Diot e a Sereia escrita por Sali


Capítulo 1
Diot & Amase


Notas iniciais do capítulo

É nois, mais uma one-shot, que eu consegui começar e terminar hoje (uhul :D)
Eu revisei, mas caso haja algum erro, avisem!
Espero que gostem :3



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Diot ofegava, correndo pelas vielas, por entre as casas de pedra. Era possível ouvir o tropel dos soldados em seu encalço e aquilo lhe era irritante ao extremo; sua sorte era que aquela cidade lhe era mais conhecida que a palma de sua mão. Num movimento veloz e certeiro, ela se enfiou num pequeno espaço entre duas casas e viu os cinco guardas passarem diante de seu nariz. Estava cansada e faminta, mas mesmo assim não podia dar-se ao luxo de descansar ali. Reunindo seu último ânimo e as habilidades que havia adquirido com as ruas, escalou rapidamente a parede de uma das casas — aparentemente uma estalagem barata. Nos telhados, sim, podia estar em paz.

Ainda ofegando, ela desembrulhou o que trazia dentro da camisa larga e encardida: um pão ainda morno — a razão pela qual estava sendo perseguida pelos guardas. Apenas o cheiro fez seu estômago vazio roncar, e ela não se demorou a partir um pedaço generoso, devorando-o enquanto observava a cidade onde nascera e as ruas que haviam lhe moldado.

Diot não sabia dizer ao certo sua idade. Perdera a conta havia algum tempo, mas, de qualquer forma, aquilo pouco lhe importava. Vivia nas ruas desde criança e àquela altura seus pés já estavam habituados com a aspereza das pedras do chão e com o calor que os telhados emitiam no fim da tarde. Acostumada também estava com a faixa que lhe apertava o busto e o corte desalinhado dos cabelos negros, fazendo-a passar por menino — um pequeno e muito magro, por sinal. Mesmo assim, gostava daquela cidade. Gostava do cinza das casas de pedra e da algazarra da feira central, com todas as suas vozes, gritos, músicas e sinos. Gostava do ar salgado de mar, da madeira enrijecida do porto e do cheiro forte de peixe e temperos que sempre vinha dos navios e dos homens. E gostava, sobretudo, de um lugar especial, que visitava de vez em quando, nos fins de tarde.

Bastava seguir por tempo suficiente à beira do porto e logo as construções começariam a sumir, dando lugar a um paredão natural; uma praia inabitada, repleta de pedras azuladas onde o mar batia, quando revolto, e beijava, quando calmo. Lá Diot gostava de sentar, aspirando o perfume da maresia, fugindo da confusão interminável da cidade, observando as gaivotas e a forma que os navios sempre pareciam infinitamente menores.

E lá, naquele fim de tarde, quando o sol já baixava, antecipando o magnífico encontro com o mar, Diot repousava, e viu o instante em que uma moça saiu das águas, vestida por trapos rasgados e molhados, com longos cabelos negros cobrindo os ombros cor de ébano. Inicialmente, Diot assustou-se; se escondeu atrás de uma pedra, observando a estranha surgida do nada. Aguardou que alguém aparecesse, mas depois percebeu que, com exceção delas, não parecia haver mais ninguém ali. Pior: viu-a cobrir os olhos com as mãos; parecia chorar, clamando por socorro.

Diante daquela cena, algo em Diot falou mais alto que a desconfiança aprendida nas ruas. Ela saltou rapidamente a pedra na qual se escondia, caminhando pela areia. Ao chegar diante da estranha, pousou a mão em seu ombro.

— ‘Tá tudo bem?

A estranha ergueu os olhos, e Diot pôde ver suas íris douradas, donas de um brilho estranho. Sentiu um arrepio na espinha, mas era tarde demais. Antes que pudesse piscar, a água salgada envolveu seu corpo, fazendo flutuar as roupas e os cabelos.

Não teve tempo de reagir. A estranha ainda segurava seu pulso, mas o outro braço lhe envolvia o torso, fazendo-a flutuar. As pernas haviam se tornado uma cauda escamosa e dourada. Diot e a sereia se beijavam.

