingia o seu peito como uma flecha. Porque fazia todos aqueles manequins? Porque deixava justamente o de Chiyuki ao seu lado nos julgamentos? Será que era por saudade? Por medo de se sentir sozinho. “Sozinho”...

.

   Decim foi para trás do balcão, procurando por algo. Yumi ficou um tempo com o manequim, matando saudades de sua filha, tentando se segurar à coisa que sua vida dependia. Um minuto depois, Decim coloca a mão no ombro da mulher:

   - Está aqui.

   Ele estava oferecendo algo para Yumi, que logo arregalou os olhos. Chavvot. O livro preferido da filha. Aquele que a incentivou a encontrar sua maior felicidade e tristeza. Decim completou sua oferenda:

   - Você venceu a aposta. Poderá reencontrar a senhorita Chiyuki e cumprir sua promessa de ler para ela.

   Yumi segurou sua voz com as mãos. O choro porém corria pelo seu olhar. Abraçou aquele livro com o máximo de suas forças e logo após abraçou Decim, em um ato forte e sincero de agradecimento:

   - O-Obrigada! Obrigada por cuidar da minha filha enquanto eu não estava aqui para ela! Eu sou a mãe dela e deveria fazer isso e não fui capaz...!

   Decim retribuiu o abraço. Chiyuki o ensinou a sentir a empatia que lhe faltava como um juiz. Isso o deixou mole como juiz porém muito mais forte como pessoa. Após conhecer a jovem assistente foi quando percebeu que apenas a vida pode julgar a vida, mesmo que Decim ainda estivesse longe de ser um boneco como os que fez.

   Yumi puxou um banco, sentou-se ao lado do manequim de Chiyuki e leu aquele livro, com a alegria e prazer de como se fosse a primeira e última vez. Se lembrava dos olhares da menina para as palavras, os personagens. A fascinação de uma criança é algo que ia além da compreensão de Decim, que assistia a mãe lendo. Era apenas o descobrimento, uma formação, incapaz de ser julgada sem um veredito feito pela metade. Imaginava como a garota que trabalhara ao seu lado seria quando mais jovem, descobrindo o mundo. O mundo...era um mistério para o Juiz:

   - Então, é isso.

   Yumi terminara de ler o livro para o manequim, que se mantinha sem reação. A mãe ainda sentia como se estivesse ao lado da filha mais uma vez. A vida e a morte, juntas para desatar nós não resolvidos, porém, sem nenhuma das partes escutar a outra. Doía para o juiz ser obrigado a iludir almas a fim de julga-las, mas era ainda mais doloroso ver elas mesmas se iludindo por apenas mais alguns momentos de vida. Yumi se levantou, deixando o livro em cima do balcão, dizendo:

   - Bem, eu acho que é isso. Tenho que ir agora.

   Decim se curvou, explicando:

   - Muito bem. Me siga.

   Ambos andaram devagar até o caminho dos elevadores que ela chegou ao Quindecim. No meio do caminho, Decim, sem conter sua curiosidade, perguntou:

   - Senhorita Yumi, se me permite, poderia me responder uma coisa?

   - Claro. Sou toda ouvidos.

   - A senhorita por acaso se arrepende de ter vivido?

   Era uma pergunta complexa e Decim foi preciso ao faze-la. Sabia que Yumi seria a única pessoa capaz de poder responder algo justamente pelo tanto que ambos conheceram Chiyuki e poderiam dizer o tanto que ela viu da vida e da morte:

   - Sabe...tem horas que quando você vive você se arrepende muito de ter feito as decisões que fez e de estar viva. Há dias em que você se sente que seu lugar no mundo acabou e que agora é a hora de partir. Que você não vê valor para a sua vida...

   - Entendo... – Decim ouvia cada palavra atentamente.

   - Mas sabe, acho que foi apenas vivendo que eu tive a chance de experimentar a felicidade de ter uma família, amigos e memórias. Então, eu não me arrependo nem um pouco, nem mesmo dos momentos ruins. Eu fico feliz por ter vivido porque...

   Decim estava olhando focado para ela. Viu ela dar um sorrisinho até finalmente responder:

   - ...porque assim eu tive a chance de morrer e conhecer você, rever a minha filha e entender o quanto minha vida teve significado!

   Decim se engasgou. Nunca viu alguém encarar a morte de uma maneira tão positiva. Ele mesmo tinha medo do que a morte poderia ser pois nunca seria capaz de presencia-la. Ouvira apenas histórias e suposições desse mistério e somente isso. Se nunca morreria...era um sinal de que nunca iria presenciar a vida. Estava um pouco orgulhoso, já que Chiyuki provou o contrário a ele, anos atrás.

