A Lagarta escrita por Vatrushka


Capítulo 4
O Baralho




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/673848/chapter/4

A carruagem enfim parou. Pan teve a delicadeza de estender-lhe a mão para que descesse.

"Que gentileza." Comentou Lana.

O palácio estava da mesma forma que o vira da última vez. Belo, gigantesco, imponente. E vermelho.

De vez em quando, Lana divagava. Imaginava-se em outras vidas, outras realidades. Tinha curiosidade de saber... Se ela tivesse nascido em outro lugar com outras circunstâncias... Será que ela gostaria da cor vermelha?

Não conseguia acreditar que sim.

Os dois guardas de copas colocaram-lhe algemas rústicas. A guiaram para dentro do palácio puxando as correntes, como se fosse um animal exótico. Pan tomou a frente.

"Pan?" Perguntou a Lagarta. "Eu fiz alguma coisa errada?"

"Muito provável que sim." Respondeu. "Mas não é por isso que você está aqui."

Lana entendeu o que quis dizer. 'Ótimo. A Rainha quer dar uma palheta de seu poder à Corte, e eu serei uma das atrações.'

Depois de um tempo atravessando diversos corredores, os quatro pararam diante de um portão gigante - que davam para a sala do trono. Sala não, um salão gigante onde a Rainha proporcionava as maiores festividades.

Pan bateu nas grande portas. A barulheira da festa pareceu se silenciar, e a partir disto só se ouviu o berro agudo de Victoria:

"Deixe que entrem!"

Os portões se abriram. O salão, em contraste da maioria do palácio, era completamente dourado. Provavelmente para que o vestido escarlate e extravagante de Victoria pudesse se destacar ainda mais.

A multidão de vermelhos formou um corredor para que Lana e os guardas passassem. Eles cochichavam, surpresos. Não deveriam estar acostumados a ver alguém vestindo azul.

Lana sabia que não tinha a melhor fama do universo. A achavam estranha demais, misteriosa demais - afinal, sabia demais.

"Meu queridos súditos!" Exclamou Victoria, teatralmente. "Trouxe um entretenimento diferente hoje! A Lagarta, que tem os poderes mais sombrios e obscuros, poderá ler o futuro de quem tiver atrevimento para desvendá-lo!"

A plateia inicialmente se assustou, mas logo podia-se ouvir alguns aventureiros corajosos se vangloriando por tentar ver sua sorte. Outros se animaram por pura curiosidade.

'É lamentável o quanto Victoria simplifica a capacidade de meus poderes.' Pensou, por fim.

Óbvio que não podia ver o futuro. Afinal, o futuro não existe.

Mas Lana não se desesperou. Já estava acostumada a fingir que previa o futuro. Na verdade, o que fazia era analisar a aura das pessoas e ver o que vivenciaram ou sentiram até então. Sabendo disso, tentava supor o que aconteceria com elas. O trabalho era facilitado, claro, quando a Lagarta falava de formas misteriosas.

Simples assim. Não passava de raciocínio lógico. Mas como Lana havia acertado todas as vezes que fizera isto, sua fama de vidente havia se espalhado.

Os dois guardas, enfim, retiraram as algemas e saíram do salão. Nunca havia visto muito a utilidade nelas de qualquer forma, já que podia evaporá-las quando quisesse.  Colocaram-nas em seus pulsos por puro fingimento. Os dois cartas, assim como a Rainha, só o fizeram pela sensação de controle.

Lana suspirou. Estava no centro do salão, e todos a observavam.

De uma distância segura, claro.

Esperava poder contar com a companhia de Pan, mas ele beijou a mão de Victoria e foi sentar-se com outros. Inconscientemente, Lana estava com o olhar fixo em suas costas...

Mas logo sacudiu a cabeça e foi em direção à mesa, para pegar uns aperitivos. Estava com fome, e diziam que a comida dali era boa.

Materializou um prato azul e foi organizando os salgados em uma pirâmide. Com a outra mão, encheu seu copo com suco de framboesa.

Ao seu redor, alguns vermelhos se aproximavam, apreensivos. Quando ergueu o olhar, todos recuaram inconscientemente.

Pensou em pregar uma peça para apavorá-los, mas decidiu que aquele não era o momento certo.

Lana foi em direção a um canto mais vazio e materializou uma poltrona azul. Enquanto nada acontecesse, ficaria ali comendo seus empanados.

Observou Victoria conversando com um guarda de Ouros. Os Cartas de Ouros trabalhavam exclusivamente para defender a Corte e sua Rainha. Eram a Elite do Exército.

Mas em sua opinião, se comportavam como se não estivessem trabalhando...

Bem, era provável que não estivessem mesmo. Com guardas de Paus morrendo aos montes nas linhas de frente, guardas de Copas ateando terror entre a população e guardas de Espadas sendo os únicos que agiam de fato como policiais; os de Ouros não deveriam ter muito o que fazer.

A Rainha gargalhava estridentemente das piadas do Carta. Victoria era baixinha e muito magra. Seu nariz era levemente curvado e seus cabelos cor de areia estavam "contidos" em um enorme penteado armado.

Lana duvidava que os cabeleireiros reais faziam algum esforço para deixá-lo assim.