O beijo durou alguns instantes, e, quando se findou, o ar faltou nos pulmões da humana. Debatendo-se, ela buscou a superfície e rolou na areia, sentindo o peito queimar com a falta de ar. Ficou pelo menos alguns segundos ali, ofegando e tossindo, com as roupas grudando-se ao corpo e os olhos fechados. Quando finalmente os abriu, viu o céu com poucas nuvens. E, logo depois, o rosto da sereia.

— O que é você? — ela perguntou, com uma voz rouca e o carregado sotaque de algum lugar desconhecido.

Diot sentou-se e encarou a sereia, que estava igualmente sentada, porém mais perto do mar. Os cabelos negros caíam sobre os seios, cobrindo-os.

— Eu sou... — ela começou, interrompendo-se e tossindo um pouco mais. — Sou uma pessoa, ora.

A sereia tombou a cabeça, esquadrinhando Diot com o olhar, em silêncio, e fazendo-a sentir um leve arrepio. E então, subitamente, agarrou-lhe a gola da camisa, puxando-a para baixo com força e exibindo a faixa encardida.

— Você é uma mulher...

Diot irritou-se, afastando-lhe a mão e arrumando a camisa. Seria ótimo se uma sereia rasgasse a única veste que ela tinha.

— Sim, assim como tu é. Ou metade, pelo menos.

A expressão da sereia mudou, tornando-se levemente interessada.

— Eu nunca havia tocado uma de vocês antes. — ela murmurou, estendendo a mão e, sem ver resistência, tocou-lhe a bochecha, deslizando os dedos suavemente. — Nossos poderes não funcionam sobre vocês. Qual é o seu nome?

Diot inclinou a cabeça na direção do toque suave da sereia, distraindo-se nos olhos dourados.

— Diot.

— Eu sou Amase. — a sereia sorriu e retomou a palavra, naquela voz rouca e suave que lembrava à jovem o som de uma onda quebrando nas pedras. — Você é interessante... Ninguém nunca me atraiu assim antes.

A jovem gostava da forma que os lábios cheios da sereia moviam-se quando ela falava, tanto quanto gostara da forma que ela lhe beijara sob a água. Nunca antes havia experimentado nada semelhante.

— Mas vocês, sereias... não matam as pessoas? — ela perguntou então, fazendo um pequeno sorriso desenhar-se nos lábios de Amase.

— Nós matamos homens e apenas os maus. Os que ferem vocês, as mulheres.

Diot também sorriu. Àquela altura, o sol sumia no horizonte, e seus últimos raios brilhavam nas escamas da sereia.

— Por que você veste-se como um deles? — ela perguntou então, olhando interessada para a jovem. — Por que não usa vestidos longos e brilhantes como os das outras mulheres?

Diot encolheu os ombros.

— Eu não tenho casa, igual às outras mulheres. E na rua existem muitos homens maus, como os que vocês, sereias, matam. — ela respondeu, perguntando-se se Amase compreendia o que ela queria dizer. Pela expressão dela, pareceu que sim.

O silêncio então se interpôs entre as duas, como que coroando a noite que chegava. A lua já começava a brilhar, alta no céu, e a brisa salgada bagunçava as roupas e os cabelos de Diot e de Amase. A primeira gostava de como os olhos dourados da segunda brilhavam, calorosos, e também de observar seus lábios cheios, convidativos. Amase também se interessara por Diot. Afinal de contas, nunca havia visto ou conversado com uma mulher, sobretudo uma tão interessante como ela.

Antes que pudesse esperar, então, a sereia enlaçou a humana em seus braços. Foi um abraço forte, intenso como nenhuma das duas se lembrava de ter sentido antes. Diot aproximou-se, entrelaçando os dedos nos cabelos longos de Amase, enquanto esta lhe tocava as costas. Quando se separaram, Diot sorria.

— Você vai estar aqui amanhã?

O rosto da sereia se fechou numa expressão triste.

— O inverno vem chegando. Preciso ir para o Sul sem tardar.

Diot sentiu um leve aperto no peito. Mesmo em pouco tempo, havia começado a nutrir certa afeição por Amase. A sereia, afinal, havia sido a primeira pessoa com quem ela conversava assim havia muito tempo.

— Espero que o Sul seja bom. — murmurou então. Estava acostumada a perder coisas e pessoas. A sereia seria apenas mais uma a lhe conquistar a amizade e depois partir subitamente.

