Até que a Morte nos Una escrita por Nuwandah


Capítulo 27
Chuva


Notas iniciais do capítulo

Então, hm, sabe quando uma história inteira nasce a partir da ideia de uma única cena? Pois bem, este capítulo tem ESSA cena. Vocês vão saber qual é quando chegarem nela. E também, neste capítulo tem coisas que escrevi ainda quando estava concebendo a história (ainda com 14 anos) e em momentos posteriores também (eu tenho 25 agora! Ai, ai). Espero ter conseguido misturar tudo direitinho com o meu estilo de hoje.



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Parando para pensar, é uma loucura olhar para onde comecei quando me mudei para Tokyo e onde estou agora. Não me entenda mal, a vida ainda tem o seu alto preço: a mídia continua insistindo em nos assediar e as noites são agitadas por ansiedade e sonhos que grudam atrás das pálpebras mesmo depois de acordado; sair com o pessoal após a aula ou em final de semana ainda exige muito esforço e conversa com Itachi por conta dos estranhos que protelam em cantos e sombras.

Mas, apesar de tudo, apesar do manto revestido em chumbo que me pesa há meses, há um espaço agora no qual eu sinto que consigo respirar novamente, que sinto que consigo ao menos encostar no eu de um ano atrás, antes de tudo ir por água abaixo. Isso já era óbvio pelo fato de eu querer sair com a galera que conheci em Tokyo, ou pela simples constatação de que eu já os considerava amigos. E nesses momentos que estou com eles, ou com Itachi, são momentos que algo dentro de mim para de estar tão apertado e se solta um pouco, permitindo que eu possa vivê-lo.

E o ponto de ignição desse pequeno milagre estava bem à minha frente, observando o nadar das carpas no pequeno lago como se aquela fosse a coisa mais interessante do mundo. Ela se fazia confortável contra a grama, que nem sentia o seu peso, e sob a luz rara do sol de inverno, que ela sequer sentia contra a pele. E, mesmo assim, um brilho se fazia presente em seus orbes verdes, esbanjando contentamento e vida. Volta e meia, ela ajustava a franja, que teimava cair de trás da sua orelha enquanto olhava para baixo. Um show de risos na cara da Física.

Fazia uma semana do Ano Novo, uma semana desde quando as ações de Sakura foram a gota que transbordou o copo que ela vem enchendo há tempos. Foi estranho, intimidador e cabuloso, mas ao mesmo tempo tão certo. Era como se aquilo devesse de fato acontecer.

— Hmm, que sorrisinho bobo é esse aí? - E de repente uma cabeleira loira e olhos azuis celestes estavam bem à frente do meu rosto. Um sorrisinho sacana repuxando os cantos. - Carinha de apaixonado. Tá pensando em quem?

A carranca foi automática, tal como o empurrão que dei em Naruto para ganhar de volta meu espaço pessoal. E em qual momento eu havia começado a sorrir? Porque não estava sorrindo, certamente.

— Ah, não. Não me diga que o Rei do Gelo teve o coração derretido. - Kiba veio se aproximando, os outros com cara curiosa junto.

— Quem é?! - Suigetsu pulou em meio aos outros.

— Precisamos saber porque essa pessoa merece um prêmio, talvez até mesmo um Nobel. - Kiba complementou.

Meus olhos reviraram tanto que eles poderiam ter dado uma volta completa no globo ocular.

— Parem com isso. - Resmunguei. - A cabeça do Naruto que tem muito espaço vazio para imaginar coisas.

— Ah, Sasuke, qual é! Ninguém faz essa cara quando tá olhando peixe.

Peixe?

Meus olhos correram de volta ao lago, onde Sakura continuava sentada à beira, agora com a cabeça erguida em nossa direção para entender a algazarra que se formou do nada.

Oh.

Então essa expressão que Naruto me flagrou fazendo, que ele definiu como de “apaixonado” era o modo com o qual eu estava observando Sakura?

Senti o meu rosto esquentar muito, muito rápido quando me toquei disso, o olhar de Sakura completamente confuso encontrando o meu no mesmo momento. Aquilo foi demais para mim, e logo desviei o olhar, mirando o rosto para baixo. O cachecol ao redor do meu pescoço de repente era demais, muito calor sendo mantido em uma área sobreaquecida.

— Aah, o Sasuke tá vermelho!

— Que isso? Universo paralelo? Falha na Matrix?

— Eu preciso saber quem é!

— Deve ser uma bela duma gostosa pra conseguir conquistar o Sasuke.

Senti meu sangue acelerar mais ainda, mas de irritação dessa vez. Antes que eu pudesse me parar, já estava agindo.

— Para com isso! - E minha mão foi forte contra o peito de Kiba, forçando-o dar uns dois passos para trás para não cair.

— Opa, foi mal aí! Todo respeito pela tua garota! - Ele pôs as mãos para o alto em sinal de rendimento, nem um pouco preocupado com a pequena agressão.

— Ela não é “minha garota”!— Acabei por me exaltar e todos cessaram os questionamentos imediatamente, formando um silêncio que deu muito espaço para o eco da minha fala. O entendimento da confissão se pondo sobre todos como uma manta.

O constrangimento se arrastou pela minha pele e eu só queria sumir, cavar um buraco ali mesmo no chão e nunca mais sair. Um formigamento pela nuca ameaçava se transformar em outra coisa quando a sensação viajou mais para dentro.

— Ei, tá tudo bem. Fica tranquilo. - Naruto foi o primeiro a se pronunciar, levando uma mão amigável ao meu ombro. - A gente só tá brincando. Mas vamos com certeza querer conhecer a fazedora de milagres- uugh!— Ele se encolheu todo e levou as mãos ao ouvido, passando direto pelo rosto de Sakura atrás de si, que sorria bastante satisfeita.

Levou um momento a mais para eu juntar os pontos e compreender que Sakura havia soprado no ouvido de Naruto

— Eu devia ter feito isso antes. - Ela comentou ainda em meio a risos, Naruto logo à frente reclamando do súbito nervoso.

Estava completamente estarrecido com o absurdo do que havia acabado de testemunhar, mas, à medida em que o choque ia se dissipando, senti meu rosto repuxar em um sorriso plenamente satisfeito pela pequena vingança.

 

O terraço, a essa altura, já havia se tornado um ponto comum para Sakura e eu. Havia uma paz ali em cima, longe do caos do asfalto, na vista decente para o céu, nas paisagens montanhosas à distância - até o Monte Fuji em dias de tempo bom. Era bom ir para lá, talvez conversar um pouco ou então nem isso, e apenas admirar o panorama num silêncio confortável. Ficávamos debruçados sobre o guarda-corpo ou sentados no concreto, à luz do tímido sol de inverno, com apenas uma sombra se esticando ao chão.

— Então. - Comecei cortando o silêncio contemplativo. - Como é que funciona essa coisa de materializar?

— Hm… - Sakura fez, jogando o rosto para cima. Seus cabelos roçaram em seus ombros nesse movimento e apenas o céu refletia em seus olhos. - É difícil explicar porque não há nada parecido para um vivo. Mas tem coisas mais fáceis que outras. - Ela ergueu um dedo. - Criar um calafrio? Posso dizer que é até fácil. - Os outros dedos se juntaram ao outro e ela girou a mão com suavidade, como se ela analisasse uma equação intrigante. Será que eu conseguiria sentí-la? Nem que fosse por um breve segundo? Uma formigação de pura antecipação percorreu o meu corpo com esse pensamento. - Agora, tocar? Quase impossível, eu conseguia fazer mais quando estava sozinha e cheia de raiva. - Ela voltou a mão ao chão, onde estava previamente se apoiando, seu rosto virou para mim, sem muita expressão. - Talvez eu estivesse me transformando em um poltergeist?

Senti um gelo na barriga, do tipo que se sente quando está em queda livre. Tanto pela negativa como pela perspectiva de Sakura sozinha e desamparada por tanto tempo que se tornava algo irreconhecível até para si mesma. Não havia formas o bastante de demonstrar o quão grato eu era por aquele fatídico dia de Sexta-feira 13 no qual decidi que seria interessante jogar Ouija num hospital abandonado.

