Rua do Castelo d'Água escrita por Laura Machado


Capítulo 5
Capítulo 5: Rue Nationale




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/652394/chapter/5

Ações pequenas. Ações pequenas que significavam muito.

Como a mão de Johann escorregando pela minha cintura. Ou o seu nariz roçando de leve na minha nuca. E o jeito que ele conseguia me fazer sorrir antes mesmo de ter aberto os olhos.

Me virei para ele, seu rosto a centímetros do meu, nossas mãos buscando um ao outro embaixo do lençol. Ele abriu os olhos também, encontrando os meus.

"Bon jour," ele disse, sorrindo tanto que voltou a fechá-los.

Eu me mexi na cama para chegar mais perto dele. "Bon jour," repeti em um sussurro.

Estava abraçando sua cintura de volta, deixando nossas pernas entrelaçarem. Não estava nem um pouco afim de levantar, mas bem feliz de ter acordado e poder ficar olhando para ele.

E ficaria ali para sempre.

Se o seu despertador não tivesse começado a tocar logo naquele instante.

Sua mão escorregou de novo pela minha cintura, mas dessa vez se afastando, até que ele tivesse girado e alcançado o despertador no criado-mudo para desligar. Depois ele se virou de novo para mim.

"Eu preciso ir," disse, apesar de eu já estar voltando a abraçá-lo.

"Anhãm," falei, logo antes de me inclinar para ele e impedi-lo de me contestar com um beijo.

Ele não reclamou. Pelo contrário, pelos próximos minutos, achei que ele tinha desistido de ir trabalhar, que concordava comigo que era melhor continuar na cama. Ele tinha me virado de costas e subido em cima de mim, tomando conta completamente do beijo que eu tinha iniciado e dos outros que ele traçava dos meus lábios, pelo meu pescoço, até a base do meu decote. E me fez acreditar que não existia despertador ou tarefa no mundo que fosse acabar com aquele momento.

Até que se afastou e, antes que eu tivesse a chance de puxá-lo de volta para mim, ele estava de pé do lado da cama.

"Ei!" Falei, me apoiando nos cotovelos para olhá-lo.

"Eu preciso ir," ele repetiu, abrindo os braços. Até fez menção de dar um passo para trás, mas acabou resolvendo voltar até mim.

Mal tinha me dado outro beijo e já se afastava de novo.

"Tenho que trabalhar," disse, indo até o banheiro. "E você tem que escrever."

Olhei para a escrivaninha que ele tinha logo ao lado da cama, aonde meu computador estava aberto. E depois voltei a me deitar e deixar minha cabeça afundar no travesseiro.

Fazia já quase duas semanas que nós tínhamos feito nosso acordo e eu precisava admitir que ele era bastante competente. Por mais que ainda não tivesse tido a ideia para o final perfeito, eu já tinha escrito mais cinco capítulos. E grandes! Todos mais calmos, nenhum que começasse de vez a batalha, a grande revolução que fizesse Marianne escolher seu lado. Mas capítulos que mostravam seu desenvolvimento, o quanto ela amava Lech, o quanto aquela dúvida acabaria sendo terrível para ela.

Ou seja, a calmaria antes da tempestade.

E agora eu só precisava escrever a tempestade.

Me levantei da cama de uma vez, passando perto da minha mala para pegar uma camiseta e a vestir enquanto ia na direção do banheiro.

Johann terminava de escovar os dentes e eu me apoiei no batente.

Ele era lindo. Demais até, a ponto de eu não conseguir olhá-lo sem ter que lutar contra uma vontade enorme de ir abraçá-lo, de beijá-lo, de esquecer do resto do mundo.

E era incrivelmente perfeito. Não era super malhado. Na verdade, tinha até admitido que devia fazer mais exercício, já que tinha tanto amor por comida. Mas eu gostava dele assim. Alto, ombros largos, do tipo que eu tinha que me esforçar para conseguir abraçar e fazer minhas mãos se encontrarem.

