Os Jogos do Vício escrita por Seiza Kinsei


Capítulo 3
60 Minutos


Notas iniciais do capítulo

Hello. It's me.

Eu ia postar esse capítulo bem antes, tipo, bem mesmo. Mas as circunstâncias não me foram favoráveis, e somente agora pude atualizar a fanfic. Odeio demorar tanto assim, mas a vida tem dessas. Me perdoem.

Agradeço de coração aos novos leitores — sejam bem-vindos! — e aos favoritos. É bom saber que a fic está chamando a atenção de vocês, e que vocês estão dando uma chance para OJDV!

Vamos lá: o capítulo começa com o Gray, depois segue para a Erza, e ao fim, com o Natsu. Sem arquivos desta vez, sorry :( Fica pro próximo, que vai ter uma porrada de coisas — e consequentemente, será enorme.

Não vou me ater muito aqui, então os deixo com o capítulo. Espero que gostem!



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— A culpa é sua.

Cinquenta e oito minutos.

— Eu não... não tenho cuslpa. Eu não pedi que isso acontecesse.

Cinquenta e oito minutos, e vinte segundos.

— Você sabe que a Ur só morreu por sua causa. Ela fazia coisas pra sustentar você. Antes de você aparecer, era tudo maravilhoso. Foi só você aparecer que tudo isso acabou.

Cinquenta e oito minutos, e quarenta e dois segundos.

— N-não... não é assim...

Cinquenta segundos.

— Você não consegue nem falar uma frase sem tomar algum remédio.

Cinquenta e nove minutos.

— Sua aberração inútil.

— P-para...

— Você que deveria ter morrido.

Cinquenta e nove minutos, e quarenta segundos.

— Eu espero que você morra.

Sessenta minutos.

Eu sempre levava exatos sessenta minutos para sentir plenamente os efeitos da morfina. A última coisa que vi com nitidez fora o céu de nuvens plúmbeas, visível pela janela mal acobertada pelas cortinas. E, nos primeiros segundos após o tempo contado, as lembranças passaram a se diluir, — se liquefazendo diante dos meus olhos, misturando-se com o chumbo do céu. Minha respiração ia se tornando cada vez mais morosa. A leveza enfim chegava, envolvendo-me por completo, como mãos afáveis e suaves.

Fechei os olhos, totalmente extasiado pela sensação de paz.

E então, eu não sentia mais nada.

Era como flutuar num vazio infindável — e todo e qualquer sentimento deixava de existir. Como se eu estivesse ali desde sempre, e todas as lembranças e as sensações que elas carregavam, fossem algo ilusório, algo que jamais me atingiu ou me afetou verdadeiramente em algum momento. Imagens aleatórias e irreconhecíveis, sons indecifráveis não passavam de um mero eco distante que surgia vez ou outra em minha mente, e até as piores memórias, quando vinham-me naquele momento, não significavam nada mais do que imagens. Vislumbres vazios. Como visualizar a um filme com toda a indiferença do mundo, independente do que mostre — mas, secretamente, sorrindo de canto, pela satisfação de não se afetar por nada do que se vê.

Desta vez, no entanto, algo estava diferente. Tudo o que eu via, tudo o que eu ouvia, parecia cada vez mais distante. Não distanciamento emocional, mas literal. As imagens pareciam gradativamente cada vez mais enevoadas, enquanto que o que eu escutava ia se resumindo a meros sussurros. Eu sentia como se flutuasse acima de um profundo abismo — mas, quase imperceptivelmente, estivesse mergulhando mais e mais para dentro dele.

Gray?

Ouvi, muito longe, uma voz, um timbre feminino que conhecia bem.

Gray, abre essa porta.

Mais uma vez, aquela voz familiar. Irritada, nesta segunda vez.

E eu caía, mais e mais, nas profundezas daquele abismo.

— Me... deixa... em... paz. — Murmurei, ou pelo menos, acreditei ter dito. As palavras se emboloravam em minha boca.

 Abre essa merda, agora.

Tão escuro, mas tão acolhedor...

* * *

Meu ombro doía no quinto ou sexto empurrão, mas eu continuava forçando a porta para se abrir. Vendo que meus esforços não eram suficientes, Natsu pediu para que eu me afastasse ligeiramente para o lado, para que assim pudesse me ajudar. E então nós dois começamos a empurrar mais uma vez, com todas as nossas forças.

