O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 31
Capítulo 31




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Ele subiu no ônibus antes do dia amanhecer e um pressentimento ruim lhe apertava o peito. Sempre fora um homem cético, não acreditava em crendices, mas daquela vez a coisa veio forte. Era quase uma sensação de perda. Quando o ônibus começou a se movimentar, ouviu os gritos do lado de fora. A filha e, a sua mãe muda, sacudindo os braços atônitas, implorando que o veículo parasse. O motorista assustando-se com a idosa que se prostrara à sua frente, quase teve um troço sem querer crer que as quadrilhas tinham se sofisticado de tal forma que agora contratavam velhinhas para praticar os seus assaltos. Pisou o pé no freio e foi acalmado por um passageiro de idade que pedia pra desembarcar. Ele não iria seguir viagem. Mas rapidamente o ônibus alçou a estrada para diminuir um pouco o atraso.

 

— Mamãe disse que o senhor não pode seguir viagem, caso contrário uma desgraça vai lhe acontecer!

— Como assim? – Indagou lembrando a sensação que sentira.

— Ela me contou que quando se sentou ao seu lado no ônibus lá na capital sentiu uma aflição, mas não sabia dizer o que era. Mamãe adivinha muitas coisas durante o sono.

A velha se desdobrava em gestos para a filha com um semblante de apavoro lhe granjeando a face.

— Ela sonhou com a sua morte.

— Mas como? Eu só estou indo me encontrar com uma das minhas filhas.

— A filha viva?

Almeida arregalou os olhos e aceitou o convite para voltar a casa humilde da mulher que traduzia o que a velha lhe comunicava.

 

A mulher alquebrada por seis gravidezes em menos de seis anos fora passar um café forte que quase lhe custara o pó da semana inteira, enquanto sua mãe, sentada ao lado dele no sofá, juntava as mãos e o olhava com uma cara que era metade piedade, metade alívio, mas ali ainda havia uma pitada de angústia temperando aquele angu de caroço.

 

Se consumindo em agonia, ela buscou um lápis e um pedaço do saco que embrulhava um pão dormido e escreveu, desenhando as letras o mais que pode, para que não houvesse erro na interpretação.

SUA FILHA VIVA ESTÁ NA COMPANHIA DE UM PADRE, DE OUTRO QUE ELA GOSTA, E DE UMA ENTIDADE QUE NÃO SEI DO QUE CHAMAR, POIS NÃO ENXERGO SUA AURA. E TÊM UMA MOÇA DE PORTE AVANTAJADO. HÁ UM CASAL, SÃO PESSOAS BOAS. HÁ UM HOMEM DA LEI QUE NÃO ESTÁ EM POSIÇÃO FAVORÁVEL. O PROBLEMA SÃO OS DOIS HOMENS ARMADOS.

 

Entregou o bilhete esperando que ele lesse e pudesse lhe poupar de dizer quem era um dos homens armados. Mas sabia que em menos de um dia, seus netos seriam filhos de bandido preso ou de bandido morto. Aquela parte da revelação não tinha ficado clara no seu sonho, que tinha a ver também com morto matando vivo, algo que sua cabeça limitada não teve sucesso em interpretar. Almeida se perguntava como aquela mulher poderia saber de tudo aquilo. Era o destino pregando peças. Identificara Franco, Fredson, talvez Diolindo. A gordinha podia ser qualquer uma, até a cozinheira de Clarice. A mulher sem aura, o casal e a dupla armada não fazia ideia de quem pudesse ser. Escreveu no papel e entregou a sua interlocutora quando lhe chegou o café.

 

— Mamãe pede que eu te leve até um homem que pode ter informações do paradeiro dessas pessoas aí que ela escreveu, incluindo a sua filha.

