O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 7
Capítulo 7




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Era cada coisa que acontecia. Foi coçando a cabeça até em casa, quase abrindo uma ferida no couro cabeludo pensando, refletindo, se perguntando, perguntando a Deus, questionando sua Mãe, e se naquele instante passasse um transeunte na rua, perguntaria a ele também. Até um cão sarnento deveria saber mais coisa dele do que ele próprio. Porque? Porque? Porque? Nuvens negras se formavam dentro dele, daqueles nimbus de deixar estragos por onde passasse. Aquele acúmulo de coisas ruins, de desesperanças, de desconexão com a realidade o aperreava, mas a maior tortura era ele não saber que nome dar a coisa que crescia dentro de si. Já faltava espaço para ela se desenvolver. Uma hora ela ía sufocá-lo, e ele só tinha essa certeza, não sabia batizar aquilo.

 

Apressou o passo, abriu a porta de casa que estava estranhamente no escuro. Ele assegurava que tinha deixado a luz ligada ao sair, para o caso de Desirée despertar e não ficar assustada com a escuridão. Mas o susto quem levou foi ele quando apertou o interruptor. Não podia crer na cena. A pobre cachorrinha, Luli. Era ela ali mesmo deitada no chão da sala inerte com as tripas para fora do corpo? Havia um rastro de sangue que levava ao quintal. Encontrou Desirée de pé, nua, segurando na borda da cisterna olhando para os sacos de ossos jogados lá dentro, com uma faca caída ao seu lado e o rosto salpicado de sangue.

 

Não podia ser. Ele se recusava a acreditar que a esposa fosse capaz de praticar uma ação hedionda como aquela. Seria ciúme? Se fosse, do que ela seria capaz quando soubesse do beijo que dera em Selma há pouco? Aproximou-se da mulher, chutou a faca pra longe e abraçou-a por trás sentindo metade angústia, metade amor.

 

— Meu amor, porque você fez isso com Luli? – Perguntou ele com a voz embargada sem esperar resposta de Desirée, que permanecia taciturna e imóvel – Se eu soubesse o que você estava sentindo, as coisas poderiam ter sido diferentes. Você não se abre comigo. Eu te amo.

Dito isso, a levou para o banheiro, banharam-se juntos e fizeram amor debaixo do chuveiro. Ela quieta e Diolindo chorando.

 

Depois que colocou-a deitada confortavelmente na cama, buscou um saco de aninhagem e abaixou-se para pegar o corpo do animal para condicioná-lo. Limpou os rastros de sangue na casa, fechou a tampa da cisterna e lavou a faca. Depois de pensar muito e enfiar o dedo na mesma ferida tantas vezes, decidiu que o melhor lugar para Luli descansar seria ao lado da sua Mãe. Achava que estava se acostumando em exumá-la uma vez por dia. Já não sentia nada quanto a isso de tão resignado que estava com a sua sina. Sua Mãe não queria lhe deixar em paz e pronto.

 

Esperou aquela segunda-feira anoitecer e agradecia pela sorte do povo ir buscar sua alegria em outras paragens e deixar a comunidade quase vazia. Nem tanto para o flagarem violando sepultura, e mais para não testemunharem a vergonha estampada no seu rosto por ter que fazer isso todos os dias.

 

Parecia que a pá já o esperava alegremente no canto do quintal. Já ia ficar sem saco plástico pra fazer de luva. Pano de prato só tinha mais um. Se sua Mãe o chamasse mais umas duas vezes, seria necessário comprar um pacote de luvas e máscaras cirúrgicas. Além de contratar um advogado para pedir um habeas corpus preventivo em caso de flagrante delito.

 

Pegou o saco com o corpo ainda morno de Luli e saiu arastando os pés que quase se recusavam a seguir até o destino. Mas sabia que era o certo a se fazer. Já tinha se apegado ao animal e ainda lhe custava a crer que Desirée fosse capaz de tamanha crueldade. Ao menos uma coisa era certa na sua cabeça pivotante. Aquela mulher mataria por ele. E ele tinha certeza que faria o mesmo por ela.

 

No céu, uma lua cheia abençoava os que pudessem contemplá-la. Uns uivavam, outros rezavam, alguns realizavam desejos irascíveis, outros a esperavam para pedir alguém em casamento, uns poucos viravam lobisomem, tinha aqueles que escreviam com maior inspiração e, em quantidade menor, alguns por falta do que fazer de melhor, desenterravam a Mãe.

 

Começou a cavar mecânicamente, sem nenhum prazer, quase com indiferença. Já nem se importava em cobrir o rosto para evitar a fedentina. Achava que já estava impregnado pelo odor. Aquilo tinha grudado na sua pele de tal forma que nenhum sabonete conseguiria mais ocultar. Não sabia com que viés encarava aquilo. Era como se fosse um trabalho não remunerado. Era como visitar sua Mãe no asilo. Era como se também estivesse morrendo aos poucos e cada vez que a exumava, algo de si ficava naquele buraco junto com ela. Sempre ia para casa se sentindo incompleto, com um pedaço da sua lucidez a menos. Mas ainda assim estava ali, cavando.