Pude ouvir, muito distante, alguém gritar do andar de cima para que parássemos com o barulho. E é claro, ignoramos completamente aquilo. Embora tenhamos ouvindo algo se quebrando — creio eu que tenha sido algum dos trincos da porta. —, ela ainda permanecia firmemente fechada. Parei, e depois de mais uma tentativa, Natsu fez o mesmo. Exauridos, nós dois respirávamos de maneira sôfrega, devido aos nossos esforços relativamente vãos.

Observei Natsu se afastar de mim, andando até ficar defronte a porta.

— Se afasta. — Pediu.

Me afastei, e ele começou a chutar a maçaneta. A primeira tentativa não resultou em nada — mas fez com que mais um berro estridente dirigisse-se à nós, vindo do andar superior. —, a segunda, com mais força por parte dele, gerou um pequeno estalo, e a porta se inclinou ligeiramente. Na terceira tentativa, ela finalmente se abriu.

Entramos, e a primeira coisa que sentimos foi o cheiro.

Aquele lugar fedia. Um odor rançoso de vômito, urina, cigarros e outras coisas que eu não fazia ideia do que seriam, e era tão forte que me causou profundas náuseas no mesmo instante. Incapaz de suportar por mais tempo, ergui minha camiseta até o nariz, e vi Natsu fazer o mesmo. O lugar estava praticamente tomado pela escuridão — a escassa iluminação que ainda havia provinha das frestas da janela, e do corredor atrás de nós. Completamente fechado, o apartamento de Gray cheirava insuportavelmente mal, de uma maneira sufocante e abafada.

— Abre essa janela! — Grunhi para Natsu.

Ouvi os barulhos das persianas sendo levantadas, e tão logo a luz entrou no ambiente. A aparência daquela sala de estar não deixava de fazer jus ao odor do cômodo: havia roupas sujas empilhadas por toda a extensão do sofá, embalagens de comida, bem como os seus restos sujando o chão. Garrafas espalhadas de uísque e de vinho, em sua maioria vazias — algumas ainda contavam com uma quantidade ínfima, no fundo. —, e muitas bitucas de cigarro sobre a mesa de centro. O abajur de chão do canto da sala estava caído, sob toda aquela bagunça de garrafas e embalagens. Uma camisa social estava jogada sobre a TV, e ela estava com uma grande mancha vermelho escuro. Eu rezava para que aquilo fosse vinho, e não algo pior.

Deus, um animal apodrecendo debaixo do sol federia menos.

Não me atrevi a olhar a cozinha e ver a bagunça que deveria estar. Quando percebi, Natsu já estava indo em direção ao quarto de Gray, e eu não tardei em segui-lo. Durante o pequeno trajeto, ele parou, abaixando-se para pegar algo. Silenciosamente, virou-se para mim, colocando o pequeno objeto em minhas mãos.

— Erza, olhe.

Sulfato de Morfina.

Ao ler aquelas palavras, senti o desespero apossar-se de mim por inteira em questão de centésimos de um segundo. Não foi preciso de mais nada para que eu adentrasse naquele quarto, tomada por ímpeto que misturava raiva e preocupação. Natsu veio logo em seguida, tão preocupado quanto eu.

Se a sala era uma sujeira completa, aquele quarto não era muito diferente. No entanto, aquilo não era de grande importância; nossas preocupações eram outras, e ao vermos Gray completamente imóvel, inerte a todo barulho que fizemos, meus anseios culminaram.

— Ele está...?

Natsu sequer conseguiu terminar a pergunta que nós dois temíamos ser verdade, e muito provavelmente isso se devia à visão de Gray; estava tão pálido quanto a camiseta branca que vestia, com os lábios rachados entreabertos, bem como os seus olhos. Sentei-me ao seu lado, e coloquei dois dedos em seu pescoço. Senti um enorme peso em meu estomago ao fazê-lo; não senti absolutamente nada. Minhas mãos ameaçaram tremer, e então eu comecei a respirar profundamente para me acalmar.

Não é a primeira vez que isso acontece. Tenha calma.

Gray estava frio. Muito frio.

