A tragédia da dama escrita por Saulo


Capítulo 1
Capítulo Único




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O rio parecia tranquilo e ao mesmo tempo perturbador. A névoa decorava o espaço, além das plantas que se espalhavam pelos cantos. Os animais não ousavam dissipar o silêncio do local e permaneciam quietos em seu habitat, seja repousando ou esperando que algum ser mais vulnerável lhes servisse de comida. Os suspiros entrecortados de Samwell eram a única coisa que garantia que no local existia alguma vida. Não sabia dizer se o The Fogville's River exibia uma natureza sombria naturalmente ou se adquiriu aquele aspecto devido às tragédias que aconteceram ali.

A primeira foi "a tragédia da dama", como a população local e a imprensa costumeiramente a chamavam. Aconteceu de forma inesperada e brutal. Um casal teve a débil ideia de se casar neste lugar nada romântico. O rio geralmente era quieto, mas de vez em quando despertava sua fúria em quem estivesse por perto. Mesmo assim, os noivos alugaram um pequeno barco para a ocasião. Havia poucos convidados, incluindo uma jovem menina de olhos puxados chamada Catylyn. Ela iria ser uma das damas do casamento. A noiva detestava crianças e decidiu convidar garotas pré-adolescentes. Repentinamente uma tempestade de verão atingiu o local. O barco foi violentamente levado pela correnteza. Ela foi puxada para fora do transporte. Não sabia nadar.

No dia seguinte, a polícia encontrou seu corpo boiando no rio. O remorso fez o casamento em ruínas. Samwell ainda se lembrava da última gravação feita antes do ocorrido. Catylyn era tímida, por isso pouco apareceu. Todos estavam felizes. Agora, o noivo vivia recluso em algum local.

A segunda tragédia trazia consigo uma recordação ainda mais dolorosa. Os alunos do único colégio da cidade planejaram uma festa em um barco no mesmo rio. Fizeram de forma discreta. Festa com direito a bebidas e drogas.À época, Samwell estava namorando. Trouxe sua namorada, mas não conseguia desviar sua atenção de Jessie. Era sua amiga, mas sempre quis algo a mais. Não esperava que algum dia fosse tocar em seus lábios como estava acontecendo agora. Contentava-se então com namoros curtos. Depois da festa, ela começou a se distanciar e a trata-lo como se não existisse. Deixou de ser uma pessoa sociável. Ele não entendeu o motivo de tal comportamento. Ficou muito abalado psicologicamente. Começou a beber.Tentou pensar há quanto tempo não via ou, pelo menos, falava com Jessie. A ausência dela na sala de aula era cada vez mais frequente. Naquele ano ela foi reprovada, o que fez com que ficassem ainda mais distantes.

O barulho das sirenes era ouvido no horizonte. Conseguia ver de longe as luzes. Encontrou-a de forma repentina. Foi buscar alguns utensílios na cabana de seu avô e no caminho se deparou com Jessie sendo levada pela correnteza do rio. Seu cabelo castanho escuro estava enfeitado com um véu de noiva. Usava um vestido branco. Seus olhos escuros encontravam-se fechados. Estava muito magra e pálida. Seu rosto possuía um leve tom de maquiagem. O queixo e o nariz eram pequenos. Assemelhava-se a uma pré - adolescente. Assemelhava-se a Catylyn.

Só conseguiu pensar no quanto aquilo era perturbador depois de tira-la da água e fazer respiração boca a boca. O barulho das sirenes ficava cada vez mais próximo. Jessie não acordava e Samwell não sabia mais o que fazer. Ainda bem que chamou reforços. Talvez pudessem salva-la. Percebeu que seu casaco verde e sua calça jeans estavam molhados. E também seus óculos e seu cabelo loiro que batia até nos ombros. A barba lhe dava um aspecto mais maduro.

