A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 31
Em ruínas




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O céu estava fechado naquela tarde, com nuvens escurecidas encobrindo praticamente todo o firmamento. Ao contrário do dia anterior, quando o sol os castigou enquanto andavam pelo Makai, agora o tempo parecia acompanhar os sentimentos do trio, os envolvendo em uma atmosfera melancólica.

Em um canto solitário, Yusuke se ocupava de cavar, com as próprias mãos, uma cova improvisada nas proximidades do Mercado Negro para a criança morta nas galerias subterrâneas. Se as costas ainda queimavam, ele já não sentia mais nada. Era como se as dores fisicas já não importassem. Kurama apenas observava, calado. Havia se oferecido para ajudar, mas o amigo recusou e ele decidiu não insistir.

Sentado no chão árido, seus cabelos agora vermelhos balançavam ao sabor do vento. Abandonara a forma youko momentos atrás, após a morte de Akira. Não era mais ela que o deixava mais forte, ele concluiu. Aquela aparência era só uma casca, uma externalização da sua própria essência, que nunca morreria. Ele era e sempre seria... Kurama. A forma física era completamente irrelevante.

O corpo de Kiki repousava ao seu lado, tão letárgico como quanto a encontrou. Não fosse sua pulsação, que ele fazia questão de checar de tempos em tempos, poderia mesmo a dar como morta. Seus batimentos cardíacos eram suaves e vagarosos, mas eram eles que o faziam manter a tênue esperança de que ela ainda pudesse ficar bem no final das contas. O único problema era que ele se encontrava em uma dessas raras situações em que sinceramente não sabia o que fazer. Por ora, sua preocupação era apenas a manter à vista e continuar tendo certeza de que estava respirando. Se não acordasse nas próximas horas, a levaria para o templo de Genkai, onde talvez a sabedoria da mestra pudesse ajudá-la de alguma forma.

Perto dali, Hiei evitava olhar para os companheiros, principalmente porque não queria se envolver com os abalos emocionais de nenhum dos dois. Além do mais, o grupo de crianças encontrado no Mercado Negro agora se juntava a eles, deixando aquela comitiva grande demais para o seu gosto — e ele não queria ter que arcar com a responsabilidade de cuidar de nenhum daqueles humanos. Ainda assim, vez ou outra projetava um olhar furtivo em direção a eles e à Yusuke e Kurama, apenas para se certificar de que estavam bem. Mantinha a postura distraída enquanto descansava próximo a uma árvore morta, reclinando sobre o tronco ressecado, mas estava mais alerta do que nunca. Qualquer distúrbio naquela atmosfera taciturna o fazia levar sorrateiramente a mão à espada, pronto para qualquer ameaça que pudesse cair sobre eles. Felizmente, a katana não precisou ser usada, e Yusuke pode terminar em paz sua homenagem silenciosa.

A calmaria só foi quebrada por um forte estrondo que fez Hiei e Kurama virarem seus rostos sem muita surpresa, quase como se estivessem esperando por aquilo. Seus olhares caíram sobre a entrada do Mercado Negro, agora soterrada. De pé, o dedo ainda em riste, Yusuke olhava para as ruínas que tinha acabado de criar. Seu dever estava cumprido.

(...)

Voltaram para o Mundo dos Humanos no mesmo dia. As crianças, todas com idades entre quatro e oito anos, estavam confusas e exaltadas. Algumas, menores, choravam. Quando falavam, suas palavras eram desconexas, como se não conseguissem explicar com clareza tudo que tinha acontecido — ou talvez não quisessem.

Decidiram, logo após a travessia, simplesmente remover suas lembranças mais recentes. Eram jovens demais para continuar carregando aquelas memórias. Deixaram as crianças adormecidas em uma praça deserta, de onde fizeram uma ligação anônima para o hospital local, e aguardaram à distância. Em poucos minutos, estariam sendo levadas por uma ambulância e em breve, voltariam para suas famílias, deixando para trás todos os horrores dos últimos dias. Seus pesadelos ficariam enterrados para sempre naquelas ruínas do Makai.

(...)

— Como ela está? — Yusuke perguntou, vendo a menina ainda nos braços de Kurama.

— Viva... — respondeu, olhando para o rosto de Kiki. Foi a melhor palavra que conseguiu e naquele momento, era tudo que importava — Vou leva-la para o templo. Yukina e Genkai poderão ajuda-la a se recuperar.

"Já que eu não fui capaz...", ele pensou. Havia mantido o corpo dela próximo ao seu durante todo o tempo, mas o dia já estava indo embora e nenhuma de suas tentativas de reanima-la surtiram efeito. Se sentia impotente e frustrado com aquela situação. Seu único consolo era de que o monstro que havia feito aquilo agora não estava mais entre eles. Akira nunca mais encostaria em Kiki.