Apesar de seus constantes esforços, Victoria parecia sim, uma criança em meio de adultos. E era mesmo: tinha apenas 14 anos. Mas é um grave erro que cometem aqueles que associam sua tenra idade à ingenuidade. 

O Carta com quem conversava parecia ser o rapaz mais popular e disputado dali. Não podia negar que era belo. Seus cabelos eram sedosos, lisos e loiros. A íris de seus olhos se assemelhava a um limão cortado ao meio. Era alto, forte, esbelto, etc, etc...

"Uma beldade, não é mesmo?" Giullian sussurrou, encostado em sua poltrona.

Lana se surpreendeu. Giullian estava ali! Provavelmente, também "convidado" como uma atração... Mas pelo menos, teria companhia!

Animada, a Lagarta materializou um banco para Giullian. Este sentou-se, agradecido.

"Um baile digno, não acha?"

Lana já estava acostumada a conversar com Giullian. Ele era conhecido por ser... Bipolar.

"Não, não acho." Respondeu.

"Pois bem, eu também não." Retomou o rapaz, com cara feia e cruzando as pernas. "Aqui é horrível! Quero voltar para o Litoral!"

Lana inclinou a cabeça, sorrindo. "Tem alguma história nova do Litoral reservada para mim?"

Giullian tinha a fama de contador de histórias. Se eram verdadeiras ou falsas, ninguém se importava. Mas eram cativantes, todas elas.

O rapaz já havia utilizado este talento para hipnotizar tropas de Copas diversas vezes. A Rainha quase o sentenciou à morte uma vez, quando foi pego.

Mas é claro que, assim que abriu a boca, o júri já estava a seu favor. E para sua sorte, Victoria também acabou cedendo.

Lewis o transfigurou carinhosamente em dois personagens: nos Gêmeos Tweedledee e Tweedledum. O escritor achara fascinante a forma que Giullian travava intensas batalhas internas constantemente. Falava que, um dia, gostaria de ser um contador de histórias tão bom quanto Giullian.

"A história nova é essa que estamos vivendo agora." Respondeu, piscando. Parecia muito entusiasmado. "Veja que excelentes personagens, todos juntos em um salão só! Vou ter gosto em contar isto, depois! A Rainha, o Valete, a Lagarta, o Baralho, o Coringa e... Bem... O Rei."

Lana interpretou o Valete como o tal loiro de Ouros; no qual a Rainha parecia particularmente interessada. O Baralho seria a Corte. O Rei, diminuto e apagado como sempre, estava sentado em um banquinho escuro ao lado do trono. Ele parecia emburrado.

"E você é o Coringa?" Interrogou Lana. Tudo apontava para que sim.

"Eu?!" Exclamou Giullian, gargalhando. "Mas é claro que não! Sou apenas o observador. O Coringa, na verdade, é bem mais óbvio que isso."

A Lagarta ergueu a sobrancelha. Não via ninguém muito óbvio ali.

Exceto pelo novo prisioneiro que os dois cartas acabavam de trazer para a festa. Todos os olhares do salão, novamente, se voltaram para a entrada.

Enquanto era arrastado, o prisioneiro emitia uma risada insana. Sua longa cartola impossibilitava a ampla visão de seu rosto, uma vez que estava cabisbaixo. A ponta de seus pés rastejavam pelo chão.

Ninguém mais ali reparou, mas Lana viu: o Coringa estava chorando.

Ao visualizar as discretas lágrimas que escorriam pelo seu rosto, a Lagarta se ergueu bruscamente. Ele estava sozinho. O Chapeleiro estava sozinho.

Onde estavam a Lebre? E o Arganaz?

Eles nunca se separavam!

"O que fizeram com os irmãos dele?" Exclamou Lana, histérica. Irada, começou a avançar em direção de Victoria. "O que você fez com os irmãos dele?!"

O escândalo foi instantâneo. Os vermelhos recuaram o máximo possível, o tal Valete escondeu Victoria atrás de si e Giullian agarrou Lana antes que fizesse algo com o que se arrependesse.

"Não vê, Lana? Esse é o problema!" Rosnou Giullian, impedindo a Lagarta de se debater. "Eles não fizeram nada!"

Lana o encarou, perplexa. O quê ele queria dizer com...?

Foi quando tudo ficou claro em sua mente. O porquê daquela convocação. O motivo de terem realizado tantas atrações, ali, no mesmo dia e ao mesmo tempo. 

A Rainha estava sendo ameaçada. Algo havia saído do controle. Aquela não passava de uma tentativa ainda mais desesperada que o comum de demonstrar que estava intacta.

Victoria não era burra. Ela sabe que lucraria muito mais com cinco atrações do que só com três. A Lebre e o Arganaz também eram populares, oras! Não havia sentido em sequestrar os outros dois para chantagear o Chapeleiro. Nunca tinha precisado fazer isso antes!

O medo que Lana encontrou no olhar da Rainha comprovava ainda mais a teoria. Não... Não fora ela que sumira com os dois irmãos de seu amigo.

Fora outra pessoa.

"A nova ameaça é uma assassina, uma mercenária que ficou mais famosa ultimamente." Sussurrou Giullian, ao ver que Lana havia se acalmado.

"Quem? Quem?!" O ódio ainda era eminente em sua voz. Por isso, Giullian não ousou soltá-la ainda.

"Ironicamente, minha querida... Ela é conhecida como Alice."


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Lagarta" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.