O CAMALEÃO SIDERADO escrita por MARCELO BRETTON


Capítulo 26
Capítulo 26




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Aparício colocou o telefone no gancho e testemunhou desolado o seu comércio vindo abaixo, lambido por labaredas de fogo que valsavam na lente dos seus óculos fundo de garrafa. Apesar de triste pelo sinistro, bem lá no fundo de si, algo lhe dizia que aquele incêndio poderia ter ocorrido há mais tempo. Se para alcançar uma graça teria que vir uma desgraça antes, ele não se importava em perder tudo o que tinha para entrar na vida do seu filho. Era uma entrada pela porta dos fundos, mas daí era querer demais que ele lhe recebesse com corbélias de flores depois de tanto tempo sabendo que ele estava morto. Sabia que iria enfrentar a ira de Fredson, mas depois passaria, e se abraçariam como pessoas do mesmo sangue fazia o tempo todo. Talvez ele tivesse até um quarto na sua casa para abrigá-lo enquanto o pior passava.

 

Juntou-se a ele, uma procissão de bebuns órfãos do único estabelecimento num raio de cinco quilômetros e que vendia pinga. Davam-lhe tapinhas nos ombros, lançavam-lhe olhares dúbios, meio tristeza, metade satisfação, achando que seus fiados estavam perdoados diante da tragédia.

Lembrou que o sítio do seu vizinho desafeto fabricava uma pinga de jaca de excelente qualidade. Coçou o lóbulo da orelha, olhou para a propriedade aparentemente vazia e caminhou a passos lentos até a porteira. Pulou-a meio sem jeito, sabendo que aquilo era invasão de propriedade, mas o que faria era apenas cobrar uma dívida. E entrou procurando a fabriqueta artesanal.

 

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Com a demora do Sr Almeida em voltar ao hospital público, Fredson resolveu voltar a recepção para ligar na central de mensagens e checar se alguma outra lhe fora enviada recentemente. Porém, enquanto discava do telefone público instalado ali, uma enfermeira lhe alcança esbaforida.

 

— Senhor Fredson, o bebê! – Tentava articular a frase tomando fôlego – O bebê entrou em coma!

O homem saiu a passos largos pelo corredor que o levaria a UTI pediátrica e, agora, com permissão do médico quase estrangulado, fora admitido no local sem violência. Aproximou-se do pequeno leito onde repousava o bebê agonizante, e olhou para a enfermeira que viera no encalço, pedindo permissão para segurar-lhe a mãozinha.

 

Abrindo uma pequena portinhola do invólucro, e com um gesto delicado, trouxe-lhe o membro diminuto do menino João em direção às suas mãos calejadas de homem da lei. Com uma lágrima lhe escorrendo no rosto, ele rezou como fazia com a sua avó durante a quaresma, invocando Deus para que lhe fornecesse o milagre necessário e permitir que aquela criança sobrevivesse sem sequelas. Seria o padrinho que zelaria pela sua segurança vinte e quatro horas, ou então o pai que a tiraria dos braços nefastos dos outros pais inconsequentes. Era isso então. Daria o melhor de si para que o menino pudesse ser alguém. O levaria consigo para sempre. Seria o seu pai e estava decidido.

 

O eletrocardiográfico começava a disparar e o monitor de atividade cerebral mostrava o retorno da criança que agora apertava delicadamente o dedão do detetive, que por sua vez, enxugava as lágrimas enquanto o seu dedão era abraçado pela mão diminuta. Uma enfermeira e o médico de plantão correram para checar os sinais emitidos pelas máquinas e pediram que ele esperasse fora da sala.

 

Meia hora depois, com a confirmação de que o bebê ficaria bem, Fredson pediu que qualquer informação sobre o seu estado fosse dado somente a ele, que a partir daquele momento seria o único responsável pela criança. Com relutância, o médico que presenciara a cena de interação entre os dois, concordou. A enfermeira chefe deu o seu aval. O que ela tinha visto ali tinha um nome apenas. Amor.