Assim que ele terminou de escovar os dentes e estava enxugando seu rosto na toalha, eu fui até a pia. Antes que eu falasse alguma coisa, ele pegou escova que tinha comprado para mim, colocou a pasta nela e me deu um beijo rápido, para depois me entregá-la.

"Quer café?" Perguntou e eu concordei com a cabeça.

Mas não ia deixá-lo ir embora rápido assim. Levei uma mão à sua nuca, o puxando para mim até que nossos lábios tivessem se encontrado outra vez.

Assim que nos afastamos, eu olhei nos seus olhos. Ele tinha um jeito estranho de me fazer sentir plena, como se eu inspirasse bem fundo e conseguisse encher totalmente o peito. E, com seus olhos a centímetros dos meus, meus dedos enterrados no seu cabelo e sua respiração refletindo na minha pele, eu pensei em uma coisa.

Eu realmente pensei em uma coisa. Pensei em falar uma coisa. E se ele não tivesse me dado outro beijo rápido e se afastado de vez para ir até a cozinha, provavelmente teria falado.

Mas não podia falar. Eu não podia. Nem sabia se era verdade! Ou se só tinha sido um impulso.

Olhei no espelho, o banheiro vazio atrás de mim parecendo pronto para escutar o que eu tinha para admitir. Mas não admitiria nem para mim mesma. Nem me deixaria pensar naquilo.

Comecei a escovar os dentes o mais freneticamente possível. Rápido, forte, agressivo, me distraindo daquela sensação que eu tinha tido e que continuava como um arrepio em meus braços.

E na minha nuca, me fazendo me contorcer.

Soltei a escova na pia, lavando a boca e o rosto, e o esfregando até chegar a molhar um pouco do meu cabelo. E então olhei de novo no espelho.

Eu não sentia aquilo. Era o momento. E sabia disso! Fazia pouco tempo que conhecia Johann, simplesmente não era possível eu realmente sentir aquilo. Então nem tinha porque estar pensando nisso!

Esfreguei meu rosto na toalha e passei só um pouco de maquiagem, só o suficiente para não ficar de cara limpa. E ainda dei uma última olhada no espelho antes de descer as escadas. Queria saber se eu estava pelo menos apresentável. E se tinha algum vestígio do que eu tinha sentido na minha expressão.

Quando cheguei na cozinha, o cheiro de café já dominava e os croissants de Johann já estavam em cima da bancada, alinhados. Ele era muito organizado, completamente diferente de mim. A casa era enorme, uma sala grande, um quintal grande, vários quartos extras que ele tinha anunciado para algum turista, mas que continuavam vazios. O resto da casa parecia ainda inabitado, mas a cozinha era repleta de coisas. Desde utensílios, dos mais complicados aos mais básicos, até comida. Frutas em formatos que eu nunca tinha visto, sacos de várias farinhas diferentes, temperos dos mais variados. E tudo organizadinho, nomeado e arrumado. Parecia uma cozinha que se encontraria em uma revista, daquelas que ninguém no mundo conseguiria usar e manter tão perfeita.

Mas Johann conseguia. Era até pior, na verdade. Quando ele cozinhava, era quando ela estava mais bonita. E o jeito que ele praticamente dançava em volta dela, sabendo exatamente onde estava tudo, pegando na hora exata, quase fazendo malabarismo com tudo, era bem desconcertante.

Eu cheguei perto do meu prato na bancada e ele deixou minha caneca à minha frente. Depois me serviu com ovos, pequenos pedaços só da carne do bacon e um croissant quentinho. Na bancada, várias geleias, manteigas e chocolates estavam abertos, tampa ao lado e sua espátula esperando para ser usada.

E pensar que, na minha casa, eu usava meus dedos para tirar a nutella do pote.

Aquilo me fez sorrir. Ele era extremamente organizado e eu usaria mesmo aquilo como defeito para qualquer pessoa no mundo. Mas, nele, era bonitinho. Era legal vê-lo ajeitando o croissant para que todos ficassem no mesmo ângulo. Ainda mais que era ali que sua organização acabava, já que ele comia fazendo a maior bagunça.