Constrangimento me atingiu com força quando notei minha frustração por não poder tocar Sakura. As palavras de Naruto do dia anterior ainda eram frescas na minha cabeça, seu comentário sobre eu parecer apaixonado. Então era essa a sensação que estava dentro de mim? Era essa a energia estática que estava zumbindo no meu peito nos últimos meses e explodiu neste mesmo terraço há poucos dias?

O que eu sentia… era amor? Imaginei que isso seria o que eu sentia pelos meus pais, mas era confuso pensar como soava o mesmo e, ao mesmo tempo, tão diferente. Era mais pulsante, mais intenso, mais vivo. Mas - não, não dá - não queria me arriscar a perder algo precioso de novo. Espera. Como posso perder alguém que já morreu? Na verdade, eu perdi Sakura antes mesmo de tê-la. Não havia como estarmos desfrutando de um dia feliz juntos e ela simplesmente escapar por entre os meus dedos para nunca mais voltar, pois não não tinha como alguém já morto morrer de novo.

E isso queria dizer que, por nutrir esse tipo de sentimento por Sakura, eu estava cometendo... necrofilia? Nossa, isso era repulsivo! Mas pensando bem, eu não estava me apaixonando pelo corpo de Sakura, mas pela alma dela. E isso era completamente diferente, né?

O sol já estava começando a se esconder por detrás das montanhas. Quanto tempo ficamos aqui em cima? Um latejar incômodo começou em minha cabeça sem aviso prévio, talvez fosse um sinal para que voltássemos ao apartamento. Tinha que ajudar Itachi a desempacotar o resto das caixas ainda. Voltei minha atenção para Sakura, que já havia novamente retornado seu olhar para o céu já em início de crepúsculo. Algo se apertou dentro do meu peito ao lembrar de suas últimas palavras, uma tristeza e angústia pelo que poderia ter sido daquela garota tão doce - tão especial - caso nossos caminhos nunca tivessem se cruzado novamente.

— De qualquer forma, estou feliz de ter te reencontrado. Sou grato por isso. - Disse de uma vez.

De alguma forma, senti que era muito importante externalizar isso para Sakura e o fiz antes que pensasse demais a respeito. E parece que foi a decisão certa, pois tudo se encaixou quando aqueles olhos transitaram da surpresa para o alívio e terminaram em uma calidez que me invadiu e me tomou de uma forma que até expulsou o ar dos meus pulmões.

— Obrigada, Sasuke-kun. - Ela disse num sorriso. - De verdade.

 

— Finalmente lembrou de mim, hein. - Ouvi a voz de Itachi logo que entrei no apartamento.

Ele estava sentado no meio da sala, várias caixas de papelão - abertas ou ainda lacradas - estavam por todo o cômodo. Evitei vocalizar o descontentamento com aquela vista e o que ela implicava. Foram dois dias para empacotar tudo que iríamos carregar na mudança, como já fazia mais de uma semana e não conseguíamos arrumar tudo de volta? Mudanças são um saco.

— Se eu chegasse muito cedo, iria ficar muito na cara que você é péssimo em desempacotar. - Pendurei a pasta na escola juntamente com o casaco pesado e me juntei a ele no chão, puxando uma caixa para mais perto de mim. - Quis te dar uma margem de partida melhor pra humilhar menos.

Uma sobrancelha de Itachi disparou para o alto, um sorriso de canto seguiu logo depois.

— Isso é um desafio? Se for para apostar comigo, espero que esteja preparado para lavar a louça da semana inteira. - Ele puxou a caixa que estava mexendo para mais perto, deixando claro o aceite e seu espírito competitivo.

— Só vai ter louça para você lavar se você parar de ser molenga e tirar ela das caixas, nii-san.

Era ótimo ver como eu não estava tão enferrujado na arte de apertar os botões certos de Itachi. Seus olhos praticamente se acenderam com chamas carmesim com o último rebate. Em minha visão periférica, via Sakura se acomodando no sofá como se estivesse assistindo a um programa. Parecia que íamos conseguir tirar uma diversão dali.

 

— Essa caixa tá com etiqueta do seu quarto, por que ainda está aqui? - Comentei logo que vi o que estava escrito na caixa que estava mais distante da bagunça, encostada à parede.

— Ah, essa… - Pude jurar que os ombros de Itachi se enrijeceram momentaneamente ao identificar ao que estava me referindo, mas, logo que ele se levantou para andar até mim, já estava completamente normal. - Queria conversar contigo antes. - Ele começou a cortar o lacre da caixa com muito mais cuidado do que com as outras, como se o que estivesse ali dentro fosse de cristal, o que sequer tínhamos ali.

Minhas sobrancelhas se juntaram enquanto eu tentava pensar no que poderia ser. A maneira de Itachi, sua demora em abrir e tirar as camadas de proteção, tudo só somava para o suspense do que raios estava guardado com tanto cuidado ali dentro. Até que, finalmente, madeira envernizada brilhou por entre os pedaços de papel e Itachi pescou o objeto de dentro da caixa.

Tentei conter o ímpeto de engolir em seco, mas isso em nada parou a sensação gélida que se instalou no fundo de meu estômago e se espalhou quando reconheci o pequeno butsudan. Passei os últimos meses confortavelmente ignorando sua existência no quarto de Itachi e não esperava ter de vê-lo assim, subitamente. O simples fato daquela coisa estar ali, se fazer necessária, era um grande dedo acusatório na minha cara.

Aquela era a primeira vez que olhava de verdade para o pequeno oratório budista. Ele era bastante diferente do que tínhamos na casa de Nakai para nossos avós, de uma estrutura corpulenta de madeira maciça que sempre foi maior que eu. Este mal devia ter meio metro de altura e era de uma madeira menos nobre, não parecia difícil para Itachi erguer sozinho. E, o mais importante, não eram as fotos de nossos avós que estavam ali dentro para eles serem lembrados e homenageados, mas sim de nossos pais.

— Queria saber se tá tudo bem pra você de colocar na sala, é meio estranho ter isso no meu quarto.

As palavras de Itachi demoraram para serem registradas e, mais ainda, para serem compreendidas. Itachi queria mesmo colocar um santuário de memória aos nossos pais ali, na sala? Toda vez que eu saísse do meu quarto, seria forçado a ver aquele lembrete da morte dos nossos pais, teria que ver os momentos que Itachi tomava para se sentar à frente das fotos deles e lidar com o seu próprio luto. E ele queria saber se eu estava ok com isso?

Quando ficou óbvio que eu não tinha resposta, a boca ficando apenas entreaberta, sem pronunciar uma palavra, Itachi fez uma expressão que não consegui identificar, não conseguia encará-lo diretamente nos olhos. Mas era decepção? Tristeza? Uma mistura dos dois? Ele soltou um pequeno suspiro antes de começar a falar novamente.

— Eu fico preocupado com o jeito que você encara a morte deles, sabe… - Aquela fala bateu em mim como ondas de choque. Ergui a cabeça de imediato, incrédulo com aquelas palavras tão diretas. - Você não faz nada, não acende um incenso e sequer uma prece faz. Nem comenta sobre eles. É como se você tentasse apagar a existência deles da sua vida. - Senti minha garganta doer de repente com o tanto de pressão que se formou ali. - Eu tentei, mas não consigo ver uma forma disso fazer bem para você de qualquer jeito.

Wow. Eu quase conseguia sentir fisicamente o impacto daquelas palavras. Elas serpentearam cada membro e apertaram até que eu estivesse paralizado, a pressão aumentando no pescoço. Isso porque cada parte daquilo era real, não era? Itachi estava certo, como sempre. Tudo que venho fazendo nesses últimos meses é não pensar em nossos pais, é fugir do que aconteceu e tentar fingir que tudo não passou de um terrível pesadelo.

Novamente sem resposta, Itachi checou rapidamente seu celular e o bloqueou novamente, devolvendo-o ao bolso de trás de sua calça.

— Amanhã é dia 9. Vão fazer sete meses desde que eles se foram. - Meus olhos se arregalaram de leve, as numerações invocando sentidos distintos. - Eu sei que não há nada específico para se fazer nessa data, mas a gente pode ignorar isso e fazer alguma homenagem. Talvez lavar os túmulos. Acho que faria bem pra você participar de algum ritual fúnebre. - Só porque estava preso em uma cama de hospital enquanto todas elas ocorriam e por isso não participei de qualquer uma? - O que acha?