Cada vez mais impaciente — e inegavelmente nervosa. —, levei minha mão para perto de suas narinas. Eu respirava cada vez mais fundo, para que, pelo menos, minha mão não se mexesse tanto devido ao nervosismo crescente. Segundos transcorreram como longuíssimas horas sem que eu sentisse algo, até que, finalmente, percebi em meus dedos uma leve brisa fria sendo expirada.

— Ele está respirando. — Informei a Natsu. — Fraco, mas está.

Senti toda a minha tensão se esvair num instante, e apenas para ter certeza, verifiquei seus batimentos cardíacos mais uma vez. Desta vez, consegui senti-los, embora estivessem tão fracos quanto sua respiração.

Mas de qualquer forma, era um bom sinal.

— Merda. Isso é... isso é bom. — Suspirou Natsu, com tranquilidade, se permitindo até mesmo um sutil sorriso de alívio.

Encostou-se sobre a cômoda ao lado da cama, e perguntou-me em seguida:

— Devemos levar ele p’ra um hospital?

— Não. — Respondi rapidamente. — Você não se lembra do que aconteceu na última vez que Gray foi para um hospital?

— Ah. — Foi tudo o que ele emitiu.

Gray tem uma longa jornada em hospitais e clínicas, e isso começou muito cedo, quando ele ainda era uma criança. No entanto, em sua última estada em um lugar desses, as coisas não terminaram nada bem: já viciado em morfina — e, na ocasião em questão, estava já há consideráveis dias sem fazer uso do ópio. —, não fora surpresa alguma o fato de que estava enfrentando a abstinência, desesperado para obter mais. Um dia antes de sua alta, durante a noite, Gray resolveu tentar a sorte, arriscando-se a roubar o estoque de morfina que havia no hospital. Foi flagrado, é claro, e ele teve que responder por tentativa de roubo, passando alguns dias atrás das grades.

Tal episódio fez com que seu comportamento piorasse bastante, bem como o seu vício.

— O que fazemos agora? — Perguntou Natsu.

Toquei levemente no rosto de Gray, pálido e frio.

— Esperamos.

Era tudo o que podíamos fazer, afinal.

* * *

Os efeitos da morfina duravam horas — variavam de quatro a seis, em média, e eu não fazia ideia da quantidade que Gray havia ingerido. Esperar simplesmente seria torturante — além da ansiedade recorrente do ato em si, aquele lugar fedia demais para que ficássemos plenamente sãos por muito tempo.

Para ocupar o nosso tempo, e para fazer algo bom pelo nosso amigo negligente (bem como para nós), decidimos limpar aquele lugar. Pedi a Natsu para que saísse e arranjasse sacolas grandes para nos livrarmos de todo o lixo existente no apartamento. No ínterim de sua ausência, fui recolhendo a sujeira que estava espalhada pelo quarto, levando tudo para o corredor. Mais e mais embalagens de comida, algumas garrafas vazias de vinho e uma ou duas latas de cerveja preta. Recolhi algumas roupas usadas e as dobrei, empilhando-as em um canto do quarto.

Assim que Natsu voltou, começamos a recolher todo o lixo do apartamento. Limpamos toda a sujeira, restos de comida e o vômito seco da sala. Depois de muito trabalho, idas e vindas pelas escadarias para levar as sacolas cheias de inutilidades, e o trabalho extra para se livrar do fedor — que, aparentemente, se impregnou no lugar de tal maneira, ao ponto de parecer impossível extingui-lo por completo. —, acabamos. Gray ainda estava dopado quando terminamos tudo, e como tínhamos ido ali por causa dele, esperar mais um pouco não seria problema algum.

E, no finzinho da tarde, enquanto assistíamos aos velhos dvd’s de Twin Peaks que Gray possuía, escutamos algo se quebrando, vindo de seu quarto. Nos dirigimos para lá, e o encontramos no chão, tentando, de maneira deplorável, colocar-se de pé. Uma de suas mãos tateava sobre o criado-mudo, buscando algum tipo de sustentação — e provavelmente neste ato fora que derrubou um copo de vidro. —, mas os efeitos da morfina ainda estavam presentes, e seus músculos tremulavam e vacilavam ao menor esforço que ele fazia.

— Ei, calma aí, Gray. — Natsu se moveu rapidamente para amparar Gray, que, completamente atordoado, tentava se levantar sem grandes resultados.