 

Depois de um tempo notou que já tinha cavado fundo demais. Olhou ao redor e espremeu as vistas. Sim, estava no lugar certo. Cavou um pouco mais e sentiu o baque familiar. Mas havia algo errado no barulho da pá contra a madeira. Sempre era algo mais portentoso. E agora ouvira um, pum! Como se tivesse tocado num caixote de tomate. Desceu e começou a tirar o barro da tampa com as mãos como sempre fazia e logo percebeu que aquele não era a urna em que sua Mãe fora enterrada. Não tinha o vidro que emoldurava a face do cadáver. Já em quase desespero, soltou os parafusos da tampa do caixão de madeira barata e nem precisou da pá para abrí-la. Não havia mau cheiro algum, ou se havia era quase tão inodoro ou normal quanto de gente viva suada. Mas havia um cadáver ali. Com a ajuda da lua cheia, retirou o excesso de flores ainda com as suas côres originais, jogando-as para fora do buraco. Quem quer que estivesse ali dentro era um morto recente, ainda tava fresquinho. Quando conseguiu se desvencilhar de metade das plantas distinguiu quem estava ali dentro. Esfregava os olhos como se eles estivessem lhe pregando uma peça. Enfiou as mãos por trás do pescoço do cadáver e ergueu um pouco sua cabeça ainda flexível. Não havia dúvidas, era a menina, a mesma menina dona de Luli. A mesma criança negra que dissera não ter sorte na vida e se virava como podia. Ela, que de vez em quando dormia na barraca de Franco. Que o fizera abrir o túmulo da sua Mãe para provar que Luli estava mesmo ali. E sua Mãe, onde estava? Coçou a cabeça com a mão suja de terra.

 

Ficou ali atordoado como a esperar mais uma resposta para uma coleção que vinha juntando há alguns dias. Sem querer olhar o corpo da menina por inteiro ao menos para tentar descobrir do que ela tinha morrido, pegou o saco que guardava a cadelinha e jogou por cima do corpo da sua dona original. Sem querer se demorar mais por ali, fechou o caixão, jogou-lhe terra por cima, e não sabia se era um alívio não ter visto a Mãe, ou era mais uma peça de um enigma interminável. Não que ele ficasse triste, pois sabia que por ali não voltava mais. Era só uma questão de.....Era melhor não saber onde sua Mãe estava. Que estivesse num bom lugar. E que ela só aparecesse em seus sonhos, e mesmo assim não precisava ser todas as noites.

 

Voltou pensativo para casa. De que a menina tinha morrido? Naquela idade a tinham matado era quase certeza. Não havia sinais visíveis de atropelamento ou acidente. Teria sido arte do ex-padre excomungado? Fora algo sorrateiro. Como descobrir algo? Se fosse até a casa da garota e perguntasse por ela já pareceria um suspeito em potencial. A mãe provavelmente estaria com ambos os peitos ocupados tentando alimentar suas crias e alguém debaixo das suas anáguas fazendo mais uma. A melhor estratégia era a boca fechada, Algo lhe dizia que logo saberia. Dito isso, girou a chave da porta de casa e parou imediatamente. Ouvia um arfar, gemidos, rangidos de mola. Abriu a porta esbaforido e correu pro quarto. Era só mais uma visão de desastre naquela noite. Só mais uma. Mas que não ficaria barata.

 

Na cama da sua Mãe, Franco estava nu em cima da sua mulher, também nua, movimentando-se como um garoto de quinze anos tirando a virgindade de uma donzela. Não pensou duas vezes, levantou a pá e sentou-a na base do crânio do homem que não viu absolutamente mais nada depois.

 

Arrastou o corpanzil do velho para o seu antigo quarto e amarrou-lhe as mãos e os pés com uma corda de varal.Enfiou uma meia suja na sua boca, rasgou o pano de prato e passou-lhe pela boca amarrando-o atrás da cabeça. Pelo baticum no peito, estava vivo. Voltou para o quarto e contemplou a sua mulher com expressão de quem acabara de ser estuprada e estava em estado de catatonia. Ele deitou-se ao seu lado, tendo a delicadeza de acarinhá-la e manter os gestos delicados para não assustá-la mais ainda. Beijou-lhe a face molhada com o suor do velho e se ofereceu para banhá-la. Olhou seu rosto sem expressão e decidiu que aquilo era um sim. E assim o fez.

 

Com a sua esposa recuperada parciamente da tragédia e agora dormindo o sono entrecortado dos devassados, teria que pensar no que fazer com a nojeira humana que estava empestiando a sua casa. Nem sua Mãe morta fedia tanto quanto aquele homem. E ele teria que lhe dar explicações. Muitas antes de decidir qual sacramento iria lhe dar depois. Deixou a pá ao lado da cama. Seria o remédio do velho toda vez que acordasse. E pediu a Deus de mãos juntas que em cada dose que lhe aplicasse, não fosse forte o suficiente para matá-lo, pois o queria vivo. Não conseguiu pregar olho. Levantava religiosamente toda vez que ouvia algum grunhido vindo da sala e aplicava o sonífero na cara no homem. Cada vez em um lugar diferente já que o seu rosto macilento estava ficando bem feio a cada aplicação.


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