"Meus pais chegam às duas na quarta," ele falou, assim que se sentou do meu lado e começou a comer.

Na hora, me lembrei que eu iria embora na quinta. Nós tínhamos um acordo silencioso de nunca falar naquilo, mas a cada dia que o momento se aproximava, ficava ainda mais claro que eu iria embora.

Claro que eu iria embora. Eu fui para lá com meus dias contados. Nunca moraria lá. Eu tinha uma vida inteira em Nova York. E era por isso que eu não podia me deixar levar por momentos em que sentia o impulso de falar coisas que eu não conseguiria retirar depois.

"Tem uma coisa que eu queria fazer para eles, se você quiser me ajudar," ele continuou e eu só levantei as sobrancelhas, como se pedisse pra ele explicar. Minha boca estava ocupada com um croissant recheado de nutella. "O que você acha de fazermos macarons?"

Eu engoli o pedaço e tomei um gole de café, mas ainda assim tampei a boca quando falei. "Não é a coisa mais difícil do mundo?"

Ele riu. "Não é fácil, mas eu acho que a gente consegue," disse, piscando um olho só.

Claro. Ele conseguiria. E eu estaria lá para atrapalhá-lo a cada passo.

Mas estaria lá. "Estou dentro," falei, voltando-me ao croissant.

Ele continuou explicando que buscaria as decorações amanhã, aproveitando que seria segunda-feira e que era seu dia de folga, mas que, para isso, ele teria que ir até Tours, que aparentemente era a maior cidade ali perto. Nós marcamos de sair de manhã, logo às oito, para chegar lá cedo e poder voltar para Amboise antes de anoitecer.

Em duas semanas, nós tínhamos conhecido todos os três bares da cidade, o castelo várias vezes, a última morada de Leonardo da Vinci e cada uma das suas invenções que eu não conseguia entender. E já tínhamos feito tantos piqueniques na beira do rio, que eu já até sentia falta quando tinha que almoçar sozinha na casa dele.

Também tínhamos voltado para Orléans. E, depois de passar quase uma tarde inteira rodeada de coisas sobre a Joana D'Arc e seu museu, eu ainda não sabia nada dela. A não ser que ela tinha morado lá.

Mas a minha parte preferida de cada viagem era poder me abraçar a ele na moto e tentar me levantar e abrir os braços outras vezes. Ele até tinha tido a grande ideia de me ensinar a dirigir a moto, mas acabávamos sempre desistindo e nos distraindo um com o outro. E eu ainda preferia não ser a motorista. Nunca poderia simplesmente me levantar e fingir que estava voando se estivesse dirigindo.

Quando ele subiu pro quarto para se vestir, a casa pareceu ficar num silêncio desconcertante. Era como se ela gritasse para mim que ficaria sozinha de verdade em alguns minutos, que só sobraria eu e minha necessidade de escrever. E minha falta de ideias.

Quando Johann desceu outra vez, usando sua dolma e segurando seu chapéu, eu já tinha colocado toda a louça na máquina de lavar e guardava os croissants e as geleias. Fui com ele até a porta, como de costume. Ele me beijou, disse que me veria mais tarde e saiu. Só fechei a porta depois de vê-lo subir em sua moto e desaparecer no final da rua.

E então eu estava sozinha. Com uma casa enorme me olhando, esperando que eu fosse escrever.

Fui direto para o quarto, não querendo me sentir tão sobrecarregada pelo silêncio daqueles vários cômodos vazios, levando comigo minha caneca com mais café.

Além da cozinha, o quarto de Johann era o único outro que tinha mais do que só os móveis básicos. As coisas dele pareciam nem ocupar muito espaço, mas as minhas estavam jogadas para todos os lados, enchendo cada canto do quarto. Era até surpreendente como eu conseguia isso, sendo que só tinha levado uma mochila.