Pensou em realizar um procedimento de reanimação em Jessie, mas teve receio de que sua força bruta a machucasse. A ambulância chegou. Os homens desciam do veículo. Pela fisionomia deles, Samwell sabia que teria muitas perguntas a responder.
***
Muitas horas depois, Samwell estava em frente ao computador. O interrogatório da polícia o havia deixado cansado. Passou por um segundo interrogatório com seu avô quando chegou em casa. Disse que estava tudo bem e que Jessie estava viva.A notícia havia se espalhado por mais que a polícia tivesse mantido o caso em sigilo. Todos os jornais abordavam a história de Jessie e seu herói e de como o caso se assemelhava com ao da dama de honra. "Catylyn podia ter encontrado um herói como ele para salva-la", diziam os jornalistas. Samwell sentiu seu rosto corar.

Jessie mandou alguém para dizer obrigado antes que ele saísse da delegacia.Só soube de mais notícias quando ligou a TV. Jessie disse que foram os irmãos Charlie e Lúcio Devon que a empurraram para a correnteza do rio. Havia um vídeo dela sendo ameaçada de morte por Charles. Outro mostrando Jessie e outras duas meninas amarradas em um porão usando um vestido de noiva e um véu. Samwell conhecia todas, pois estudavam no mesmo colégio que ele. Segundo o noticiário, elas já estavam mortas em algum lugar do rio.Ele estranhou o fato.
Os jornalistas batiam na porta de sua casa. Ele disse para seu avô ignora-los e foi direto para o computador onde ficou por horas. O que leu sobre o caso não havia saciado sua dúvida. Esperou que a imprensa se cansasse dele para sair. Trocou de roupa e pegou sua bicicleta, juntamente com as chaves. O vento estava frio lá fora.

Pedalou até a cabana de seu avô. Acreditava que o porão que apareceu no vídeo era o mesmo da cabana. O abriu para verificar. Era idêntico ao do vídeo, a não ser pelo fato de que não havia um único ser vivo lá dentro, apenas um amontoado de objetos pertencentes ao seu avô.Saiu e refletiu sobre o que iria fazer com aquela informação. Olhou para o lado e viu uma carta sobre a mesa de madeira. Um adesivo em formato de coração selava o envelope. Samwell o pegou e abriu.

"O que estou para dizer é difícil de confessar, mas acho que lhe devo a verdade. Eu sei que me afastei de você depois daquele dia na festa. Isso o machucou e eu sinto muito, mas saiba que o que aconteceu me afetou profundamente. Naquele dia, eu estava bêbada. Muito bêbada. Foi então que os irmãos Lúcio e Charles resolveram que se aproveitariam de mim. Abusaram do meu corpo e de outras duas jovens. Tive forças apenas para dizer não, mas eles ignoraram as minhas súplicas. Saí da festa me sentindo um lixo. Tentei me recompor. A tragédia de alguma forma aproximou as vitimas. Formamos um clube secreto. Era uma forma de nos consolar. Ameaçaram atacar nossa família se contássemos o que aconteceu, e você sabe que os Devon têm poder aquisitivo suficiente para cumprir o que disseram. Foi então que elaboramos um plano de vingança. Sacrificariamos nossas próprias vidas se necessário para incrimina-los. Os detalhes você já deve saber. Eu ocultei algumas provas do plano na cabana. É por isso que eu lhe imploro e suplico que guarde segredo sobre o local. Por favor. Se fizer isso nosso sacrifício será em vão."Percebeu que um pedaço da carta estava úmido devido ao contato de uma lágrima. Samwell jogou a carta em pedaços no rio, trancou o porão e foi embora.
Jessie, 19 de outubro
Não acredito que tudo deu certo. Bom, não tudo. O fato é que eu deveria estar morta, mas já é tarde demais para isso. Não esperava que um herói típico de histórias de romance viesse me salvar. Achei isso tão romântico. Isso me faz lembrar da primeira vez em que me apaixonei. Estava folheando um daqueles romances do Nicolas Sparks quando ele me tirou a concentração. Robert Quick. Um professor de meia idade, mas com um jeito sensual que logo me conquistou. E então veio a primeira tragédia da minha vida. Ele estava prestes a se casar. Robert é MEU. Ele não podia simplesmente ficar com outra pessoa. Resolvi que iria destruir seu casamento. Entrei no barco sem ser percebida. Quando olhei para a noiva e o noivo tive um ataque de fúria. Foi então que uma chuva forte arrastou a embarcação pela correnteza. Aproveitei que uma das damas estava afastada dos outros e a empurrei na água. Isso com certeza deixaria sequelas no casamento. Consegui fugir assim que o barco parou. E claro, alcancei minha meta. Se ele não fosse meu não ia ser mais de ninguém.