— Eu posso voltar, no verão. Para lhe ver novamente. — Amase respondeu e em seus olhos dourados brilhava uma fagulha de esperança. Era uma pena que Diot não mais acreditava em promessas.

— Talvez eu não esteja mais aqui no verão. — ela murmurou, encarando o horizonte distante no mar.

A sereia soltou um suspiro.

— Eu gosto de você.

Diot encarou-a.

— Eu gostei de você, também.

— Se eu ficar aqui no Norte, morrerei congelada.

Diot balançou a cabeça.

— Então é melhor que a gente se despeça logo.

Amase abaixou a cabeça, mantendo-se em silêncio. Diot também se sentia triste, mas preferia se fechar a esse sentimento. Aquilo era algo que aprendera com as ruas.

— Obrigada pela tarde. — a jovem completou, meneando a cabeça e preparando-se para se levantar. A sereia encarou-a.

— Me desculpe.

Diot fez que sim com a cabeça e levantou-se, seguindo pela areia e sentindo pela primeira vez a aspereza dela nos pés. Não olhou para trás, nem quando ouviu o som do corpo de Amase mergulhando na água.

Seguiu pela praia e depois pela beira do porto, respirando o ar frio e salgado, deixando as lembranças da sereia para trás. A madeira e a pedra, rígidas e ásperas, lhe arranhavam os pés, mas também lhe traziam conforto. Sua cabeça estava longe, e o mundo ao seu redor parecia algo a parte.

— Ei, garoto. Garoto, ei.

Diot demorou a perceber que era com ela. Graças à tarde, esquecera-se, em partes, de que para o resto do mundo era apenas um garoto. Ergueu a cabeça sobressaltada, encontrando um homem com aparência estrangeira. Tinha traços largos, fortes, pele castanha e usava roupas leves, com cores variadas. Ela aproximou-se.

— Tu pode me ajudar com essas cargas? Meus companheiros, aqueles porcos, foram dormir e o navio sai logo que o sol nascer. — ele falou, com um sotaque rascante e áspero como areia.

A jovem confirmou com a cabeça. Tinha força física, afinal, e não lhe foi difícil carregar as tais cargas até o navio, escondendo a admiração ao pisar, pela primeira vez, na superfície instável de madeira.

— Qual o teu nome, garoto? — o marinheiro encarou-a ao final do trabalho, tirando das vestes um cantil que recendia a rum.

Diot pensou rápido.

— Dmitrei. — respondeu, coçando os cabelos.

— Tu é bom nisso, rapaz. Já viveu no mar?

Ela balançou a cabeça negativamente e o homem a encarou.

— É o seguinte: tu é bom nisso e eu preciso de um despenseiro novo. O trabalho é simples: limpar o convés e cuidar da carga. Em troca, tu vai ter sua porção de comida, lugar onde dormir e vai conhecer qualquer lugar que o mar alcance. Se for realmente bom, pode até virar capitão. O que acha?

Diot meneou a cabeça, coçando novamente os cabelos. Para quem dormia em telhados e roubava pães para comer, aquilo estava longe de ser ruim.

— É bom.

O marinheiro riu largamente, um riso que se assemelhava a um trovão.

— Tu é bom, garoto, tu é bom. Bem vindo a bordo, Dmitrei. Toma, bebe um pouco de rum.

Diot aceitou e sentiu a bebida queimar-lhe a garganta, aquecendo até mesmo a ponta dos dedos.

— E pra onde esse navio vai agora?

O marinheiro voltou a rir.

— O inverno tá chegando, garoto. O único destino agora é o Sul. Calor, vinhos, frutas frescasi, mulheres com véus...

Diot sorriu pela primeira vez, satisfeita. Para o marinheiro, o motivo eram as incríveis atrações listadas. Na cabeça da jovem, Amase lhe sorria, e sua cauda refletia o sol do Sul.


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Notas finais do capítulo

Cara, eu amo sereias! O que acharam da história? Comentem! ♥

Ah, Diot e a Sereia tem uma continuação, um extra não-postado no Nyah!. Se interessou? Você pode ler ele aqui, ó:
http://naomeescreva.blogspot.com.br/p/as-cronicas-de.html