 

Pouco tempo depois a velha o segurou pelo braço e o levou por entre as pequenas ruelas de terra do arraial até alcançarem uma casa que parecia ser uma das melhores do lugar, não só pelo tamanho, mas também pelo aspecto viçoso de um pequeno jardim e um portão quase tão grande quanto toda a metragem da frente do terreno. A mulher bateu palmas, apesar da residência contar com uma campainha, que era ignorada solenemente por todos que queriam falar com o senhor de aparência austera que aparecera na soleira da porta e, que depois de reconhecer quem o chamava, soltava um riso ruidoso e caminhava até o portão com o auxílio da sua bengala.

— Dona Santinha, a que devo a honra da sua visita? – Disse lentamente, soletrando cada palavra como se estivesse falando com um gringo.

A mulher devolvera a resposta com os mesmos movimentos de boca, só que sem emitir nenhum som. Almeida sabia que estavam fazendo leitura labial e que se conheciam há tempos.

— Bem Zuza. Preciso de ajuda aqui pra esse senhor.

O véio Zuza o olhou como se estivesse aparecido no lugar naquele instante.

— Vindo da senhora pode contar comigo. Querem entrar?

 

Santinha o puxou novamente pelo braço até o interior da casa de Zuza, que vivia sozinho desde sempre. Depois de uma introdução sobre os seus poderes adivinhatórios, já conhecidos do anfitrião, desde que ela o ajudara a achar um cabra safado que lhe devia um dinheiro, ela pediu que ele fornecesse pistas sobre a quem tinha vendido a sua carroça com os dois jumentos.

Depois de assustar-se com o que a mulher sabia, coisa que não tinha dito a ninguém, se recompôs e tocou a contar todos os detalhes que sua memória prodigiosa pudesse lembrar. Do padre com cara de safado e cheiro de pinga abraçado a cozinheira do Sérgio, sitiante local, do homem magro acompanhado de uma mulata linda e carregando uma noiva que lhe parecia morta ou desmaiada. Da direção que tomaram para o arraial, ali onde estavam, mas que nunca tinham chegado e, da conversa entre dois homens querendo saber que rumo a carroça tomara. Um deles era o capataz do mesmo sitiante e o outro era um arruaceiro de marca menor que vivia fumando e vendendo erva para os caipiras locais.

 

Enquanto processava todas aquelas informações na sua cabeça sem saber ao certo o que significava, alguém gritava na porta de Zuza.

— Sêo Zuza, Sêo Zuza!

— É Ditinho, sempre que acontece alguma coisa nova aqui na região ele vêm bater aqui pra me contar.

O velho pediu um minuto, manquitolou até o portão, ouviu o que o menino tinha a dizer e voltou.

— Foi um ônibus que saiu agora de manhã pra capital que capotou na Curva do Cavalo e rolou ribanceira abaixo. Parece que não sobrou ninguém pra contar a história – E riu de forma canhestra olhando no rosto de Almeida, que agora enxergava no branco dos olhos da velha surda e muda a imagem da sua quase morte em câmera lenta e em preto e branco.

 

###

 

Florinda pagou o táxi, segurou o bebê firme nos braços e caminhou poucos metros até o endereço. Havia duas portas de comércio bem grandes, fechadas, e com um aviso onde se lia.. REABRIREMOS NA SEGUNDA FEIRA. Bem no meio dos avisos, uma porta com o número do imóvel que ela buscava. Inseriu e girou a chave com uma das mãos, enquanto a outra levava Babi e a bolsa com as suas roupinhas. Entrou na casa simples, porém ampla, pousando a bolsa no sofá da sala com as paredes coalhadas de fotografias da família, todas emolduradas. Era um homem que gostava dos seus. Entrou no quarto maior, virado pro quintal, e abriu um dos janelões de aspecto pesado. O que mais lhe chamou a atenção no seu campo de visão era um pé de jaca enorme. Deixou Babi dormindo na cama de casal, protegida por dois travesseiros, e foi pros fundos. Puxou uma cadeira de balanço e a pôs embaixo da árvore imponente. Dali poderia admirar como seria a sua vida dali em diante sem a necessidade de correr atrás do policial veado que lhe iludira com promessas, apenas pra lhe comer e dar satisfação aos seus colegas de distintivo, assim lhe dissera. Se era pra fingir não precisava penetrá-la, mas ele queria provar alguma coisa a si mesmo. E achava, que no fim, ele havia conseguido. Ainda lembrava da pintura que ele fizera na parede do quarto da pensão com o seu regurgito. Ela não era puta, mas aceitara o dinheiro pra completar o seu salário de garçonete, além do mais achara o cara atraente. Dera com os burros n´água quando soube que estava grávida. Era dele, sem dúvida, já que a sua relação sexual posterior fora com o gerente do bar que trabalhava. Só tinha ido pra cama com o anão pra não perder o emprego, já que contava com quase seis meses de gravidez e o homem só tinha tara por mulheres prenhes.