Não muito diferente das outras vezes, ele estava perdido de si. Tinha o semblante inexpressivo, inteiramente alheio à nossa presença — e arrisco que alheio a si mesmo, também. Tentava, fracamente, desvencilhar-se do amparo de Natsu, e parecia balbuciar, com muitíssimo esforço, algumas palavras que eu não conseguia ouvir. Percebi que suas mãos estavam sangrando levemente, algo que se devia ao contato com pedaços de vidro espalhados pelo chão.

— Não deixe que ele se levante e tente fazer alguma besteira. — Contornei os cacos de vidro, e sentei-me próxima aos dois. — O que ele está dizendo?

— Não sei. — Natsu deu dois tapas leves no rosto de Gray, na tentativa para aquele recobrasse a consciência, ou pelo menos para que ele se voltasse para nós. — Ei, Gray, somos nós.

Ele nada disse em resposta, e eu acho que ele sequer nos ouviu, ou percebera a nossa presença. Mirava continuamente algum ponto distante, e seus lábios continuavam se movimentando, ainda que não emitisse nada mais do que sons inteligíveis. Gray estava ficando gradativamente mais inquieto, suas mãos passaram a se mexer em tiques nervosos, e ele começou a piscar os olhos repetidas vezes.

— Re... Re... — Murmurava com grande dificuldade, semelhante a uma criança em suas primeiras tentativas em pronunciar alguma palavra.

— Ok, cara, você ainda está dopado p’ra cacete. Vai com calma. — Orientou Natsu, enquanto tentava fazê-lo deitar novamente. Virou-se rapidamente para mim, e me disse:

— Ele parece estar com febre. E está suando muito.

— São os efeitos da disforia¹. — Comentei. Peguei uma das mãos dele com cuidado, e passei alguns dedos pelo pulso até e por toda a extensão do braço. — Ele está arrepiado. — Soltei sua mão, e soltei um profundo suspiro, já ciente do que estava por vir. — Isso vai ser estressante.

Aquilo era apenas o começo de uma série de sintomas que se seguem após os efeitos da morfina, e eles não eram nada agradáveis. No caso de Gray, um dependente químico, eles costumavam durar dias.

Longos e torturantes dias, seja para ele, o dependente, e para nós, pessoas que se importam com sua saúde.

— Re... Gard. — Ele murmurou, um pouco mais alto e claro que das outras vezes. De repente, Gray estava me encarando com aquele olhar impassivelmente vazio que conhecíamos bem, mas que nunca deixava de ser desconfortável.

— O quê? — Perguntei automaticamente.

— R-regard. — Repetiu.

— Regard? — Natsu franziu o cenho.

— Ele... ele está aqui? — Indagou, olhando para os lados, como se procurasse por alguém. Sua voz ainda estava embargada, e suas palavras saiam enroladas.

— Não tem nenhum Regard aqui, Gray. Relaxa. — Natsu tentou tranquiliza-lo.

— Mas ele estava... aqui. — Insistiu, agitando-se cada vez mais. — Ele estava aqui!

— Ok, ok, Gray. Regard já foi embora. Fique calmo. — Apressei-me em dizer, seguindo de acordo com sua alucinação. — Não precisa se preocupar.

— Mesmo? — Sua face se abrandou levemente.

— Sim. — Respondi com mais firmeza e tranquilidade. —Fique tranquilo.

A preocupação de Gray pareceu apaziguar, e ele permaneceu em silêncio por alguns minutos. Tomei então suas mãos nas minhas, para verificar os ferimentos causados pelo vidro. Eram superficiais, cortes fininhos que sangravam apenas com a pressão em excesso sobre a pele. Ainda assim, pedi para que Natsu fosse ao banheiro em busca de álcool e gaze, ou algum tecido que servisse para cumprir a função. Precauções nunca são demais, principalmente no caso de Gray.

— Ei. — Gray sussurrou, se inclinando em minha direção, como se estivesse prestes a me segredar algo sério.

— Sim?

— Tem certeza de que ele não está aqui?

Ele se assemelhava a uma criança assustada.

— Tenho, Gray. Está apenas nós três.

Ele ficou em silêncio por alguns instantes. E, abaixando a cabeça, falou ainda mais baixo:

— Eu estou medo.