E foi então que vi a oportunidade de não precisar encarar o assunto tão de frente, era muito mais fácil focar na proposta feita, desviar de tudo que ele disse até agora. Tentei fazer aquele nó na garganta descer ao engolir novamente. Não cessou aquela sensação, mas foi o suficiente para eu conseguir falar.

— Que besteira, despencar em outra cidade para fazer uma homenagem inventada. Já tem o butsudan aqui para fazer quantas quiser. - De preferência, só o Itachi, eu não precisava me envolver nisso.

— Não é a mesma coisa. - Itachi respondeu sem hesitar. - Nem é tão difícil ir para Nakai. Chegamos lá rapidinho de trem-bala. E, como nevou muito, precisamos dar uma olhada na casa e ver se está tudo ok por lá. Eu já teria que ir por esse motivo, de qualquer forma.

Por algum acaso, ele já havia ensaiado essa conversa? Por que Itachi tinha sempre tantos argumentos?

— Isso dá para pedir para um dos vizinhos verificar, ou o Shisui. Ele ainda tá por Nakai, né?

Itachi não respondeu de imediato desta vez, mas fez algo pior. Ele parou para me observar, de verdade. Seus olhos ganharam aquele tom analítico que só ele tinha quando estava estudando algo a fundo. Segurei ao máximo a vontade de me encolher, de me esconder daquela análise que ele certamente estava fazendo de mim e das minhas reações.

— Você não precisa ter medo. Eu vou estar ao seu lado o tempo todo, se quiser. - Ele finalmente disse, usando o tom mais compreensivo que tinha.

Vergonha tomou conta de mim como uma avalanche, e raiva me soterrou logo em seguida por conta dessa mesma vergonha porque, de novo, Itachi estava certo e nós dois sabíamos disso. E eu… eu só queria sair dali, não queria encarar mais Itachi e deixar óbvio que, no fundo, eu sabia de tudo aquilo que ele estava falando e ativamente agi na exata direção oposta de tudo que envolvesse encarar de frente aquele luto - porque eu não aceitava a existência de um.

Afinal de contas, sentir nada é mais fácil do que encarar a dor. E a raiva é uma ótima camuflagem para isso.

— Eu não estou com medo de nada! Isso tudo é- ugh! É só inútil! - Levantei-me do chão num rompante. Itachi sequer vacilou com a explosão. - E quer saber? Pode colocar o butsudan onde quiser, eu não ligo!

Meus pés bateram forte no assoalho quando marchei para dentro do meu quarto. A última coisa que vi antes de bater a porta, numa rápida olhada para o que deixei para trás, foi Itachi colocando o oratório de volta na caixa.



Tinha uma noção muito leve e parcial do que acontecia ao meu redor. Se eu conseguisse ter a capacidade de me esforçar para entender melhor o que se passava ali, certamente o faria, pois era também angustiante não ter consciência das atividades alheias ao meu próprio controle. Porém, precisava concentrar toda minha força restante de meu corpo em uma única questão: manter-me vivo. E, acredite em mim, quando seus próprios pulmões estão vacilando e não conseguindo fazer uma troca de gases eficiente sequer para manter seu corpo estável, o mundo externo pouco importa.

Meu sistema respiratório inteiro ardia, desde os brônquios até o final das narinas, e reconheci aquela sensação de brincadeiras na piscina e no mar, quando eu eventualmente acabava respirando água ao invés de ar em quase-afogamentos inocentes. Mas aquilo não era diversão, era sério, eu não estava em algum entretenimento aquático. Na verdade, tinha absoluta certeza de que na água eu não estava, e muito menos de que ela era o motivo daquilo; o sabor de ferro que impregnava a minha boca me afirmava algo ainda mais aterrorizante: eu estava me afogando em meu próprio sangue.

Sabia que aquilo devia ter algo a ver com o latejo doloroso em meu ombro e peito esquerdos, pois era a única coisa na parte externa de meu corpo que conseguia sentir em meio a tudo aquilo. Mas, mesmo que não fosse, não fazia diferença. Minha necessidade ainda era conseguir oxigenar meu corpo, antes que eu perdesse completamente a consciência e a capacidade de continuar lutando pela minha própria vida. Eu não podia me dar por vencido.

Tentei inspirar, puxando a todo custo ar pelas narinas, atitude estúpida de alguém desesperado por oxigênio, mas o que apenas consegui foi me engasgar com mais sangue, e isso acarretou em um aflitivo ataque de tosse. A crise apenas cessou quando senti a pressão da minha nuca ser aliviada e transferida para a bochecha direita - eu havia sido virado de lado? Graças a isso, o líquido que me afogava escorreu livremente por entre meus lábios com a simplória ajuda da gravidade e mais algumas tossidas, que expulsavam o que se mantinha travado na garganta. Finalmente pude me agradar com o ar que voltava a circular em meus pulmões, mesmo que fosse através de pesadas e penosas arfadas e a grande ardência que sentia em cada movimento de inspiração - aquilo era muito melhor.

A tensão inicial se dissipou à medida que me conscientizava de que conseguiria continuar a respirar naquela posição e me manter com vida - pelo menos, por enquanto -, e isso abriu espaço para que eu pudesse pensar em algo além daquela situação emergencial, como em quem estava ali e me auxiliou. Porque, com certeza, não havia sido eu mesmo a me virar, meu estado de consciência não me permitia sequer ter tal reflexo. Então, quem era?

Esforcei-me para ter algum dos meus outros sentidos de volta, tentei abrir os olhos, mas não encontrava forças nem para mover as pálpebras decentemente. O pouco que conseguia me permitiu apenas ver borrões, e estes não chegavam nem perto de se assemelhar à forma de algo, eram inúteis.

Ah, uma voz.

Estava muito baixa, como se a pessoa estivesse muito longe de mim, nem conseguia perceber maiores detalhes sobre ela. Aliás, apenas distinguia aquele som como a voz de alguém por ter sido algo contínuo, porém com variação de tom. Se eu me empenhasse mais, talvez fosse capaz de entender algo.

E me concentrando apenas na audição, consegui me aproximar mais daquele ruído pertencente ao meu salvador. Ele continuava distante e modificado, como se eu estivesse imerso na água e ouvisse alguém falando de fora dela. Como se não bastasse aquela sensação agonizante de afogamento até então presente, ainda ouvia daquele jeito irônico coincidentemente devido à minha lucidez parcial.

O timbre era fino, então a voz era feminina. As sílabas antes entrecortadas começavam a formar palavras e algum sentido para mim, mesmo que não conseguisse entender tudo até então.

— ... favor... aguente. – Ela parecia chorosa apesar de urgente. - ... ficar bem.

Okaa-san...?

Sim, era minha mãe. Isso fazia muito sentido e era até óbvio, afinal, era com ela e com o meu pai que eu estava antes. A propósito, onde estava o meu pai? Queria questioná-la sobre o que havia acontecido, mas ainda não havia retomado o controle do meu corpo para que isso fosse possível.

Mas não era só de meu pai que eu sentia a falta, estava esquecendo-me de algo, de alguém. O que tinha esquecido mesmo? Não me lembrava do motivo de estar ali, naquele estado deplorável.

Ah, sim... Havia dois homens, eles nos sequestraram no caminho para Tokyo e... e... algo deu errado, e eles optaram por se livrar da gente para nos silenciar para sempre.

A cena retornou à minha cabeça como uma assombração pessoal: as imagens eram turvas e confusas como se lágrimas teimosas não parassem de se formar em meus olhos, atordoando-me ainda mais; porém, não duvidei de minha visão em nenhum momento quando meu pai foi escolhido como primeiro alvo e, sem chance para lhe ser dada misericórdia, seus miolos foram jogados contra a janela do motorista. A arma que havia acabado de executar meu próprio pai voltou-se para minha direção sem delongas para a minha sina, eu seria o próximo. Senti ser puxado com força e... apaguei. Aquela era a minha última memória.