Eu me sentei na frente do computador, segurando a caneca entre ele e eu. Tinha passado os últimos dias relendo minha história desde o começo, acrescentando detalhes nos capítulos que tinha escrito que tinha falado no primeiro livro. Era um jeito bom de exercitar minha memória, de amarrar certos comentários que tinha feito antes. Mas ainda não tinha me ajudado a decidir o final.

Por um lado, eu queria que a história fosse sobre um amor épico e eu sabia que Marianne faria absolutamente tudo por Lech, até mais do que ele mesmo faria por ela. Mas chegar ao ponto de ela se colocar ao lado dos vampiros e atacar seu próprio pai, mesmo que adotivo? Não, ela nunca faria isso. Não existia mudança pela qual ela pudesse passar para escolher o outro lado e ir contra ele. Mas quem ela era agora também não escolheria seu pai e os humanos e atacaria Lech. Ela nunca conseguiria machucá-lo, nem a família dele ou os amigos dele.

Esse era o meu problema. Eu devia tê-la feito não gostar do pai, não ter problema algum em mudar de lado. Mas agora tinha virado "A Escolha de Sofia" e ela não conseguia se decidir, por mais que fosse o tipo de pessoa que nunca tinha muita dúvida do que queria.

Eu abri o arquivo que já tinha começado e continuei o capítulo que escrevia. Naquela parte, Marianne ainda estava confusa, assim como eu, o que facilitava para escrever. Mas eu já tinha capítulos demais aonde explorava essa dúvida. Sabia que Alicia acabaria editando tudo, tirando vários, juntando alguns.

Mas pelo menos eu estava escrevendo.

E fui aproveitando minha própria dúvida para Marianne enquanto podia, digitando mil, duas mil, três mil palavras.

Quando realmente parei e olhei no relógio já era meio-dia. E eu estava exausta.

Johann devia estar já começando a pensar no jantar, apesar do almoço de domingo ser o mais importante. Aquele era um dia cheio para ele e, depois de passar a semana inteira trabalhando como louco, ele realmente merecia a folga do dia seguinte.

E uma visita, pensei na hora. Ele merecia uma visita! E eu precisava esticar minhas pernas.

Me maquiei outra vez, agora passando delineador e até fazendo um rabinho do lado do olho que me obrigou a tirar e começar do zero algumas vezes até ficar bom. Mas eu insisti, já que não tinha muita opção com minhas roupas. Fiz questão de colocar meus livros e o bloquinho que eu carregava na bolsa antes de sair.

O caminho da casa de Johann até o centro não era complicado. O contrário era mais difícil, conseguir encontrar o começo da rua dele não era fácil. Mas de onde eu estava, eu só tinha que descer em uma certa direção que acabaria de um jeito ou de outro chegando ao castelo.

Fiz questão de dar algumas voltas quando estava no centro, já que Johann só teria seu primeiro intervalo depois das duas. Passei pela casa do da Vinci, na frente do hotel aonde eu tinha ficado até Johann me dar a ideia de ficar na casa dele, do Carrefour, até da igreja que ele tinha me mostrado que tinha sido construída em 1107 (antiga!).

Estava para entrar na rua do restaurante dele quando vi o rio. O dia estava quente e eu usava o mesmo vestido que tinha escolhido pro nosso primeiro encontro. Foi impossível não sentir pelo menos um pequeno arrepio me lembrando de quando nós tínhamos saído pela primeira vez. Era quase estranho pensar que eu não o conhecia naquela época e me lembrar do quanto estava apreensiva de ter aceitado sair com ele.

Mas tudo tinha sido tão fácil e fluído. Mesmo sendo tão bonito, ainda era muito fácil me sentir bem perto de Johann. Ele levava as coisas a sério quando precisava, mas não perdia muito tempo com fingimentos. Tinha uma honestidade leve e refrescante que me fazia querer ser mais como ele.

Era mais do que só seu jeito de ver beleza em tudo, de acordar disposto todos os dias por saber que seria diferente de como foi ontem. Era seu jeito de se aceitar por completo e não ter a menor vergonha de admitir suas fraquezas. Pelo contrário, ele as abraçava, as exibia como parte dele. E, por incrível que parecesse, quanto mais ele as mostrava para mim, mais confiante ele parecia. Quanto mais ele me contava dos seus defeitos, mas eu gostava dele.