   Chegando ao elevador, uma das portas estava aberta. Decim apontou para ela e pediu:

   - Por favor, entre. Aqui é onde você irá.

   Yumi olhou as figuras, em ambos os elevadores. A máscara de um anjo, ao lado de uma de demônio. Ela apontou e perguntou:

   - Para onde essa me levará?

   Decim era proibido de contar mais detalhes, mas era incapaz de esconder algo da mãe da Chiyuki:

   - Um deles te levará para a Reencarnação, onde irá tomar uma nova vida, com novas memórias no seu mundo. O outro te levaria ao Vazio, onde sua alma seria perdida para sempre, dando lugar para outras surgirem.

   - Eu fui escolhida para reencarnar, não é?

   - Precisamente.

   - A minha filha...qual foi o destino dela?

   - Há alguns anos, eu efetuei o julgamento de Chiyuki e ela reencarnou. Para ter uma chance de poder lhe ver novamente, no mundo dos vivos.

   Uma fina lágrima corria de um dos seus olhos:

   - Entendo...uma pena então...

   Ela estava de cabeça baixa. Decim ficou intrigado pela última constatação e não se conteve:

   - Por que uma pena? Você poderá vê-la se reencarnar.

   Ela abaixou a cabeça, em silêncio. Fechava os olhos e pensava na filha. Pensava em cada pequeno momento que a fez segurar tão forte em sua vida e motivou a mãe a ser alguém e não apenas algo que passou no mundo:

   - Decim...eu tenho um pedido a lhe fazer.

   O barman apenas olhou, esperando a mulher dizer o que ela queria. Dentro dele, sabia que algo ainda desconhecido estava por vir:

   - Eu quero que você me leve ao Vazio.

   - O-O que...?!

   - Por favor, me condene ao Vazio e não a Reencarnação.

   Decim ficou perplexo foi a primeira vez que viu alguém querer, voluntariamente, se jogar ao abismo do Vazio. Até mesmo os juízes tinham pavor do que esse lugar era capaz de proporcionar. Deixar de existir...isso é loucura:

   - Mas por que está me pedindo isso?! Não quer rever a Chiyuki?

   Yumi agora estava chorando muito:

   - Eu quero! É a coisa que eu mais quero no mundo! Mas...se eu interferir no caminho dela, ambas iremos voltar aqui, com os mesmos erros de antes.

   Decim não acreditava no que ouvia. Era exatamente como mostrou para a assistente na reta final de seu julgamento. A culpa. O sentimento mais corrosivo e ardente que se podia encontrar no ser humano. Agora não era mais o Juiz. Pela primeira vez depois de tanto tempo, agiu como Decim:

   - Isso não é verdade! A senhorita Chiyuki disse para mim mesmo que você não foi a culpada pela tragédia! Que foi tudo uma corrente de mal entendidos atrás de uma resposta para problemas simples enquanto a única solução era pedir desculpas ainda em vida!

   - Desculpas não trazem a vida de volta, Decim! O que você entende sobre isso?! Minha filha viveu um sonho até o dia em que sua carreira desabou embaixo dos seus pés! Por que a mandou para aquele mundo de novo?!

   Decim colocou as mãos nos ombros de Yumi, falando em voz alta:

   - Porque eu confiava nela! Ela me ensinou a viver, então tem o total direito à vida! E também...porque ela confiava no meu julgamento...mesmo comigo errando tantas e tantas vezes...

   Decim estava perdendo o equilíbrio da voz. Seus sentimentos falavam mais alto que sua razão. Yumi não sabia que o juiz tinha sentimentos tão fortes pela filha. Ver um homem a princípio gelado sentindo tanto remorso ao tocar no assunto de sua filha foi talvez a prova que precisasse para compreender o quão especial sua menina foi para Decim. Yumi o abraçou suavemente, dizendo:

   - Eu também confio em você. Confio no bem que você fez à minha filha ao manda-la de volta para vida. Mas agora ela cresceu e deve desbravar aquele mundo com suas próprias asas. Não adianta nada eu ter de esperar um julgamento de outras pessoas quando eu mesma sei o que quero e mereço. Eu iria apenas cometer os mesmos erros toda a hora. Por favor...atenda este pedido de uma velha mãe. Me deixe finalmente descansar em paz...

   Decim não se movia. Automaticamente, a porta do elevador se fechava, enquanto o outro subia:

   - ...Obrigada.

   - A senhorita Chiyuki...falava muito bem de você. O quanto foi especial o seu papel na vida dela...

   - Entendo. O que mais ela falava?

   - Ela dizia que enquanto eu estivesse aqui, para receber os convidados...com um sorriso.