De alguma forma que eu não saberia explicar, minha mãe e eu continuávamos vivos. Muito provavelmente, foi a minha mãe quem me puxou e me tirou da rota daquela bala, ou ao menos evitou que o tiro me matasse na hora, pois agora eu tinha um palpite muito forte sobre o causador daquele mal-estar absurdo.

Mas pouco me importava o meu estado físico, o do meu pai era infinitamente mais preocupante. Ele tinha que estar bem, ele... foi baleado na cabeça, seu cérebro foi estraçalhado bem na minha frente... Apesar de parecer impossível, meu ombro latejou mais forte e a algia percorreu o meu corpo como uma onda avassaladora graças a essas últimas considerações. Não era possível, o meu pai...

— Shh... Calma, não se esforce. – A voz distorcida de minha mãe voltou e me tirou daqueles pensamentos dolorosos demais para suportar.

Aquela frase completa que ouvi me fez perceber que, ao menos, eu já estava um pouco mais lúcido e, além de conseguir expressar minha dor vocalmente, fui capaz de escutar sua tentativa de conforto integralmente. Como meus sentidos estavam finalmente se restabelecendo, talvez conseguisse enxergar também, e assim me tirar daquela escuridão da qual eu já estava mais do que farto.

Mesmo que de forma lenta e fraca, minhas pálpebras foram se espaçando e finalmente pude ver formas. Não foi muito difícil acostumar-me novamente à luz, o lugar onde eu estava era pobremente iluminado por alguns pontos que deveriam advir de postes. O foco da minha visão era o asfalto, minha cabeça estava próxima a esse, sendo apenas erguida e mantida assim por algo macio. Não foi preciso muito esforço para que identificasse as pernas dela.

Okaa-san... Okaa-san...

E então, um par de botas entrou em meu campo de visão, ele caminhava em nossa direção. Finalmente ajuda, estávamos salvos!

Todavia, ao invés de ouvir qualquer coisa ligada a alívio ou gratidão vindo da pessoa que me amparava, dela vieram palavras que não compreendi, mas que transbordavam... medo? Senti minha cabeça ser sacudida sobre suas pernas, que balançavam em evidente agito. O movimento forçava a lesão em meu ombro, enviando ondas infernais por todo meu corpo.

O que está acontecendo?

Mas eu não teria tempo de me recuperar o suficiente para poder compreender aquele ambiente, pois me foi provado que minha audição não estava tão precária como eu pensava quando um grito engasgado seguido do barulho seco de uma arma de fogo ecoou dentro de minha cabeça que, se eu acordasse depois daquilo, certamente sentiria enxaquecas com aquela ressonância. “Se” acordasse, lembrando, já que todo aquele meu esforço para conseguir acordar de vez foi neutralizado naquele instante. Aquela escuridão, que eu tanto tentava me desvencilhar, consumiu-me por completo, e nem sequer um mínimo raciocínio eu conseguia ter mais.

Era tudo trevas e apenas isso.



Meus olhos se abriram para uma luz ofuscante, fazendo que o meu corpo se encolhesse contra a sensação súbita e invasiva. Os membros roçaram contra as cobertas, e foi sua textura familiar que me fez finalmente processar que estava na minha cama.

Mais um sonho, mais uma lembrança dolorosamente vívida. Meu peito se contraiu logo que pensei na memória. Foi graças à minha mãe que eu sobrevivi, então? Ela me protegeu até o final? Foi isso que, inclusive, causou o seu final? Se não precisasse me proteger, teria ela conseguido fugir?

Mais e mais pensamentos e perguntas começaram a rodear minha mente até que eu os expulsasse. Era questão de tempo até que aquilo me levasse para um caminho tortuoso e de retorno ainda pior. Era melhor ficar ali, sem pensar em nada, e apenas voltar a dormir, fingir que não houve um sonho, que não houve qualquer coisa.

Uma batida suave na porta antecedeu a virada da maçaneta. A cabeça de Itachi emergiu por detrás da madeira. Apesar dele não pisar dentro do quarto, pude ver que estava com roupa de sair pela gola alta que vestia

— Bom dia. - Ele iniciou como se estivesse apenas testando terreno. Ele devia ter notado alguma coisa, pois não deu tempo o bastante para ver se eu responderia o cumprimento. - Tudo bem?

Não, não estava nada bem. A nossa mãe provavelmente morreu porque escolheu me proteger ao invés de se salvar, e se eu tivesse me esforçado um pouco mais, talvez poderia ter dito para ela ir embora, ou me levantado e ido com ela enquanto ainda era tempo, mas tudo que fiz foi ficar deitado lá enquanto ela-

— Tudo. - Respondi apenas.

E lá estava Itachi novamente com aquela cara de quem conseguia ler até a parte mais íntima de uma alma. Se ele já sabia, por que então perguntava? Ele também sabia que eu não seria tão sincero assim.

— Daqui a pouco vou para a estação. - Ele finalmente se explicou, escolhendo não insistir no meu estado. - O trem deve sair em uma hora. Dá tempo ainda de você ir comigo, se quiser.

Quase que imediatamente, flashes do meu sonho estavam dançando à minha frente, uma zombaria à ousadia de sequer pensar em prestar alguma homenagem aos meus pais quando era eu a causa direta da morte deles. Meu estômago se embrulhou com o estouro da bala, ainda ecoando em meus ouvidos, a janela do carro pintada de vermelho.

— Não, valeu. - Joguei-me de volta ao meu travesseiro, virando para o lado da parede e não mais da porta, a coberta foi puxada para a altura das orelhas.

Um período de silêncio se estendeu, provavelmente com Itachi hesitando e tentando decidir qual frase de efeito jogar em mim dessa vez.

— Tudo bem. - Mas essa foi a única resposta dele, no entanto. - Qualquer coisa, me liga. - E a porta se fechou suavemente atrás de mim.

E fui deixado sozinho, com um pesado sentimento de culpa e remorso. O que era aquilo?

Idiota, idiota, idiota.

Aquela espiral me consumiu por um tempo que sequer conseguiria determinar se tentasse. O diálogo repassando na minha cabeça juntamente com momentos daquela noite. Algo ali estava sufocando, m e afundando contra o colchão, era demais para mim e eu não sabia como fazer esse assombro me deixar, ou deixar de fazer parte de mim. Tinha saudades de quando tudo era mais fácil, mais simples, quando não tinha que lidar com sentimentos estranhos e complexos demais para serem resolvidos por mim sozinho.

— Sem terraço hoje? - A voz de Sakura veio por cima de mim, cortando meus pensamentos agonizantes como uma faca afiada. Virei o rosto para cima, e lá estava ela sentada no parapeito da janela fechada, uma sobrancelha questionadora levantada para mim.

— Hm? - Não pude deixar de expressar minha confusão pela forma dela de iniciar a conversa.

— Por que você ainda tá na cama? Você não enrola pra levantar aos domingos.

Ah, sim. Numa normalidade que se instalou recentemente, a essa hora - e que horas eram já? -, eu já estaria no terraço, observando a paisagem com Sakura e conversando sobre qualquer casualidade sem grande importância.

— Eu… - Desviei o olhar dela, sem muita coragem para ver a decepção no olhar dela também. - Acho que fiz besteira.

— Bom, então levanta e vai compensar isso.

A resposta dela foi tão imediata que quase me retraí, e desânimo bateu ainda mais forte com o pensamento de que aquela opção era simplesmente impossível, não dava para mudar o passado.

— Já é tarde demais.

— Nunca é. - Sakura falou com tamanha certeza que tive que retornar o meu olhar para ela. - Se nem pra mim é, imagina pra você, certo?

Pior que Sakura… tinha razão? Ela gostava de mim desde criança, mas foi só depois de morta que ela conseguiu chamar minha atenção, fazer amizade comigo e chegar ao ponto de me fazer nutrir sentimentos além por ela. E cá estava eu, vivo, lamentando ter declinado o convite do meu irmão para tentar encarar uma parte não resolvida do passado.

 Puxei meu celular da cabeceira, já jogando no aplicativo de pesquisa os horários e rotas do trem-bala para aquele dia, e… bingo. A próxima saída era daqui um pouco menos de uma hora e meia, ainda dava para comprar passagem.