Eu queria ser mais como ele. Queria ficar mais com ele. Queria poder passar mais alguns dias, mais alguns meses. Sentia que a cada minuto, eu estava diferente. Estava mais livre, mais leve, melhor. Ele me fazia querer ser melhor, ser menos pessimista, mais aberta para as outras pessoas. Ele até tinha tomado conta de uma conversa minha com Kendra pelo Skype e feito parecer que eles eram mais amigos do que eu e ela. Eu queria ser compreensiva como ele, feliz como ele.

E ali eu era. Eu era de verdade. Aquela manhã não tinha sido a primeira vez que eu tinha sentido vontade de falar aquilo que eu não devia. Nem a segunda. Nem a milésima. Tudo que ele fazia, cada olhar que ele me dava, cada sorriso, cada ajuda que ele oferecia a um estranho me dava a vontade de falar aquilo. Até quando ele reclamava de alguma coisa, o que acontecia até com a sua mania de tentar ver o lado bom de tudo, eu ainda sentia à vontade de abraçá-lo e falar tudo aquilo que estava pensando.

E que não devia estar pensando. Iria embora em três dias e não mudaria aquela passagem.

Quanto mais eu me deixasse ficar, mais eu iria querer ficar. E sabia, no fundo eu sabia, que se eu adiasse minha viagem, seria ainda mais difícil ir embora depois.

O rio não parava de correr, não quando o vento estava forte e embaralhava todo meu cabelo. Eu fui até a ponte, cheguei na sua metade e olhei para o castelo.

Ainda era difícil pensar que aquilo era de verdade, que era a vida real e a minha vida ainda! E que eu deixaria tudo aquilo logo.

Eu não podia ficar, repeti para mim mesma. Só estava na casa dele porque nós dois sabíamos que aquilo acabaria. Só estávamos tão próximos pela falta de compromisso. Se eu falasse que queria ficar, se falasse o que tinha pensado naquela manhã, tudo estragaria. Tinha certeza de que o assustaria, que ele já não iria mais me querer tão perto. Estava indo tudo tão bem! Mas só porque acabaria.

Voltei a andar em direção ao centro da cidade.

Minha vida inteira estava em Nova York. Minha família, minha editora, meu apartamento, meu carro. Tudo que eu tinha praticamente estava lá.

Parei de andar.

Estranho, eu não sentia falta de nada. Não tinha um só objeto que tinha ficado no meu apartamento do qual eu tinha dado falta. Não sentia a menor necessidade de ir buscar nada.

Isso agora, pensei comigo mesma, voltando a andar. Se eu ficasse um mês ali, tinha certeza de que sentiria falta mais do que só das minhas coisas, como das opções que a cidade grande me oferecia. Amboise era linda, maravilhosa, independente de Johann. Mas era para só se passar alguns dias. Nada de muito emocionante acontecia ali.

Entrei na rua principal, que levava até o restaurante de Johann, mas parei logo na esquina. Ainda era uma da tarde, eu tinha uma hora para gastar antes de ele sair pela porta da frente. E, logo à minha direita, estava uma chocolateria incrivelmente linda.

Entrei sem pensar duas vezes, sentindo o cheiro de chocolate me abraçar. Na hora, uma mulher apareceu na minha frente e me falou alguma coisa em francês. Na dúvida, eu só concordei com a cabeça, e, para a minha sorte, ela começou a andar, me indicando uma mesa pequena perto de nós.

Eu me sentei e ela colocou um cardápio na minha frente, falando mais algumas coisas em francês. Por mais que eu estivesse treinando bastante com Johann, ela falava rápido, independente da careta que eu fazia por não entender. Acabei só fingindo estar absorvendo o cardápio e pedindo o que eu sabia pronunciar. Um café e um doce que tinha uma foto lá e que parecia ser delicioso!

