A Lagarta escrita por Vatrushka


Capítulo 8
Memórias - Parte 1


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo ficou meio grande... Mas tudo que eu coloquei nele é importante pra história. E ainda tive que dividir em duas partes, eim? Aproveitem!



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Lana se lembrava de tudo com exatidão. Tinha apenas 8 anos quando acompanhava seu mestre em uma viagem à outras aldeias da Floresta. O feiticeiro gostava de fazer uma trilha assim ao menos uma vez ao ano. Não apenas para comprar mais utensílios ou ingredientes de magia, mas também para reatar os laços com conhecidos e ajudar quantas flores conseguisse.

E para receber mais notícias de primeira mão, logicamente.

"Os camponeses não estão em uma boa situação no momento, Lana." Ele disse, uma vez. "Parecem ter esquecido deles com frequência, na última dinastia... E temo que a situação deles não vá melhorar tão cedo."

Pode-se dizer que, dentre tantas as coisas que aprendera com seu mestre, ser benevolente com as Flores fora uma delas.

Em um dia desta viagem, estavam caminhando pelo mercado. O mestre entrou em um estabelecimento qualquer, mandando Lana esperar do lado de fora. A criança sentou na fonte do centro da praça, admirando a movimentação de mercadorias.

Seu olhar foi atraído para um beco escuro. Perdida em seus pensamentos, encarou-o fixamente. Pulou de susto quando, do breu, surgiram dois olhos intensamente violetas que a estudavam atentamente.

Recuperada do evento, voltou a olhar para o beco. Dele saía um moleque da sua idade, mas seus olhos não lhe davam mais importância.

O garoto claramente não era um flor. Traços de aparência exóticos, como a cor violeta de seus olhos, eram a marca registrada de magos. Seus cabelos eram negros e lisos, e ele se vestia de uma forma diferente de todos ali...

Lana se viu intrigada com a figura. Ele definitivamente não vinha da Floresta. Sua forma de olhar para os lados, gesticular, andar… Movimentos rápidos e certeiros - como se fossem minimamente calculados.

O tal menino andava em círculos ao longo do mercado. Por algum motivo, parecia gostar de se camuflar na multidão. Estreitando a visão, percebeu que uma fumaça roxa parecia sair de suas mãos…

‘Um feiticeiro!’ Concluiu Lana. ‘Eu sabia!’

Mas seu ânimo evaporou no segundo em que viu para quê o garoto usava sua mágica - dom que a garota tanto prezava. Ele roubava um coisa aqui, puxava outra de um bolso ali… E o pior é que ninguém parecia perceber.

‘Ladrão.’ Pensou, sentindo o ódio subir pela sua garganta.

“Ladrão!” Exclamou, para que todos ouvissem. Os olhos do mercado imediatamente se voltaram para a pequena Lana, inclusive os do garoto. Quando viu que ela estava de pé, apontando para ele e repetindo a acusação, o moleque se pôs a correr.

Lana queria que fosse pego, que ele sofresse pelo o que havia feito. Que aprendesse a nunca mais usar magia daquela forma!

O menino esbarrou em diversas pessoas na sua tentativa de fuga. Alguns guardas de Espadas já estavam atrás dele. As flores dali assistiam à cena com expectativa, assim como a garota.

Mas o garoto esbarrou no mestre de Lana. A garota avançou alguns passos para ajudá-lo, mas parou assim que viu o mestre abraçá-lo.

‘Mas… O quê está acontecendo…?’ Pensou a pequena Lagarta, sem entender mais nada. Por quê o menino tinha parado de correr? Por quê ele estava abraçando seu mestre?

E pior, por que seu mestre retribuía?

Ele, ainda abraçando a criança, acalmou a multidão e os guardas. Explicou tudo, alegando que o menino era seu aprendiz, que o puniria pelos seus atos ele mesmo.

Depois que a poeira baixou e todos os itens roubados foram devolvidos, Lana voltou a olhar em direção do garoto. Ele a observava, com um largo e sinistro sorriso.

A garota segurou a raiva. Sabia que seu mestre estava apenas mentindo para ajudar o garoto…

Ou era isso que achava. No dia seguinte, o mestre já lhe apresentava Ghunter, seu novo colega de bruxaria. Tentou discutir, convencê-lo de que era loucura, de que o garoto só estava tentando tirar proveito dele, mas o mestre não acreditou.

Lana teria de aceitar o que o destino havia lhe reservado. A simples presença de Ghunter já a tirava do sério e, diga-se de passagem, ele nunca fez muita questão de colaborar para que isso mudasse.

Anos se passaram. Lana e Ghunter agora tinham 15 anos. A Lagarta odiava admitir, mas Ghunter nunca havia voltado a roubar desde que tinha sido acolhido por seu mestre.

Pelo menos não de uma forma direta a explícita. Lana ainda não confiava muito em algumas brincadeiras e apostas que o Gato propunha para alguns flores da aldeia… Mas desde que não envolvessem o dinheiro de seu mestre, estava tudo bem.

Seu mestre, Martin, fazia o que podia para deixar seus aprendizes mais unidos. Lana entendia, afinal, era comum que aprendizes, após completarem seus estudos, começassem a trabalhar juntos - ou ao menos formassem laços para toda a vida. Muitos se consideravam irmãos.

Mas Lana não conseguia se imaginar assim com Ghunter. Jamais.