— Você tem razão. - Disse a Sakura enquanto me botava para sentar na beira do colchão, os olhos ainda grudados na tela do celular. - Não é tarde.

Um calor se formou no meio de meu peito, aliviando a pressão gelada que estava lá desde ontem. Como Sakura era capaz dessas coisas, eu não sabia, mas era imensamente grato por ela.

“De qualquer forma, estou feliz de ter te reencontrado. Sou grato por isso”.

A vontade de chutar a mim mesmo por ser tão cego foi imensa. Eu era grato por ter encontrado Sakura, por tudo que ela havia feito e ainda faz por mim, e não conseguia trabalhar com esse mesmo sentimento em relação aos meus próprios pais? Acho que já estava mais do que na hora de mudar esse cenário.

— Ei, Sakura. - Não pude deixar de notar que minha voz já soava diferente ali mesmo. Seria a causa isso que me tomava agora? Esperança? - Tá a fim de visitar Nakai comigo?

 

Talvez essa não tenha sido a melhor ideia que tive, foi o primeiro pensamento que tive quando o trem-bala fechou suas portas e começou a acelerar, tudo dentro de mim despencou numa geleira. Meus dedos agarraram o acento como se ele pudesse me manter de viajar junto com o transporte, ou era só uma forma de conter a tremedeira que queria se formar ali de tanta antecipação e ansiedade.

Sakura estava sentada diante de mim. Seus olhos estavam grudados nas paisagem que mudavam tão rápido pela janela, eles estavam com aquele brilho especial de novo quando ela estava animada para algo. E sua excitação não era apenas em relação à viagem, não é mesmo? Aquele brilho carregava algo diferente dessa vez, que enxergava além, como esperança. A minha decisão em ir para Nakai e seguir com a proposta de Itachi acendeu algo não só em mim, mas nela também.

Aquela não era hora de dar para trás. Já estava mais do que comprovado que nada melhoraria se eu continuasse fugindo. Agora só restava encarar os meus medos e traumas. O único caminho possível era em frente.

 

Era tão surreal estar diante daquela casa novamente que cheguei a cogitar a possibilidade de me beliscar - ou rodar um pião - para testar se eu não estava sonhando. Havia algo como uma aura espectral naquele lugar, como se ele fosse frágil a ponto de desaparecer no instante em que eu ousasse tocar em uma parte sua. Nem sei dizer quanto tempo fiquei parado na calçada, observando o portão fechado e as copas das árvores que ponteavam para fora dos muros. Era tão familiar e ao mesmo tempo paralisante voltar a esse passado, era a primeira vez que estava ali desde aquela noite, o primeiro retorno concreto a algo da minha vida passada.

Era tão difícil dar o primeiro passo para empurrar aquele portão, desgrudar os dedos do agarre no tecido da calça e fazê-los abrir a última barreira que me separava da casa onde cresci. Minha visão periférica pegou uma figura ao meu lado enquanto tentava juntar alguma coragem. Ela estava ali o tempo todo, mas estava tão absorto na situação que havia esquecido dela completamente. Quando Sakura notou que estava olhando para em sua direção, ela me lançou um sorriso repleto de empatia e companheirismo.

— Tá tudo bem. - Ela disse, acenando com a cabeça, provavelmente sendo vaga em sua fala de propósito. Estava tudo bem eu tomar o tempo que julgasse necessário ali, estava tudo bem estar com medo, estava tudo bem, ela estava ao meu lado.

Uma onda de calor me atingiu com aquilo - apesar do tempo fechado e da completa falta de sol - e fui tomado por um forte espírito de determinação. Sorri com gratidão, acenando de volta para ela. Já estava na hora.

O portão rangeu baixo quando o empurrei apenas o bastante para passar. Um caminhão de nostalgia me atingiu com força total quando pus os pés no jardim. Foi no meio daquelas pedras e plantas que brinquei tanto com Itachi ao longo dos anos, era para elas que olhávamos quando nos sentávamos na varanda da casa para conversar. Engoli em seco contra aquele monte de emoção e caminhei até a entrada da casa, passando por fantasmas que nada tinham a ver com Sakura.

Finalmente cheguei na frente da casa, chave em mãos para destrancar a porta. O molho tilintava alto no ambiente silencioso, e mais ainda quando o girei na fechadura. A porta da frente deslizou devagar sobre o trilho e uma corrente de ar fresco bateu em meu rosto, trazendo um cheiro amadeirado típico de casa. Era como qualquer vez que cheguei em casa depois da escola, tudo dolorosamente igual.

— Tadaima. - Sussurrei para dentro da casa escura, o som viajando por ela gradualmente.

Ninguém respondeu de volta.

Engoli em seco novamente e dei um passo adentro. Tive o cuidado de remover os sapatos na entrada, apesar da óbvia camada de poeira cobrindo o piso de madeira. Mesmo antigo, esse mal rangia quando meus pés agasalhados em meia pesavam sobre ele. “Esta casa foi erguida pelos melhores marceneiros de Kanagawa ainda nos tempos de império”, meu pai provavelmente diria com orgulho.

Meus pés me carregaram pelo resto da entrada praticamente de forma inconsciente, reconhecendo cada textura e relevo como quem andaria por ali no escuro sem qualquer problema. Fui caminhando pelos cômodos sem pressa, passando as mãos pelas paredes, móveis e objetos decorativos, sem me preocupar com o fato de que meus dedos iam se acinzentando conforme mais poeira ia se acumulando neles.

Ainda mais fantasmas do passado passavam por mim. Cada canto despertando uma lembrança vívida daquele local. Mesmo assim, mesmo com cada arrepio e forte nostalgia que sentia, continuei minha saga atrás de algo que nem sabia o que era.

Um desespero começou a borbulhar quando, já no segundo andar, cheguei ao quarto abandonado dos meus pais. Como os outros quartos, como de costume, ele também estava arrumado de forma impecável. Meu pai era bastante rígido quanto à disciplina, uma casa minimamente fora de ordem estava completamente fora de questão. Mas, mesmo assim, é como se o quarto carregasse um vazio diferente, que oprimia com a sua imutabilidade. Aquilo era demais, e não me demorei para descer as escadas, as meias ameaçando derrapar com a velocidade.

A cozinha era nos fundos, para onde eu automaticamente caminhava toda manhã após acordar e, religiosamente, encontrava minha mãe se ocupando com alguma atividade lá. Na maioria das vezes, até encontrava meu pai já sentado à mesa, apenas esperando os filhos se juntarem a ele para iniciar o café da manhã. Ele não era do tipo que expressava verbalmente seus sentimentos por nós, mas atitudes como essa já falavam mais do que tudo e, quando ele resolvia falar, era para marcar.

A cerâmica do chão da cozinha era gelada, diferente do piso de madeira do resto da casa. Queria pensar que era por isso que senti meu interior esfriar quando me deparei com o cômodo inabitado. Havia nada sobre o fogão, a mesa ou a pia, nada dentro do forno e ninguém administrando essas áreas, ninguém estava sentado à mesa. Eu estava sozinho na cozinha, não havia mais alguém para ocupá-la pois não havia mais gente ali.

Isso porque meus pais nunca mais poderiam voltar, nem para a cozinha, ou para a casa, ou para Itachi, ou para mim. Eles se foram, estavam mortos.

Por que logo eles? Por que logo a gente?! Aquele burbúrio de emoções se misturou até se converter em uma raiva cega. Minha mão foi à tigela de cerâmica em uma das prateleiras e a jogou com toda a força no ponto vazio em frente à pia. O som da explosão da cerâmica e seus cacos se espalhando pelo chão reverberam pela casa e meus ouvidos. Distante, identifiquei Sakura grunhir, mas aquilo era apenas um ruído ao fundo.

O cômodo estava tingido de vermelho, cada mínimo espaço inabitado ali rindo de minha cara, uma constante lembrança de que continuaria assim para sempre. E tudo por causa daqueles homens cujos nomes sequer sabia. Aqueles rostos que encontrei uma vez apenas para tirarem tudo de nós. Agarrei outra peça do conjunto de cerâmica, lançando-o agora entre os pés da mesa de jantar. Um estrondo semelhante ao anterior se fez ouvir.