Eu gostava do clima de cafeterias e aquele lugar era ainda melhor! Além do café e do ambiente aconchegante, tinha chocolate para todos os lados, espalhados pelas vitrines e estantes de vidro entre paredes marrons. As cadeiras já eram confortáveis, mas, de onde eu estava, podia ver um segundo nível da chocolateria, que tinha sofás e parecia uma grande sala de estar.

Pena que eu estava sozinha e que a mesa para uma pessoa só era simples e ficava tão perto da porta.

Tirei meus livros da bolsa e os coloquei na mesa, como se fossem outras pessoas, com quem eu conversaria até ter a ideia perfeita. O primeiro tinha a capa mais bonita, mas eu simplesmente não conseguia deixar de amar a do segundo também. E lembrava que, antes de começar a escrever, tinha decidido que o terceiro teria que ser ainda melhor, ainda mais bonito. Muitas escritoras perdiam o jeito e acabavam piorando a cada livro. Eu queria que fosse o contrário comigo.

Parecia tão fácil me falar isso naquela época. Agora estava difícil conseguir cumprir meus desejos.

A garçonete voltou com um sorriso para deixar o café à minha frente, que era bem maior do que eu esperava e vinha com vários pequenos biscoitinhos. Enquanto ela os arrumava na mesa entre meus livros, eu percebi que ela usava um colar de macaron. Era rosa e bonitinho, contrastando com o resto da sua roupa, que era inteira preta. Ela me falou outra coisa antes de sair, que eu podia jurar que significava que ela já voltaria com meu doce.

E devia estar certa, menos de um minuto depois ela o deixou ao lado do meu café.

Ele também era bem maior do que eu imaginava. E não esperei um só segundo para atacá-lo, perfurando sua casca de chocolate com o garfo e o achando ainda mais bonito quando estava quebrado.

Fiquei tão concentrada em conseguir aproveitar o quão maravilhoso era aquele doce misturado com o café e a música calma que eu estava ouvindo pelos meus fones, que nem percebi quando um grupo grande de pessoas entrou pela porta logo ao meu lado.

Mas percebi alguém com o canto do olho do lado de fora da chocolateria, olhando para dentro, logo do meu lado! Primeiro, achei que estivessem olhando para mim, comentando sobre alguma coisa que eu tinha feito. Tinha até que admitir que, por um segundo, pensei que tivesse sido reconhecida pelos meus livros.

Mas, quando olhei de volta para dentro da chocolateria, todos os clientes também estavam olhando em uma só direção. E não era para mim. Era para o grupo de pessoas que estava perto da bancada e olhava os chocolates, conversando com uma das vendedoras.

E eu, instintivamente, olhei também para eles, me perguntando o que tinha de tão incrível acontecendo ali. Estava para voltar a me concentrar na minha comida, não tendo encontrado nada de diferente entre eles, quando um dos homens olhou rapidamente por cima do ombro e encontrou meus olhos.

E o sorriso de meio milésimo de segundo que ele me deu me fez congelar completamente por dentro.

Não. Não, não podia ser. As pessoas ali dentro e lá fora não estavam olhando para o grupo que tinha entrado. Estavam olhando para o homem no meio deles, o de boné, que eu podia jurar com tudo que era mais sagrado que era o Mick Jagger.

Mick Jagger, repeti seu nome na minha cabeça. Eu estava olhando para o Mick Jagger.

Eu fiquei paralisada, salvo pelos movimentos involuntários que a minha cabeça fazia para conseguir desviar de quem insistia em ficar entre eu e ele e não me deixar vê-lo! Eu devia estar ficando louca. Aquilo não era normal! Não, aquilo não acontecia! Pelo amor de deus, de todas as pessoas famosas do mundo, não era possível que logo ele, logo ELE, tinha acabado de entrar na chocolateria aonde eu estava!

No meio do nada! Na cidade aonde nada de emocionante acontecia!

Ou pelo menos era o que eu achava.

Não, aquilo era estranho demais. Ele era um mito. Uma lenda. Ele nem devia ser real!

Mas era.

Era ele.