 

Ajoelhado na capela do hospital, Fredson fez o sinal da cruz depois de rezar, e sem pensar em mais nada, saiu do hospital voltado único e exclusivamente para o cumprimento da promessa que fizera a Deus segurando na mãozinha do seu filho. Precisava pegar um táxi.

 

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— Ande com isso hômi! – Gritava Godô, enquanto Romeu cavava quatro buracos na beira da estrada.

— Pra quê enterrar os jumentos?

— Pra não deixar rastros.

— E jumento é rastro pra quê Godô? Só se for pra urubu com fome.

— Pobrezinha das moças. Agora que a gente tava se divertindo – Afirmou Godô desviando as vistas dos olhos esbugalhados da magrona e do pescoço em frangalhos da baixinha.

— Pontaria das boa a minha – Gabava-se Romeu enquanto empurrava os corpos das moças vala adentro.

— Melhor fazer uma oração né?

— Eu num sei rezar – Desculpava-se o autor do ricocheteio épico, jogando a responsabilidade pro outro.

— Num podemos enterrar defunto sem dizer uma coisinha ou duas.

— Intão ocê reza que eu jogo a terra em cima. Vamo rezar pros jumentos também?

— Como cê é abestado hômi. Num se reza pra bicho morto. – Disse vendo a cara contrariada do amigo e sentindo o efeito da erva que lhe subia pro juízo – Tudo bem, vamo rezá pros jumento também.

E remendou algumas palavras de improviso.

— Senhor, abrace essas quatro almas por aí e bote num cantinho bacana. Os jumento pode ser num pasto verde sem fim só pra comer, cagar e mijar. As muié podia ser num posto de gasolina que abastece as nave espacial aí de cima, donde possa trabaiá de segunda a sexta e forgar no fim de semana. Bote umas maquiage nos buraco da bala pra não ficar feio pras moça aí e elas pudé arranjar hômi. Amém!

— Êitas palavra bonita sô! Inté emocionei! – Dizia Romeu dando um tapinha no cigarrinho do capeta ofertado por Godô enquanto rezava.

— Vamo picá a mula daqui. Joga a terra por cima que temo que seguir o rastro de um padre sem vergonha.

 

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Quando Franco sentiu o cheiro que vinha do fogão do acampamento, arrepiou dos pés à cabeça. Quando viu a travessa fumegando que lhe chegava na mesa, torceu pra estar sonhando. Mas pior que um beliscão pra lhe despertar, era o aspecto da iguaria cascuda boiando num caldo marrom e de cheiro forte.

— Aqui meu coroa, seu Nagasaki! – Proferia orgulhosa a gorduchinha toda faceira achando que estava realizando um sonho do velho. Troquei só uns temperinhos que não achei aqui na despensa, mas o bicho é o mesmo.

— Minha Gemiminha, tô meio sem fome. Podemos comer mais tarde?

— Claro meu amor, o importante é você se alimentar. Mais tarde eu esquento e comemos todos juntos. Aliás, quem é que tá se comendo ali? – Gemima fez uma cara lasciva apontando na direção da barraca de Plínio e Dorotéia.

— Dei umas aulinhas de catecismo sexual pra moça, coitada. Uma mal comida. Mas parece que a primeira lição ela aprendeu. Quando essa moça chegar no fim do curso, temo pelos meus bagos!

— Safadão. Bem que você podia me dar umas aulas também, né – Pediu, esfregando a sua bunda no colo do velho.

— Baby, pra você só se for pós-doutorado em putaria, mas você já é honoris causa em qualquer sacanagem.

— Hum, gostei, assim você me deixa mais excitada ainda.

— Nesse caso precisamos de um bote salva vidas, porque quando você molha as calçolas é pra matar um afogado.