Alguém estava gritando, era uma coisa quebrada, gutural e crua, completamente oposta a qualquer som que ouvi saindo de Sakura. E demorou um momento para eu conectar o som à ressonante ardência em minha garganta, minha própria boca aberta.

Meus punhos cerrados foram com força contra madeira, quase não conseguia ouvir mais o barulho das pancadas. Era tanta raiva por aqueles homens, tanta raiva dos meus pais. Como eles puderam nos deixar? Por que eles me defenderam ao invés de cuidarem de si mesmos? Talvez estivessem vivos ainda se não tivessem reagido. Era tanta raiva de Itachi por pedir para que eles também fossem para Tokyo, era tanta raiva de mim…

Se tivesse feito algo diferente, tudo poderia ter ocorrido de outra forma. Se tivéssemos ido mais cedo, se não tivéssemos parado para comprar alguns lanches, se eu tivesse mais frieza para conseguir sair do carro a tempo e pedir ajuda, se eu soubesse como desarmar uma pessoa, talvez conseguiria tomar controle da situação.

Se… se… Eram tantas as possibilidades daquela noite ter terminado de outra forma, no entanto, ela teve que se consumar em um dos piores cenários. Aquilo era tão, tão injusto… Não fizemos qualquer coisa para merecer aquilo, meus pais não mereciam perder suas vidas lutando para proteger um filho. Se eu fosse melhor, se eu fosse mais forte para protegê-los… Eu estava lá, e mesmo assim não pude fazer nada, como um inútil. Qual era o sentido de eu existir se nem consigo fazer uma diferença positiva e só fico no caminho?

Não sabia em qual momento eu havia sentado ao chão, não ligando para os relevos das portas do armário cavando em minhas costas. Olhei para a destruição à minha frente, para os cantos que insistem em permanecer vazios. Eu estava lá, os móveis e objetos todos ainda estavam lá, mas a casa parecia vazia. O ambiente era grande demais, eu era muito pequeno - o espaço dominava e sufocava de um jeito que nunca o fez. Qualquer mínimo movimento meu ecoava, e só ficava mais e mais alto a cada minuto, soterrando os outros sentidos, uma enxaqueca já ensaiava dominar minha cabeça.

Era tão solitário ficar naquele lugar que antes era tão cheio de vida - nada mais resta daquele passado. Queria tanto voltar para aqueles dias, lembrar qual é a sensação de comer algo preparado pela minha mãe, sentir o seu perfume logo que entrasse na cozinha, a textura de seu cabelo contra o meu rosto quando ela me fazia um afago. Queria ouvir a voz do meu pai quando perguntava da escola, quando ele deixava escapulir o orgulho que sentia e cedia um elogio ou congratulação. Só queria sentir aquilo ao menos mais uma vez, uma única vez. Queria ter de volta os tempos quando o normal era tê-los sempre ao meu lado.

Mas era impossível. Aquelas boas memórias foram enterradas no passado, onde eu não poderia mais tocá-las, nunca mais. Eu estava sozinho, privado da presença daqueles que mais amo para sempre.

Minha cabeça estava apoiada dentro dos meus braços cruzados em volta dos joelhos. A visão era turva e tomada em parte pelo tecido da blusa, mas ainda notei quando uma figura rósea e avermelhada sentou ao meu lado. Não prestei atenção nela, só tinha vontade de fechar os olhos ali e bloquear tudo, não aguentava mais uma realidade na qual eu teria que conviver com aqueles sentimentos e sensações dolorosas, que tomaram de uma só vez a cor do mundo e me abandonaram naquele limbo, onde nada verdadeiramente se alcança e tudo está estático, sem vida. Só queria que esse vazio acabasse, que esse parasita parasse de se alimentar de mim mesmo para crescer no meu interior, que parasse de consumir quem eu sou - quem eu era.

— Depois que eu morri, não entendi direito o que estava acontecendo. - Ouvi Sakura falar suavemente ao meu lado depois de alguns minutos, ou talvez segundos ou horas. Ela falava abaixo do tom normal, mas sua voz funcionou como uma fonte de luz, que afugentou aqueles pensamentos sombrios que haviam me tomado. - Eu voltei para casa, mas os meus pais não me viam nem escutavam, não importava o quão alto eu gritasse. Quando eles descobriram que… - Foi enquanto ela pausava para engolir que consegui unir forças para focar minha visão nela. Sakura tinha seu rosto voltado para o teto, os olhos enxergando o passado naquele instante. - que eu estava morta, eles desmoronaram. Eu tentei confortá-los, dizer que eu estava bem ali, que estava bem, que não sentia dor alguma, mas não adiantava. Ver os meus pais decaindo dia após dia acabou comigo, então saí e comecei a procurar outros como eu, mas não deu certo.

Por isso ela estava no hospital quando fomos jogar o Ouija? Ela estava procurando outras almas que também estivessem presas neste plano? Parecia impossível, mas meu peito se apertou ainda mais com a ideia de Sakura tentando se conectar aos pais todo santo dia até que tivesse toda sua esperança consumida a ponto de ter que procurar por estranhos apenas para não se sentir mais tão sozinha. E pior, não encontrando alguém e se vendo nessa tortura sem fim.

— O isolamento, a dor de uma perda que estava lá, mas ao mesmo tempo não se fazia completamente, foram demais com o tempo, e eu fiquei com muita, muita raiva. Até que você veio, você me viu e voltou para mim.Você me salvou e nem percebeu isso. - Ela finalmente desceu o olhar para mim e senti todo meu ar roubado de uma só vez quando vi aqueles olhos esmeraldas brilhando com lágrimas. Se não fosse o choque pelo que ela estava falando, eu até tentaria enxugá-las, apesar de saber que era inútil. - E, agora, eu vejo que não consegui ajudar os meus pais, mas posso te ajudar, e isso também me salva, mais uma vez.

Sakura estava mesmo me colocando nesse grau de importância para ela? Ela não me via apenas como o garoto de quem sempre gostou, mas também como a pessoa que a salvou em seu momento mais sombrio? O quão louco era isso, ao menos pensar que eu tinha toda essa importância para Sakura - logo Sakura, que vem soprando vida novamente dentro de mim de pouco em pouco.

— Eu tentei esquecer a vida que tinha para parar de sofrer, mas eu notei que, se você tenta esquecer, é porque é doloroso, e se é doloroso, é porque você sente falta, e se você sente falta, é porque era bom, não é? Não vale a pena tentar esquecer as coisas boas que viveu, ou até mesmo as ruins, pois isso tudo é parte de quem nós somos. Não vale a pena abrir mão de si mesmo para deixar de sentir, porque isso é impossível. A tristeza pela perda sempre vai estar presente, mas aprendemos a lidar melhor com ela com o tempo, é muito melhor que você pare e veja como você foi e ainda é amado. Eu tenho certeza que ainda há muitos sorrisos para serem dados. - Ela se reajustou para ficar mais de frente para mim, seu semblante tomou um tom mais sóbrio, mas sem perder aquele brilho no olhar.

Minha cabeça girava com tanta coisa rodando sobre ela. Eu não conseguia sequer focar em algum desses pensamentos para ter algo para responder Sakura. Era tudo tão confuso, nada do que ela dizia se alinhava ao que eu venho sentindo esse tempo todo - mas será mesmo?

— E eu não te falei isso ontem, - Sakura, aparentemente, não se importava com o fato de eu não ter o que dizer a ela, pois ela ainda não havia acabado. - mas eu sou também muito grata por ter te reencontrado, não só por mim, mas por você também. Sou grata pois você tem vivido por mim, por nós dois. - Aquilo foi um gatilho na minha memória, que prontamente submergiu com algo dito por Sakura poucas semanas antes.

"Sasuke-kun, irei dizer mais uma vez: eu já estou morta, meu tempo já passou, mas o seu, não. Se isso te incomoda, então viva por mim, viva por nós dois. Faça valer a pena”.

Era difícil processar aquilo, talvez por eu não acreditar naquelas palavras, mas Sakura estava sendo clara como o dia ali, não dando espaço para que eu buscasse um desvio na sua mensagem. Eu era importante para Sakura, a minha existência significava uma diferença crucial para ela ao ponto de eu ser a diferença entre seu mergulho num mundo de isolamento e ódio e uma (pós?) vida com a qual ela própria diz se agradar - e o reconhecimento por isso é voltado completamente a mim. Como isso é possível?