E um cara qualquer se atreveu a falar com ele, fazendo o grupo abrir caminho para que ele o visse. O cara corajoso chegou perto dele, tremendo como eu estava tremendo, com os olhos arregalados como os meus, mas do lado dele. Tocando nele. Falando com ele. Abraçando ele, tirando uma foto com ele! Com o Mick Jagger! Ele estava tirando uma foto com o Mick Jagger!

Assim que eles tiraram a foto, ele se virou de novo na minha direção e sorriu.

E acenou.

Ele acenou para mim!

Percebi um movimento atrás de onde estava sentada e olhei rapidamente pelo vidro.

Ah. Ele estava acenando para as pessoas do lado de fora.

Virei meu rosto de volta na sua direção, já duvidando que eu tinha mesmo visto logo ele ali. Estava até apostando na minha cabeça que aquilo tudo tinha sido imaginado, que eu estava ficando louca e começando a alucinar coisas.

Mas lá estava ele, vestido em roupas simples, se escondendo atrás de seu boné, esperando que outra pessoa do grupo pegasse e pagasse pelo que ele tinha comprado.

E foi quando eu percebi que ele parecia ter um segurança e mais alguns assistentes, pessoas que estavam falando no celular ou que traduziam as coisas para ele.

Outras pessoas saíram de suas mesas para falar com ele, enquanto a maioria o olhava como se fossem bons demais para agirem como fãs, mas não o suficiente para parar de olhar.

Eu ainda estava paralisada. Me agarrava à mesa, sentindo meu coração bater tão rápido, que eu podia jurar que acabaria desmaiando. Nunca tinha sido a maior fã de Rolling Stones no mundo. Nem poderia fingir que era.

Mas Mick Jagger era uma lenda! Lenda, falei na minha cabeça. Não era nem para ele ser real. Não era para ser possível que alguém como ele realmente existisse! E que estivesse logo na minha frente!

E eu poderia simplesmente me levantar e ir também até ele. Eu falava a sua língua. Eu poderia tirar uma foto com ele. Eu poderia dizer para todos que conhecia que eu tinha encontrado o Mick Jagger e não haveria mais nada no mundo que poderiam falar que ganharia disso!

Ele era épico! Gênio! Incrível! E estava na minha frente! Estava-

Ele estava saindo da chocolateria! Eu estava perdendo a minha chance!

Com as pernas bambas, eu me apoiei na mesa, a empurrei como podia para longe de mim, derrubei meu café nos meus livros e o garfo no chão, mas consegui sair dali. Estava já do lado da porta, mas Mick Jagger e seu grupo já tinha se afastado. E outras pessoas na rua o tinham percebido e o seguiam até seu carro. A garçonete me notou saindo e gritou "Mademoiselle!" na minha direção, mas não fiquei para me explicar. Eu precisava daquela foto! Eu precisava falar com ele! Eu precisava poder pensar pro resto da minha vida que eu tinha conhecido ninguém menos do que Mick Jagger! Que ele parecia bem mais velho pessoalmente, que usava roupas normais e até um boné para se esconder-

Parei de andar na hora, só dois passos da porta da chocolateria.

Era isso.

Era isso que eu precisava fazer! Era essa a decisão que Marianne tomaria!

Senti um arrepio começando na base das minhas costas e terminando nas pontas dos dedos. Olhei para o céu, levando as minhas duas mãos à cabeça.

Era isso, repetindo, sentindo uma vontade enorme de começar a dançar ali mesmo, na rua principal de Amboise.

Eu sabia como terminar! Eu sabia como terminar a história! E seria perfeito! Seria simplesmente épico!

Corri de volta para a chocolateria, onde a garçonete me olhava estranho, sem nem rastro daquele sorriso que antes ela tinha usado para me atender.