 

E foram pra dentro da barraca passando suas mãos nas partes um do outro, enquanto Selma voltava preocupada da beira da estrada pra dar a notícia de que os jumentos tinham sumido. Também teria que arranjar uma maneira didática de explicar a Diolindo que bonecas não ficam prenhes. E também teria que pedir a Gemima a receita daquele tatu. Que diacho cheiroso!

 

Plínio estava com o seu membro em carne viva. Quando se negara a deixar sua mulher a manipulá-lo, ela simplesmente o ignorou e rasgou o seu calção praticamente com os dentes. Nunca tinha visto Dorotéia possuída daquele jeito. Parecia endemoniada. Deixou-o tão duro que achava que todo o sangue do seu corpo tinha ido parar no cacete. Com o mastro em brasa cutucara-lhe as entranhas em fortes estocadas. E o que era aquele palavrório descarado que ela recitava nos seus ouvidos como se fossem poemas pornôs? Achara tudo estranho e maravilhoso. Só não gostou quando ela achou de enfiar-lhe um dedo no seu cu dizendo que era uma espécie de supositório do amor. Não, não. Até toparia lhe comer a bunda antes das refeições, mas desde que deixasse o seu anel de couro de fora do processo.

 

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O morgue não era um lugar agradável de se frequentar. Era frio e com pessoas frias, tanto as vivas quanto as mortas.

— Me acompanhe por favor, senhor....

— Almeida, João Almeida.

— Me acompanhe Sr Almeida.

 

E seguiram por dentro da construção com paredes pintadas num verde catarro, manchadas pela infiltração. O perfume era uma mistura de éter com a água de colônia da decomposição, o chorume disfarçado por água sanitária de péssima qualidade. Por isso as pessoas que trabalhavam ali costumavam exagerar nos perfumes antes de sair de casa.

 

Ele já estava preparado para o que ia encontrar ali naquele frigorífico macabro, eram eles, ele tinha certeza. Já conhecia o seu vício em apostas, costume herdado por Sérgio do seu pai rico falido. Não apoiara aquele casamento, mas Bibinha dizia que era a chance da sua filha finalmente sair da comunidade e alçar voos maiores. De fato, esperava que ela estivesse no céu naquele momento. Ainda não sabia com quem tinha ficado o seu neto. Nas mãos de alguma babá? Em se tratando de Clarice, era bem provável. Insistira tanto em ver a sua gravidez, e ela sempre enfática pedindo apenas que os visitasse quando o neném nascesse. Se dizia feia, gorda, inchada. Mas ele era o seu pai e mesmo quando menstruara pela primeira vez, a levara pra jantar e comemorar o feito. Ela nunca esperara que o seu pai pudesse enxergar algo de bom em ver uma mulher sangrar. A despeito do seu rosto cheio de espinhas nessa fase, ele nunca esquecera de dar um beijo de boa noite, mesmo quando fechava tarde o bar e ela já estava dormindo.

 

A gaveta fora aberta, assim como o zíper. Diante da pergunta da moça, se ele estava preparado, ele confirmou com a cabeça. Mas não estava de maneira alguma preparado para ver o que viu. Clarice, o bebê que pegara no colo, transformara-se numa amálgama de ossos, sangue e carne. Destroçada pelos mesmos animais que ela julgava que lhe trariam a sorte grande. Talvez a sua sorte fosse morrer cedo e não ver as coisas ainda piores. O corpo de Sérgio não estava em melhores condições, mas era ele mesmo, dado ao dente de ouro na boca e um dedo indicador semi decepado por um acidente de carro.

 

Saiu dali nauseado e com sentimentos díspares a lhe sacudir o juízo. Precisava avisar Fredson. Precisava achar Selma e o seu neto. Precisava do conforto que a visão de Florinda e Babi lhe proporcionavam. Precisava vender o bar. Precisava de uma pinga de jaca, ou que uma jaca lhe caísse na cabeça.


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