“Tem uma coisa daquele dia pela qual sou grato. Você sobreviveu”.

Mas Itachi parecia que compartilhava da mesma opinião de Sakura, não é mesmo? No final, eu não estava sozinho, certo? Sakura e meu irmão já falaram abertamente que se importam comigo e me querem em suas vidas. E, talvez, só talvez, acho que Naruto e os outros se sintam da mesma forma. Nunca tocamos nesse assunto diretamente, mas as ações deles, o fato deles sempre estarem do meu lado desde o início, de fazerem questão de me esperar para que estejamos sempre andando juntos é um grande indício de que eles talvez me considerem importante tanto quanto eu passei a considerá-los. Talvez aquilo fosse arrogante demais da minha parte, mas, olhando para tudo que passamos, depois de pensar em Itachi e Sakura, ousei me permitir ter alguma esperança.

Sim, eu queria fazer valer a pena. Meus pais lutaram até o fim de suas vidas para que eu pudesse viver e a realidade era essa. Eu fiquei aqui, permaneci neste plano e agora preciso fazer algo a respeito. E o pedido de Sakura parece indicar a estrada ideal a seguir: fazer valer a pena. Eu queria que Sakura não se sentisse mal neste mundo, apesar de seu tempo já ter acabado nele. Algo a prendia aqui ainda e teríamos que trabalhar com o que tínhamos, e o que tínhamos era apenas nós dois. E estava em minhas mãos como aquilo iria se desenrolar.

Tudo que eu vinha à mente quando eu pensava no que eu queria para o futuro de Sakura era que ela fosse feliz, então, acho que não havia escolha diferente para seguir com o meu próprio futuro.

Apesar dos olhos tão pesados pelo rompante mais cedo, pude sentir o momento em que eles se contraíram com um sorriso se formou no meu rosto.

— Você é algo diferente, Sakura. - A minha voz saiu rouca e muito mais fraca do que o esperado, mas foi o suficiente para Sakura ouvir, pois ela de imediato corou violentamente. Uma risada fraca escapou pelo meu nariz, eu queria poder tirar uma foto dessa reação dela. - Nunca mude.

Quando Sakura finalmente se recompôs, ela sorriu de canto para mim, amornando meu interior ainda absorto em cubos de gelo.

— Mas é claro que não, Sasuke-kun. Contanto que você também me prometa que vai continuar assim.

Prometer que viveria por nós dois soou um pouco além dos meus limites naquele momento. Era uma declaração forte demais para o processo pelo qual eu ainda estava tentando passar. Mas, quem sabe um dia.

Levantei devagar de onde estava, as pernas estavam bambas, provavelmente por mais de um motivo, e fui me apoiando no armário atrás de mim.

— Vamos andando. - Disse a ela, já testando apoiar meu peso total sobre os pés. - Temos ainda mais um lugar para visitar.

— Qual?

Tentei umedecer meus lábios antes de responder. De repente, eles pareciam tão secos. Busquei respirar fundo e devagar quando meu coração ameaçou martelar em minhas costelas, não iria dar para trás agora.

— O cemitério.

 

Caminhamos num silêncio solene entre incontáveis sotobas, sendo cada vez mais cercados pelos nomes dos mortos, escritos em madeira e esculpidos em rocha ao longo do caminho. O céu estava mais escuro por conta das nuvens ainda mais pesadas, o ar era frio contra a pele e causava arrepios que viajavam da espinha até as pontas de meus dedos. Mas eu podia jurar que meu sangue se transformou em pequenos cristais de gelo no momento em que identifiquei a lápide da família Uchiha em meio a tantas outras.

Foram poucos os passos que pude dar até minhas pernas desistirem de mim e meus joelhos irem de encontro ao chão duro. A sensação era completamente diferente de quando estava paralisado em frente à antiga casa. Ver a lápide com o nome da família em destaque, os nomes dos meus pais cravados na pedra à frente, foram como um soco forte no estômago. Meu nome e de Itachi também estavam ali gravados, porém pintados em vermelho como uma indicação de que nossas cinzas ainda não ocupavam aquele espaço. Não pude evitar de sentir um calafrio por pensar que a tinta do meu nome chegou tão perto de ser removida poucos meses atrás.

O ar possuía um leve toque de um incenso já acabado, havia flores frescas e água preenchia até o topo dos devidos recipientes - Itachi havia passado por ali. Seria uma boa ideia enviar uma mensagem para ele avisando que eu estava em Nakai, e faria isso, só que outra hora.

Mas aqueles eram meros detalhes, pois, pela primeira vez, desde aquela noite, eu estava reencontrando os meus pais.

— Otou-san… Okaa-san… - A voz saiu baixa, quase sem força, ou sem coragem. As pontas dos dedos tremulavam contra minhas pernas. - Demorou um pouco, mas eu vim.

Pontos nas pedras ganharam um tom mais escuro à medida em que eram atingidas pelas gotas d’água que começavam a cair das nuvens. Estava começando a chover.

Mas pouco me importei quando também fui atingido pelos pingos gelados. Apertei meus dedos em punho, demandando controle sobre eles novamente, e levei uma mão ao interior de meu casaco para pegar o lenço ali guardado. Não tinha os materiais devidos, nem uma escova sequer, mas o túmulo era novo, praticamente não havia sujeira - devia bastar.

Aproveitei as gotas da chuva - já mais intensa - para conseguir esfregar melhor o lenço pela lápide em movimentos lentos e cuidadosos.

— Como vocês têm passado? - Meu interesse em saber era genuíno, apesar de saber que não teria resposta. - O Itachi está bem, mas vocês já devem saber disso, já que ele sempre fala com vocês, né? Ele e a Izumi continuam juntos, obviamente. Ela até falou de casamento esses dias, não sei se eles já estão planejando alguma coisa. - Distante, notei uma pequena risada escapulir de mim. - E Itachi tem até lidado bem com tudo. Ele cuida da empresa, ainda tira notas perfeitas na faculdade e… - Pausei para respirar um pouco mais fundo, era difícil chegar nessa parte. - e tem cuidado de mim também.

Tirei um momento para observar melhor a lápide, cada ranhura e cada nome gravado ali. Os nomes dos meus pais eram as gravuras mais destacadas por estarem mais limpas, o que era óbvio, já que suas tintas foram removidas recentemente. Meus olhos arderam, mas me mantive firme.

— Eu devo desculpas a vocês. Tentei negar o que aconteceu por tanto tempo que acabei negando vocês também. E isso me levou para um lugar… muito ruim. - Tentei engolir o que estava entalado em minha garganta, pensar naqueles primeiros meses era difícil, todos os sentimentos ainda tão frescos pelo pouco tempo que havia passado. - Mas uma coisa inesperada aconteceu. - Uma sombra de um sorriso se fez presente quando pensei em Sakura. - Eu ganhei um anjo da guarda e ele me tem feito companhia todo o santo dia. É meio irritante porque ela é uma pentelha, mas ela me ajudou a ter uma vida novamente. Fiz novos amigos em Tokyo e eles são muito leais, do melhor tipo. Vocês iriam gostar deles. - Franzi o cenho ao refletir um pouco mais sobre aquilo, e acrescentei. - Acho que otou-san iria achar o Naruto inconveniente, mas, no fundo, iria ter ele como favorito. - Soltei uma risada pelo nariz e senti a corrente quente de ar sobre a pele, resfriada pela chuva constante. - Queria que vocês tivessem conhecido a Sakura.

Meu peito se contraiu com a visão de eu levando Sakura em nossa casa para apresentá-la aos meus pais, todos nós sentados juntos à mesa, conversando sobre assuntos sem grande importância e rindo. Aquilo nunca poderia acontecer. Era um passado que, apesar de fantasioso, não deixava de doer menos.

— Não vou mentir, tem sido difícil sem vocês. - Sussurrei a confissão para seus nomes, a garganta se fechando cada vez mais. - Sinto saudades. - Um soluço doloroso tentou abrir passagem pela minha garganta e afundei os dentes com força no lábio inferior para me conter. Senti que engasgava com ar.