 

Quando avisara ao policial ele teve um chilique no telefone, mas havia prometido ir ao hospital, e não fora. Aí apareceu aquela alma bondosa. Gostava de homens mais novos, mas nada nesse mundo a faria desistir de tentar uma boa relação. Tinha que pensar em Babi. Suspirou profundamente e fechou os olhos, que não tiveram tempo de abrir novamente para ver o que lhe havia atingido a cabeça.

 

###

 

Romeu voltara do ataque a Desirée transpirando em profusão e sentou-se diante do velho esperando ouvir algo que pudesse melhorar o seu humor. Atacara uma boneca pensando que estava matando gente de carne e osso. Que Godô não ficasse sabendo senão a gozação ia lhe consumir o juízo.

— Padre fale arguma coisa pra melhorá os ânimo – Disse puxando uma cadeira pra se sentar em frente ao velho e desamarrando-lhe as mãos.

Franco que percebera todo o ocorrido, ficou satisfeito por não ter sido com sua Gemima ou o seu filho.

— Sabe, todo padre deveria vir com um selo de qualidade tatuado na bunda..APROVADO POR CRISTO.. Como qualquer cliente pode pedir pra ver a cozinha de um restaurante, um fiel pode pedir pro seu padre baixar as calças, ou levantar a batina e depois assistir a missa tranquilo. Se é que ver um par de bagos velhos dependurados até os joelhos vai fazê-lo entoar a Ave Maria a plenos pulmões. Porque não?

— Você pode tudo né? Já ouvi dizer que padre fabrica fé nos fundo da igreja, mas eu nunca soube que diacho era isso.

— Há algo que não pode ser fabricado. A bondade. – Tergiversava Franco mais para prender a atenção do salafrário do que propriamente responder – Não tô falando de esmola. Me refiro a dar a roupa do corpo, doar o seu prato de comida quando se está com fome. Só pra isso eu tiro o chapéu, mas esse bicho em extinção não se encontra em zoológico nenhum do mundo. E só pode ser identificado quando lhe choca. Quando sai por aí nas noites de natal cobrindo o corpo frio dos bêbados sem teto, que além de não os agradecer, ainda manda-os tomar no cu. Se você vir um homem manter o sorriso enquanto o mandam tomar no fiofó, é desse bicho que estou falando, que tê essa malformação no coração chamada bondade. O coração dessas pessoas é tão mole que você faria um patê e o comeria com pão cantando jingle bells, assistindo sua árvore de natal pegar fogo.

— Meu Deus padre, que coisa de doido esse negócio de bondade. Acho que num é pra mim não.

— Você precisa ser menos crustáceo, ter menos merda na cabeça. Não sei se a causa é o seu mau hálito, mas o que você fala não vale uma diarréia minha – Refutou já perdendo a paciência com aquele serzinho menor e esperando um bofetão ou um tiro. Ao invés disso ele se levantou da cadeira e tascou-lhe um beijo na testa.

— Sei que vou pagar pelos meus pecados, mas quem não têm, né mermo?

Enquanto Franco ficava ali olhando a criatura com as nuvens de insanidade pairando baixas sob um véu de luto cobrindo os seus olhos trêmulos, ouvia-se um grito vindo lá de trás do acampamento.

— Romeu seu imprestável, vêm aqui me ajudar a levantar isso!


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