   Yumi riu um pouco:

   - Parece que essa parte você não aplicou muito bem hoje.

   Ela se soltou de Decim, e o olhou diretamente no rosto, pedindo por um sorriso. Decim ainda não estava muito acostumado com uma pratica tão...humana. Respirou fundo e sorriu. Saiu um sorriso estranho, porém, já que Decim era um sujeito estranho, não foi surpresa. Yumi gargalhou por uns instantes:

   - Algum problema...?

   - Ahahahaha, Decim, você deveria sorrir mais vezes! É um rapaz charmoso demais para ficar com aquela cara de peixe morto.

   O juiz voltou a ficar normal, agradecendo com uma faísca de dúvida consigo:

   - Muito obrigado pelo...elogio.

   Com isso, o elevador do Vazio chegou. Ambos se olharam e Yumi entrou, silenciosa lá dentro. Ficaram frente a frente, um para o outro. A porta se fechava devagar. Decim não acreditava naquilo. Era a mesma cena de anos atrás, com outra pessoa, que lhe ensinara mais sobre a vida. Ele não podia achar que era um convidado qualquer. Não mais. Ele...sorriu como nunca antes, pela segunda vez em sua vida. Chiyuki ficaria decepcionada se não o visse desse jeito:

   - É isso então...? Decim...

   - Sim?

   - Se ver minha filha novamente, diga a ela que a amo muito...e que peço desculpas por não poder ajuda-la.

   - Será feito.

   - Entendo

   Yumi notou o sorriso no rosto do barman. E era engraçado. Via sua filha no rosto daquele homem. De fato, como a final lembrança de sua alma teria o espírito da filha estampado no coração de outra pessoa. Ela estava feliz:

   - Então...

   Apenas uma pequena fresta os separava:

   - ...adeus.

   E as portas se fecharam, com o elevador imediatamente descendo para o vazio. Decim ficou parado, esperando algo que nunca viria. Almas são efêmeras e o tempo dos juízes com cada uma delas também é. Talvez isso fosse o que diferenciasse Decim dos outros juízes: ele se apegava às memórias e ao curto tempo com seus convidados. Agora, acabou. Mais um julgamento efetuado.

.

   Ele voltou para o balcão, preenchido de sentimentos estranhos. Ele olhou para o jogo da vida, pegou a peça de Yumi em suas mãos e a colocou na primeira casa. A peça não tomou a forma de nada nem ninguém. Ficou plana, sem nada de especial. Decim pegou um dos dados e o jogou. O resultado foi 3. Avançou as casas e logo depois foi para a frente do balcão, onde perdeu o controle e bateu com a mão nele. Estava furioso consigo mesmo. Ele sabia que o que fez hoje foi uma catástrofe para todo e qualquer tipo de julgamento. Ele mesmo não fez nada, apenas atendeu o pedido de uma pessoa. Estava começando a perder de vista o sentido de sua função. E o pior, concordava com Chiyuki: os juízes não tem a menor moral de julgar uma vida que nunca tiveram. Ele criava manequins, colocando o pouco de emoção e significado que tinha dentro de si. De tanto criar memórias artificiais de vidas reais, ele se destruía. Sentia que se isso continuasse, se tornaria apenas um deles. Um boneco. Talvez a vida não precisasse de nenhum juiz, mas que cada um tivesse sua própria noção de um juízo final. Que sua vontade de viver não ultrapassasse a vida de mais ninguém. Aqueles que compreendiam isso são merecedores da reencarnação. Mas há aqueles que não querem isso. Querem apenas descansar. Decim não sabia o que iria lhe esperar ao final de seus dias. Quem o julgaria? Para onde iria? Esses pensamentos estavam destruindo-o por dentro. Atrás, no tabuleiro, havia talvez a mensagem que ele mais precisava ler. A mensagem que todos mais precisam ler e apenas a compreendem quando colocam os pés no Quindecim para encarar seu destino:

.

“Sua vida é preciosa. Cada pequeno passo deve ser aproveitado sem medo. Volte para o início”

  O bar estava vazio se sentidos, de sons, mas não de vida.


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Notas finais do capítulo

Bem, é isso...Confesso que Death Parade foi um anime que me moveu de uma maneira muito intensa. Levantou questionamentos e reflexões que nunca achei que fosse tocar na minha vida. É uma obra que merece o reconhecimento que tem e um pouco mais. Essa foi a minha maneira de mostrar o tanto que sou grato a ela.A vida é importante, pessoal. Ela é um presente com coisas maravilhosas para nos. Nunca se esqueçam, nem no final dela.Espero que tenham gostado e muito obrigado por lerem! ^_^



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