Ouvir isso me pegou completamente desprevenida, apesar de não ser a primeira vez que Gray, após o uso de morfina, falava coisas do gênero. Eu já havia escutado algumas vezes ele falar sobre o tal Regard, porém nas vezes em que eu retomava o assunto quando ele estava “sóbrio”, Gray ficava tenso, irritado, e nunca me respondia.

E em todas as vezes que ele confidenciava involuntariamente o seu medo, o nome desse indivíduo estava envolvido.

— Medo de quê?

— Dele.

— Do Regard?

Gray assentiu.

— Por quê?

— Ele disse que gosta de matar pessoas inúteis.

Fiquei em silêncio, surpresa com a sutilidade e franqueza de suas palavras. Eu nunca, nunca escutara nada assim em todos os anos de convívio, e aquelas palavras me fizeram pensar que Gray sabia — e quem sabe, muito mais do que se podia especular. —, sobre quem poderia ter sido o responsável por todas as coisas que aconteceram com ele — e com toda a cidade, de maneira geral. — dezessete anos atrás.

— Erza?

A voz de Natsu me causou um ligeiro sobressalto. Ele trazia consigo uma garrafinha de álcool pela metade, e uma embalagem de gaze fechada. Entregou-me, e comecei a limpar os pequenos cortes nas mãos de Gray.

Ante a minha reação, Natsu se aproximou, e perguntou-me num cochicho:

— O que foi?

— Depois conversamos. — Sentenciei.

Enrolei as mãos de Gray com uma fina camada de gaze, apenas para precaver qualquer coisa que fosse. Pedi para que ele descansasse, e assim que fez menção de pestanejar, adiantei-me em dizer, mais de uma vez, de que não havia mais ninguém ali além de nós. Ele enfim se deitou. Permanecendo em silêncio, fitava as próprias mãos, como sem tentasse entender o que exatamente havia nelas.

Levantei-me da cama, em direção a porta do quarto, e Natsu fez o mesmo. Eu sabia muitíssimo bem de que, logo após esse momento de alucinações, Gray recobraria a consciência de onde estava, bem como de nossa presença. E então começaria a disforia de verdade: a agressividade, a hostilidade, o anseio por mais morfina.

— Vamos passar a noite aqui. — Disse a Natsu. — Por via das dúvidas.

* * *

— Ele estava falando aquele nome, de novo. — Revelou Erza, enquanto levava o isqueiro até o cigarro em sua boca.

Bebi mais um gole da latinha de energético. Erza e eu pegamos duas das cadeiras da cozinha e levamo-las para perto da janela, para que ela fumasse sem impregnar o apartamento com o cheiro, e eu, para lhe fazer companhia. A noite já estava avançada, o céu límpido de nuvens e cheio de estrelas, como era de costume nos começos de verão em Magnólia. Como passaríamos a noite ali para evitar qualquer idiotice que Gray pudesse fazer, nada mais natural que nos manter acordados da melhor maneira que podíamos. E, conhecendo Erza como eu conhecia, cigarros só era um recurso para qual ela recorria quando ela se encontrava profundamente estressada.

Mas, principalmente, preocupada.

— “Regard”?

Ela assentiu, soprando a fumaça para fora do apartamento.

— Isso me preocupa. — Disse ela, num tom sombrio. — Todas as vezes que ele fala esse nome, é quando ele está perto de ter alguma crise e de fazer alguma besteira.

— A mim também. — Bebi o último gole. — Ninguém nunca soube quem era esse cara, não é?

Erza meneou a cabeça, negando. Por algum tempo, tudo o que escutávamos era uma das várias músicas aleatórias de alguns CD's que Gray colecionava. It feels like I only go backwards, baby/Every part of me says go ahead/I got my hopes up again, oh no... Not again. Era uma maneira quase que eficiente de justapor o barulho que ele fazia dentro do quarto.

— Eu só escutei esse nome vindo dele. — Disse Erza, mirando o céu noturno. — Regard, Regard Goon. Ninguém nunca conheceu alguém chamado assim. Se é que isso é um nome de verdade.

— Não acho que seja. — Comentei. — Mas quem quer que tenha sido, deve ter sido um belo de um filho da puta. Dezessete anos e o Gray ainda fala o nome dele quando ‘tá chapado.