Após alguns anos, aconteceu a segunda tragédia. Fizeram uma festa, e novamente em um barco. E eu fui. A forma como Samwell olhava para mim era tão pervertida e ao mesmo tempo fascinante. E ele mal conseguia disfarçar. A festa estava entediante, mas foi nela que apareceu uma oportunidade interessante: um grupo de meninas frágeis e fáceis de manipular. Encontrei-as na cama com as partes baixas de fora e chorando. Descobri rapidamente o que os irmãos Devon haviam feito. Foi então que iniciei o meu relato de como fui deflorada por aqueles monstros. E elas acreditaram em mim, obviamente. Tive que sacrificar minha relação com Samwell. Adorava brincar e exercer controle sobre ele, mas tinha que me dedicar ao meu clube secreto e macabro de garotas que estariam dispostas a matar e morrer se eu mandasse. Sempre sonhei com algo assim. Comecei a fingir que estava traumatizada mesmo quando não tinha ninguém olhando. Precisava convencer a mim mesma da personagem. O intuito do clube era vingança. Os irmãos as ameaçavam, então precisaríamos fazer algo esperto. Foram cautelosos ao usar preservativo, mas percebi que tinham personalidade explosiva, por isso convidei um deles até minha casa para dizer que sabia de tudo e iria contar para a polícia. Fingi ficar em pânico quando me ameaçou de morte. Isso fez com que fosse para casa com a certeza de que não contaria. Ele só não sabia que eu havia gravado tudo. Depois era só editar para parecer que eu fui estuprada também e mandar para a imprensa no momento certo. Eles poderiam subornar a polícia mas não todos os canais de TV. Resolvi fazer com que o caso tivesse máxima repercussão possível, e não existia forma melhor do que liga-lo à tragédia da dama. Perfeito. Contratei um cara para gravar as cenas. Disse que era para um filme de terror amador. Ele não pareceu muito convencido, mas aceitou fazer. Gravou cenas de nós três amarradas dentro de um porão. Escolhi a cabana do avô de Samwell, local já conhecido por mim. Era comum esquecerem a porta do porão aberta. Ninguém nos incomodaria num lugar tão afastado da cidade.

Tive que matar o cinegrafista só por segurança. Ele era um imigrante fugitivo. Ninguém ligaria. O problema é que tentei droga-lo para enfraquece-lo, mas não funcionou tão bem assim. Resultado: uma briga e vários rastros de digitais espalhados pelo porão. Mas não tinha problema. Daria um jeito nisso. Só faltava a última etapa: o sacrifício. Cometeríamos suicídio e morreríamos exatamente como Catylyn. Isso causaria revolta suficiente. Se a polícia não desse um jeito rápido a população o faria. Eu havia esquecido um detalhe. Samwell talvez percebesse a semelhança entre a cabana do vídeo e a de seu avô. Com certeza já estava muito familiarizado com o local. Se a polícia achasse o porão e as digitais fariam investigações mais aprofundadas, o que atrapalharia meus planos. Escrevi uma carta às pressas para satisfazer a curiosidade de Samwell e fazê-lo se silenciar. Ele acreditará, considerando o nível de amor que tem por mim. E o amor é cego. Apenas eu, ele e seu avô sabem da existência do porão. Disso eu tenho certeza.

Bom, não encontraram novas evidências até agora. Isso quer dizer que a carta funcionou, por incrível que pareça. Agora é só me comportar como uma menina apaixonada na presença de Samwell para manter seu silêncio de uma vez por todas. Eu agi de forma muito convincente no interrogatório. Infelizmente não pude retribuir toda a fidelidade que recebi das garotas. E mais uma vez eu me safei, mesmo sem querer. Mesmo não sendo de forma proposital. Estou pensando em agir novamente. Mas no momento certo, é claro.


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