— Grego tinha razão... humanos podem ser piores que demônios às vezes... — Yusuke comentou, pensativo.

— E suas costas?

— Não esquenta, eu vou ficar bem — falou. Desde que havia renascido como demônio, seu fator de cura havia aumentado exponencialmente. Do contrário, sabia que ainda estaria amargando as dores alucinantes daquelas queimaduras terríveis, que chegaram a lhe causar bolhas na pele  — Você sabe que pode contar comigo se precisar de alguma coisa, não é?

— Eu sei, Yusuke, obrigado. Por tudo.

Se despediram, cada um seguindo seu caminho. Kurama sabia que o amigo ainda precisava digerir os últimos acontecimentos e não pretendia incomoda-lo se não fosse estritamente necessário. O papel dele naquela história estava terminado.

No entanto, Kurama sabia que o seu ainda não estava. Sabia que o problema do Reikai era muito pior, e se sentia na obrigação de colaborar com Koenma, um dos poucos seres do Mundo Espiritual por quem ele tinha admiração. Além do mais, devia isso a Botan.

Pensou sobre o assunto durante todo o trajeto até o templo de Genkai, tentando ligar as pontas soltas. Algo que Kiki comentara não saíra da sua cabeça desde aquela manhã: no caminho para o Mercado Negro, ouviu a garota conversar com Yusuke sobre o dia anterior, com ele a colocando a par sobre as memórias de Momoko e o encontro de Kurama com Mia. Nessa última parte, no entanto, a menina deu de ombros, como se aquilo não tivesse importância.

— Koenma está perdendo tempo com essa história toda. Está servindo de fantoche para um golpe de estado no Mundo Espiritual. Lá só tem gente podre, não é muito diferente do mundo humano... — Kiki falou com desprezo.

Kurama desejou ter a interpelado naquele momento.

Suspirou e seguiu adiante em suas reflexões. Era tarde demais para lamentar. Agora seu pensamento se voltou para o demônio encontrado dentro do Mercado Negro. Não os gêmeos alados, que não passavam de distrações, mas Bozukan. O lendário e temido Bozukan. Kurama havia o encontrado algumas poucas vezes e pudera ver que o nível de imoralidade e devassidão fazia jus a todas as histórias que ouvira. Ele não era um rival que alguém gostaria de enfrentar, isso era certo.

Mais cedo, quando o viu morto sob Yusuke, sentiu uma estranheza imediata, um certo incômodo, como se a cena não parecesse correta. Na hora não conseguiu raciocinar com clareza, mas agora poderia se demorar naquela imagem.

E finalmente compreendeu o motivo daquele desconforto.

Aquele não era o verdadeiro Bozukan. O demônio era um impostor.

De repente, tudo fez sentido.

(...)

Kurama chegou no templo quase ao anoitecer. Normalmente, se sentiria desconfortável por chegar sem avisar àquela hora, mas sabia que a mestra entenderia.

Deitaram Kiki em um futon, após limparem e cobrirem seus machucados. O osso do ombro já estava no lugar, mas a região parecia seriamente inflamada, e Yukina se apressou em massagear a área com uma das pomadas medicinais de Genkai.

— Não sei como agradecer... — ele falou, sentindo um nó na garganta por ter que ir embora e não poder ficar com a menina — Tentei acorda-la como pude, mas talvez a senhora tenha mais sucesso do que eu.

— Você poderia tentar um milhão de vezes, e um milhão de vezes iria fracassar — Genkai retrucou — ela precisa acordar sozinha. Ninguém pode fazer isso por ela.

Kurama se surpreendeu com a resposta inesperada e por um momento, se desesperou ante a possibilidade de aquilo nunca acontecer.

— Não se desespere, rapaz — ela falou, ao notar a mudança no semblante de Kurama — Você não é emotivo como Yusuke. Essa menina significa tanto assim para você?

— Sim, mestra — ele admitiu.

Genkai o estudou por um tempo. Kurama costumava ser paciente e impassível, mas dessa vez podia ver a agitação na sua alma que ele tentava disfarçar.

— Vá para casa. Se ela for forte o bastante, vai conseguir sair do mundo dos sonhos sozinha. E se não for, não há nada que possamos fazer.

Ela se afastou, indo cuidar de seus afazeres. Kurama olhou uma última vez para o quarto, observando Yukina que agora cobria gentilmente a garota com um lençol de linho.

Esperou a youkai de gelo sair do aposento para se aproximar da garota, ajoelhando ao lado do futon.

— Seja forte — ele sussurrou — Estou esperando por você aqui fora.

Inclinou a cabeça e beijou de leve a testa de Kiki, onde o corte agora estava coberto por uma gaze.

— E não me deixe esperando muito tempo...

Kurama levantou e saiu do quarto, fechando com cuidado a porta de bambu. Voltaria para casa, como Genkai sugeriu, mas parte dele ainda ficaria naquele templo.


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