— Apesar disso, muita gente passou a crer que havia alguém com esse nome. E a pensar que ele matou aquelas pessoas.

Antes que eu pudesse comentar alguma coisa, escutamos um berro raivoso vindo do quarto, e o barulho de alguém tentando vãmente abrir a porta.

Eu odeio vocês! — Gray gritava, e em seguida pudemos escutar mais uma de suas tentativas de empurrar a porta. Era estranho ouvi-lo falar naquela circunstância, tão irritado, e ainda assim tão chapado. Ele ainda estava com a voz meio dopada, meio enrolado, meio inconstante. — Me tirem daqui!

Olhei para Erza, e tudo o que ela fez foi suspirar pesarosamente.

— Quantos dias dura essa disforia? — Indaguei.

— Depende. — Erza deu uma última tragada no cigarro, e ainda que ele estivesse pela metade, atirou-o pela janela.  — Às vezes dois dias, às vezes cinco.

— Meu Deus.

Ouvimos mais algumas tentativas de Gray para abrir a porta, e levou algum tempo para que aquele ímpeto de ira finalmente parasse.

— Ele vai tentar conseguir mais morfina. — Comentei.

— Vai. Ele deve estar usando muito, e os efeitos durando cada vez menos, em contraparte aos efeitos da recaída.

— Se soubéssemos onde ele consegue...

— Ele é esperto. Pena que é para esse tipo de coisa.

Fui até a cozinha, onde havia deixado as latas de energéticos restantes. Voltei, e ofereci uma à Erza, que aceitou. Bebemos em silêncio, e enquanto ela passeava a mão livre sob a caixa de cigarros em seu colo — considerando provavelmente fumar mais um maço, eu pensava naquela situação.

Gray sempre havia sido um garoto problemático, o tipo de pessoa que você pode dizer que nasceu na merda, quase que literalmente. Pelo que me lembro, quando éramos crianças, ele tentava se sobrepor a todas as suas dificuldades. E isso era algo legal nele, porque ele tentava. Mesmo sendo um fedelho na época — um fedelho cheio de problemas. — ele tentava. Tentava ser feliz, e fazer as outras pessoas ao redor felizes também.

Era estranho, agora, vê-lo sucumbir aos próprios vícios.

— Você acha que ele vai melhorar algum dia?

Erza se remexeu na cadeira. Parecia desconfortável com a minha pergunta.

— Eu não sei. — Respondeu, num suspiro pesaroso. — Vindo do Gray, eu não consigo ter certeza de absolutamente nada.

Ouvimos, mais uma vez, barulhos que indicavam que Gray estava tentando vãmente abrir a porta. Ainda mais desesperado que antes, e muito mais irritado.

ABRAM ESSA PORRA, AGORA! — Ouvimo-lo gritar, e então houve uma tentativa de abri-la com um chute. — EU VOU MATAR VOCÊS!

Erza me encarou por alguns instantes, e riu. Um riso nervoso. E triste.

Levou mais um cigarro aos lábios, acendendo-o. It feels like I only go backwards, baby/Every part of me says go ahead//I got my hopes up again, oh no? Not again/Feels like we only go backwards darling.

Seria uma noite longa, como sempre eram durante o verão em Magnólia


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Notas finais do capítulo

1) A disforia é um termo médico que significa mal-estar. No contexto do capítulo, temos um Gray viciado, e a disforia acaba sendo os sintomas após as altas doses de morfina, ou seja, ou efeitos colaterais. Esses sintomas que ele teve costumam se manifestar naqueles que são viciados, e por conta disso costumam durar bastante tempo. Sendo o Gray um viciado nato, os efeitos nele duram menos tempo, e a disforia vem mais rapidamente, durando ainda mais que o esperado.

Pois é, o Gray é lhouco nas morfina, cês nem tem ideia do quanto! =p Nesse quis mostrar mais um pouquinho sobre a situação atual do sr. Fullbuster, e introduzir outros personagens, bem como já mostrar qual a relação entre eles, e um pouco de suas personalidades aqui. O próximo será ainda maior, com outros personagens, arquivos e mostrando, de fato, a cidade de Magnólia!

Espero que tenham curtido! Se tudo der certo, não levarei meses para o próximo. Juro!
Beijão ♥



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