Minha mesa ainda esperava por mim, a mancha de café chegando até as primeiras páginas dos meus livros. Eu queria pegá-los e enfiá-los na minha bolsa e sair correndo para a casa do Johann! Mas e se não desse tempo? E se eu esquecesse no caminho? Eu finalmente tinha conseguido pensar em uma solução para todos os meus problemas que não só estava no nível dos outros volumes, mas que seria ainda melhor, como eu sempre tinha sonhado! Não poderia me dar a chance de esquecer! Não podia fazer mais nem um movimento que não fosse escrevê-la!

Peguei meu bloquinho e o abri correndo, buscando uma caneta na minha bolsa. A garçonete chegou perto de mim e, sem me falar nada, levantou meus livros e o café para limpar a mesa. E ainda deixou outro garfo para eu terminar meu doce. Eu ficaria bem agradecida, se não parecesse que ela estava incomodada de fazer aquilo e eu não tivesse coisas mais importantes com as quais me preocupar.

Eu empurrei tudo para longe de mim, abrindo espaço para meu bloquinho. E, na primeira página que estava em branco, comecei a escrever sem parar, meu rosto a poucos centímetros do papel.

Marianne não escolheria lado nenhum! Ela escolheria a si mesma! E ela seria como uma agente tripla! Fingiria que estava com os vampiros e até ajudaria em alguns planos deles, mas se certificaria de que nenhum tivesse consequências catastróficas! E eu já sabia até quais poderiam ser os planos de invasões deles e como elas os impediria. Um detalhe aqui, outro ali e ela faria com que tudo desse errado, mas que não soubessem que a culpa era dela.

E a mesma coisa para os humanos. Ela também fingiria ser completamente aliada a eles. E se declararia uma espiã no outro lado. Mas guardaria informações que achasse que fossem cruciais e bolaria um plano dela mesma para que os dois lados vissem um ao outro e percebessem que queriam coisas que não eram exclusivas. Ela seria uma agente tripla, ajudando os dois lados, ao mesmo tempo que os sabotando para conseguir que o seu plano de paz prevalecesse.

E eu sabia exatamente como fazer isso! Não tinha pensado nas palavras e nem queria, não antes de conseguir escrever tudo que viria antes! Meus dedos eram bem mais lerdos do que a minha cabeça e era praticamente impossível conseguir frear as várias frases e sacadas que eu já imaginava! Diálogos, frases, razões! Eu já sabia como ela explicaria a Lech! E o final! Ah, o final! Como ela seria adorada por todos, como faria que todos repensassem todo o preconceito que sempre tiveram. E como ela chegaria de volta ao castelo de seu pai adotivo no final e seria recebida como uma filha outra vez, coisa que não tinha acontecido desde que ela tinha declarado estar apaixonada por Lech. Seria perfeito! Seria simplesmente perfeito!

E eu precisava escrever!

Assim que anotei tudo que eu podia para não me esquecer de nada, abri minha bolsa, tirei o que eu achava que cobria o preço do café e do doce, dei uma última mordida, pegando-o com a mão e fazendo a garçonete me olhar com nojinho, tome um último gole, peguei meus livros e o bloquinho e saí dali.

Andava rápido e largo, como se tentasse alcançar o máximo possível em cada passo. E não fui direto na direção da casa de Johann.

Não, tinha uma última coisa que eu precisava fazer antes!

Eu já tinha ido no restaurante dele naquelas duas semanas, algumas vezes até. E sabia o caminho até a cozinha. Mesmo assim, todos me olharam estranho, dos garçons até os clientes, quando eu entrei com tudo, marchando até lá.

Abri as portas duplas com as duas mãos, que ainda seguravam o bloquinho e meus dois livros sujos de café. Johann estava até bem perto, colocando dois pratos em uma bancada e os limpando. Ele só me percebeu quando eu estava bem na sua frente. E, assim que ele se esticou, joguei meus braços em volta do seu pescoço e o beijei.

Mal tinha me afastado, mal tinha recuperado o ar, quando eu falei:

"Eu te amo."

Me inclinei para ele uma última vez, sem deixar que tivesse tempo de pensar naquilo ou até mesmo responder, e lhe dei outro beijo.

Depois me virei e saí de lá. Eu tinha um livro para terminar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Rua do Castelo d'Água" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.