A Lagarta sabia que Martin queria que ela cuidasse de Ghunter quando não estivesse mais ali. E sabia também que seu mestre não tinha lá muita coragem para pedir, visto que Lana não aparentava ter desenvolvido empatia alguma pelo Gato.

Por mais que Martin soubesse que, lá no fundo, por trás de toda a impaciência e grosseria, os dois até se aturavam bem.

Ghunter também estava ciente disso. Até fazia algumas tentativas de se aproximar, mas Lana sempre gostara de passar todo o seu tempo livre com Carl e seus irmãos.

O Gato não entendia a fascinação da garota por aquela família tão… Pobre. Pareciam não passar de um bando de descompensados. Uma vez, seguiu-a, na tentativa de descobrir do quê tanto conversavam.

Foi quando descobriu: Carl parecia ser outra pessoa perto de Lana. Era como se ele não tivesse a necessidade de apresentar seu comportamento lunático a ela. Eles conversavam como duas pessoas normais!

Ghunter compreendeu tudo… Considerando que Carl, muitas vezes, tinha de mendigar e fazer apresentações para alimentar seus irmãos, era muito mais eficiente que se passasse por louco.

Ele pensou em pregar uma peça em Lana e Carl ali e na hora, mas logo percebeu que só faria a garota o odiar ainda mais.

Droga. Não deveria ter prometido a Martin que tentaria agradá-la…

Portanto, esperou que Lana voltasse para a casa. Quando quase entrava em seus aposentos, materializou-se em sua frente.

Riu ao ver a garota pulando de susto.

“Não deveria ficar abusando do teletransporte, Ghunter!” Exclamou Lana.

“Laninha, não se preocupe comigo. Aliás, não sabia que estava investindo tanto nas aulas de cura!”

A expressão da Lagarta tornou-se enigmática. “Sim, estou, mas por que você…?”

“Ué… Conseguiu até tirar Carl da loucura…”

Lana encarou-o por alguns segundos, tentando entender aonde ele queria chegar. “Você me seguiu…?”

Ding ding ding! Matou a charada! As minhas são muito melhores do que as de Carl, não acha?”

Lana enfureceu-se. “Pare de me perseguir, droga! Me deixe em paz!” Tentou esquivar-se para seu quarto, mas Ghunter não saiu do lugar.

“Ele finge ser louco este tempo todo e você não avisa pra sua própria família?! Lana, isto são modos?” Provocou o garoto. Não conseguia resistir.

Lana o empurrou com força. “Você não é minha família.” Ela parou na frente da porta de seu quarto, lembrando-se da vontade de seu mestre. “E é mais complicado do que isso.”

A garota olhou para Ghunter, com os olhos lacrimejando. “Ele sempre tem algumas… Muitas recaídas. Até quando estamos juntos. Uma vez que adotou a loucura, ela parece se apoderar cada vez mais dele…” Lana pegou ar. “De uma forma que… Eu não sei se vai ter volta.”

Pela primeira vez, o Gato ficou sério. Se aproximou dela, ainda não acreditando que Lana estava confiando nele para contar sua aflições.

“O mestre pode ajudar.” Sugeriu Ghunter.

“Ele não pode saber.” Afirmou Lana, desesperada. “Ele tem sim, excelentes intenções, mas não tem trava na língua! Acabaria, sem querer, espalhando por toda a Floresta que Carl não é louco… E a vida dele depende da própria loucura, Ghunter! Não vê? Ele tem muitos patrões que o caçariam até o inferno se soubessem que ele é são!”

Ghunter sabia disso, afinal, trabalhara para muitos deles. Mas ainda não concordava.

“Por favor, Ghunter, por tudo que é mais sagrado!” Implorou Lana. “Não conte para o mestre!”

As sobrancelhas do garoto se arquearam, e seus olhos brilharam de malícia.

“Eu não digo nada… Com uma condição.”

O olhar suplicante de Lana foi se transformando em desprezo. ‘Sabia. Ele jamais entenderá o que é família. Interesseiro, é tudo que é!’

“O que é?” Perguntou, odiosa.

Ghunter sorriu. “Quero que me dê um beijo.”

Lana revirou os olhos e, sarcástica, se afastou alguns passos. Já ouvira rumores da aldeia. Diversas flores já tiveram que se sujeitar a beijar Ghunter para que não perdessem alguma coisa.

Mas jamais achara que aconteceria com ela.

Tinha muito receio. Nunca havia beijado nenhum garoto… E se ele percebesse e contasse isso pra Floresta inteira? ‘Ah, droga…’ Mas não podia deixar Carl na mão. Sabia o quanto ele se matava todo dia para proporcionar uma vida digna aos seus dois irmãos.

E conhecia Ghunter. Ele contaria.

Lana suspirou. Em um movimento rápido, avançou em sua direção e deu-lhe um selinho um pouco mais demorado - afinal, se não o agradasse muito, ele voltaria a chantageá-la.

Quando se afastou, viu que os olhos de Ghunter recusavam-se a abrir. Era como se quisesse prolongar o momento ao máximo.

“Você promete que não vai contar nada?”

Ghunter riu, ainda de olhos fechados. “Ah, Laninha… Eu não ia contar nada de todo o jeito.”

Abriu os olhos e um sorriso maior ainda. Adorou ver as bochechas de Lana pegarem fogo.

Eu te odeio.” Ela pronunciou lentamente.

Ghunter deu de ombros e voltou a caminhar em direção ao corredor. No final dele, ouviu a voz de Lana exigindo:

“Promete?”

O Gato deu uma olhadela antes de continuar. “Prometo.”


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