— Até mesmo o céu, com toda a sua grandeza e poder, chora. Então, por que você não se permite chorar? - A voz de Sakura atrás de mim quase me sobressaltou, mas não por eu ter esquecido que ela estava ali comigo.

Aquelas palavras pareciam um martelo, e senti algo pesado e frio trincar dentro de mim. Por entre os espaços formados pela rachadura, algo vazou e não parou mais, como se fosse um dique e, então, ele estourou, liberando tudo o que continha atrás de si. Um lamúrio escapou de meus lábios ao mesmo tempo em que senti meus olhos se encheram tanto de lágrimas que elas começaram a cair e eu não conseguia fazer nada para conter isso. Levei as mãos ao rosto, ao menos para tentar esconder o meu acesso.

— Por que está tapando o rosto? Não precisa ter vergonha. - A voz de Sakura agora vinha de frente. - Eu sei que tem sido duro para você, e é disso que você precisa.

Lentamente e com muita incerteza, recolhi minhas mãos. Era difícil ver através das lágrimas, mas não tive dúvidas ao identificar a mão de Sakura repousada sobre meu ombro. Apesar de não senti-la fisicamente, fiquei imensamente grato por aquele gesto, que me lembrava que eu não estava sozinho, que não precisava passar por aquilo sozinho.

— Você tem segurado isso dentro de si por muito tempo... - Ela continuou, tomei coragem para encará-la e me deparei com olhos esmeraldas igualmente afogados em lágrimas. - Vamos, chore o quanto quiser, extravase sua dor, grite se for necessário. Se quiser, posso sair, mas se não, eu fico aqui, ao seu lado, vou chorar com você e vou gritar com você o quanto for preciso para diminuir sua dor.

Então, eu apenas me permiti sentir. Voltei meu rosto para o céu e vi cada gota que vinha de longe e batia no meu rosto e escorria por ele. O céu também estava chorando, se derramando sobre tudo que estava abaixo de si, sem vergonha. Então, deixei que tudo viesse para fora também. O choro vinha rasgando o meu peito, camadas e mais camadas acumuladas e jogadas no fundo de minha alma finalmente sendo jogadas à luz. E só deixei que elas submergissem para que eu as derramasse para fora e fossem lavadas pela chuva.

Doía tanto, a falta deles deixou um buraco latente dentro de mim e eu estava desesperado para preenchê-lo com o que quer que fosse. Não deu certo, era hora de tirar o curativo para deixar a ferida respirar e retomar o seu processo de cura.

Depois de um tempo, quando eu já não sabia se o que lavava o meu rosto ainda eram lágrimas ou apenas chuva, minha visão foi tomada por um rosa suave pelo qual eu já havia me pegado tanto. Demorou um instante para eu entender que Sakura estava me abraçando. Eu não sentia o seu corpo contra o meu, mas ali, encharcado pela chuva gélida, me senti aquecido naquele momento. Envolto naquele conforto, mais algumas lágrimas encontraram seu caminho e escorreram livremente.

Quando Sakura recuou, ela manteve suas mãos sobre meus ombros e seus olhos eram os mais afáveis que já vi. Ela se inclinou até que seus lábios estivessem repousados contra minha bochecha. Houve um estalo quando Sakura finalizou o beijo, mas ela não recuou. Suas mãos subiram até as laterais de meu rosto e, mesmo sem eu realmente ter um tato daquilo, pude sentir toda a delicadeza que ela colocava naquele gesto. Sua testa foi apoiada contra a minha, e agora não víamos mais nada além dos olhos um do outro.

Coloquei todo o meu foco naquelas esmeraldas, que me olhavam como se eu fosse a pessoa mais digna de seu amor no mundo. Ela se manteve ali, até eu acreditar que era, sim, digno daqueles sentimentos - e não só dela. Era tanta ternura e afeto transbordados que eu consegui conectá-los a outros momentos, a outras pessoas. E tudo estava ali, ainda comigo, dentro de mim, mesmo que alguns momentos ou pessoas nunca mais voltem, eu tinha tudo guardado comigo até o fim.

Talvez eu tivesse isso por todo esse tempo, mas simplesmente não vi porque estava ocupado demais tentando deixar de sentir. Já estava na hora de acabar logo com isso e impôr um ponto final. Tinha que ser assim, pois, onde há um fim há um começo. E eu queria iniciar minha vida novamente, com Sakura, Itachi e meus amigos tomados de bom grado ao meu lado.

Quando me dei conta, a chuva já havia se reduzido a uma garoa e minha respiração havia se normalizado, já que o choro havia cessado há tempos. Sorri com gratidão para aqueles olhos ainda firmes à minha frente, os cílios ainda úmidos por suas próprias lágrimas, e ergui uma das mãos àquele rosto, querendo tanto tocá-lo. Era a maldição por me sentir assim por alguém de outro mundo, não é? Podia vê-la e ouvi-la... mas jamais tocá-la.

— Obrigado. - Disse a Sakura, mas não somente a ela.

 

— Sasuke! - Ouvi Itachi me chamar antes mesmo de vê-lo saindo de um carro enquanto ele ainda estacionava. Ouvi barulhos de protesto de dentro do veículo, que muito se pareciam com o jeito de Shisui. - Por que não ligou antes? O que aconteceu? - Ele foi despejando sua preocupação enquanto se apressava até mim. - Você está todo ensopado- uf!— Itachi perdeu o ar quando me joguei contra ele, meus braços se enlaçando em volta dele com toda a força que me restava.

— Obrigado por não desistir de mim… nii-san. - Disse contra o seu casaco. Afundei o rosto em seu peito, sentindo o seu cheiro característico, era o cheiro de casa, cheiro de família.

Itachi claramente hesitou com o meu gesto inusitado, mas logo que ele conectou todos os pontos, levou sem mais delongas os seus braços ao meu redor e igualmente os apertou. Senti ele afagando o meu cabelo com o próprio rosto, sem se importar que ele estivesse encharcado.

— Que tipo de irmão mais velho eu seria se desistisse do meu próprio irmão cabeça dura? - Ele falou baixinho ainda entre os meus cabelos.

— Eu… fui na nossa casa também. - Itachi pausou qualquer mínimo movimento. - … E quebrei algumas coisas. - Confessei, encolhendo os ombros levemente em vergonha.

Por algum motivo que não consegui identificar, Itachi relaxou contra mim, um leve suspiro esvaziando seus pulmões.

— Tudo bem, a gente conserta depois. - Ele levantou uma mão até o meu escalpo e passeou os dedos por lá. - Mas vou descontar da sua mesada.

Uma pequena risada se formou do fundo do meu peito, um calor que não tinha muito a ver com o corpo de Itachi pressionado ao meu se espalhou por mim. Pelo canto dos olhos, encontrei Sakura parada a uma certa distância de nós. Diferente de quando me derramei no cemitério, agora Sakura ofereceu apenas o seu silêncio cortês. 

Há um provérbio malawiano que me chamou atenção mais do que o livro que o continha escrito. Esse provérbio diz que um dia de chuva supera, em muito, um ano inteiro de seca. E, pensando agora, os malawianos têm toda razão: um único dia de chuva pode trazer de volta a vida e acabar de vez com os horrores da seca.

Uma vez, Sakura disse que minha vida era uma jaula. Por eu estar vivo, ela ainda permanecia neste plano. Bem, essa jaula me libertou.

 

 


Continua...


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Notas finais do capítulo

Fun fact! Até que a Morte nos Una foi inicialmente pensada para ser uma história de terror, que era mais o meu estilo na época em que comecei a escrever. Eu tinha essa ideia advinda de uma das primeiras fanfics que li na vida e nunca vi finalizada (nem encontrei ela na internet mais :( ) de um grupo jogando Ouija e se dando mal por conta disso. Porém, num belo dia, esbarrei nessa fanart de Miitu Miyuki (cujo perfil no Deviantart sumiu recentemente aaaa), que é a foto de capa desta história, e acabei remodelando basicamente tudo até chegar onde chegamos :D
Eu gostaria muito de poder mandar uma mensagem agradecendo pela inspiração tho :/



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