As Crônicas de Pan Gu escrita por Nanahoshi


Capítulo 8
As Crônicas dos Reinos - A história que quero ouvir


Notas iniciais do capítulo

DEPOIS DE TRÊS MILÊNIOS E DOIS SÉCULOS ESTOU DE VOLTAAAA!!!
Desculpem o atraso t.t Eu tive que planejar melhor a história e isso me forçou a ficar um tempinho ocupada com pesquisas in game (e demora viu).
Chegamos ao capítulo derradeiro da mini-saga de Kallahari e Andreza :3 no próximo teremos personagens novinhos em folha!
Espero que não tenham desistido da história, já que planejo muitas e muitas surpresas pra vocês com todos os detalhes possíveis dessa história lindíssima q é a do Perfect World!
E sem mais delongas, o capítulo!



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Pedra.

Foi a primeira coisa que Kallahari viu quando abriu os olhos.

“Esse lugar é o paraíso? Ou será que eu acabei indo para o inferno?”, pensou o menino piscando várias vezes para tentar enxergar melhor.

Kallahari olhou para os lados tentando se posicionar. A textura de pedra escura que vira ao acordar compunha um teto irregular cheio de estalactites que gotejavam uma água turva e gelada. O teto e as paredes formavam uma superfície contínua e homogênea com o teto, com sulcos cavados pelo tempo e estalagmites que se erguiam feito dentes de uma fera adormecida.

Ele estava, com certeza, numa caverna. Mas... onde exatamente era aquela caverna? Ele não deveria ter morrido com a queda do precipício?

Kallahari apertou os olhos tentando se lembrar do que acontecera, mas suas lembranças pareciam envoltas pela névoa úmida formada pela cachoeira. Frustrado, o garoto voltou sua atenção para seu próprio corpo. Estava deitado de costas contra o chão, os braços estendidos ao lado do corpo e as pernas também estendidas levemente abertas. Tentou mexer os dedos das mãos, que responderam prontamente. Suspirando aliviado, ele tentou o mesmo com os dedos dos pés, que foram tão obedientes quanto os das mãos. Estava inteiro, sem nenhuma lesão grave aparente.

Firmando as palmas das mãos no chão de pedra gelado, Kallahari tentou se levantar, mas uma dor lancinante assolou seus ombros até as costas, na altura das omoplatas.

—Ugh! – ele grunhiu voltando a jogar o peso do corpo contra o chão de pedra.

—Parado aí, garotinho. – uma voz grave e rouca soou de algum ponto à sua direita.

O alado sentiu seu coração disparar e ele virou bruscamente a cabeça para o lado.

—Quem está aí? – ele berrou suando frio, a frase ecoando no ambiente fechado.

Agora que Kallahari se preocupara em olhar mais ao redor, percebera que havia uma luz avermelhada vinda de um ponto relativamente próximo, e ele sentia leves ondas de calor emanando do mesmo lugar. Recortados contra a luz, ele viu dois vultos, um muito pequeno encolhido ao lado da fonte luminosa e o outro se erguera e caminhava em sua direção.

“Eu preciso fugir!”, ele exclamou mentalmente. “Sabe-se lá se esse cara é um deus da morte ou sei lá! Só sei que eu não tô a fim de morrer!”

O vulto se aproximava depressa, e o alado não teve escolha a não ser forçar seus braços a suportarem a dor de levantar seu corpo. Infelizmente, a pontada aguda que assolou suas costas foi mais dolorosa que a anterior. O ar fugiu de seus pulmões e ele voltou a cair contra o assoalho da caverna.

—Não seja afobado. – repreendeu a mesma voz que ouvira antes. – Se levantar de qualquer jeito, vai só piorar a lesão.

Kallahari olhou desesperado para cima, tentando distinguir as feições do estranho que finalmente o alcançara. O desconhecido se abaixou e fitou o garoto nos olhos. Kallahari engasgou de surpresa e alívio.

—M-Morgan? – ele gaguejou mal encontrando as palavras no fundo da garganta.

Diante dele, o conhecido rosto do bardo da Vila Nanke fitava-o com preocupação misturada a desconfiança.

—Sim. – ele respondeu simplesmente. – Vamos dar uma olhada melhor no estrago agora que você acordou.

Dizendo isso, Morgan segurou-o firmemente pelos ombros e o colocou sentado. Kallahari permaneceu mudo, olhando estarrecido para o rosto do bardo. O velho, apesar da quantidade alarmante de rugas presentes em seu rosto, dava a impressão de estar no seu melhor. O corpo era forte, sem apresentar os sinais de encolhimento da idade. Os ombros eram largos e retos como o de um alado jovem. O rosto enrugado trazia ainda a curva forte do maxilar, e o nariz era reto sem os sinais comuns da velhice como excesso de pelos nas narinas. Os olhos azuis de um tom muito escuro corriam pelo tronco de Kallahari de forma experiente à procura de outros machucados. O cabelo do velho era longo e grisalho como o da maioria dos idosos do Povo Alado, e em determinado ponto ele se fundia com a enorme mecha que coroava sua boca enrugada. Kallahari nunca vira um bigode tão legal quanto aquele, e parecia bem maior do que da última vez que ele vira Morgan. As pequenas asas que ladeavam sua cabeça estavam com as plumas meio caídas, sem o brilho prateado característico das penas dos alados.

“O que ele está fazendo numa caverna como essa?”, perguntou-se o garoto.  

Agora que estava sentado com o apoio de Morgan, Kallahari não sentia tanta dor. Recuperando a sensibilidade das áreas mais doloridas, o menino percebeu que alguma coisa estava grudada em suas costas. Tinha um peso significativo que com certeza o tombaria para trás se o bardo não o estivesse segurando.

“Mas o que é isso?”, perguntou-se Kallahari levando a mão às costas para apalpar o que quer que fosse, mas Morgan o impediu com um tapa.

— Não, aí não. – ele o repreendeu num tom sério. – A base das suas asas ainda está muito inflamada. Melhor não mexer muito.

“Asas?”, ele exclamou mentalmente sem acreditar no que havia escutado.

—O quê!? – berrou Kallahari para Morgan.

—Suas asas, garoto. – o velho tocou de leve a estrutura presa às costas de Kallahari, e ele sentiu o toque. – Você bateu as costas contra o paredão e acabou se machucando. Sorte que o choque foi exatamente no momento que você esticou as asas. Senão, provavelmente você estaria aleijado.

“Aleijado...?”, pensou Kallahari tentando absorver o que Morgan falava. “Pelo machado de Pan Gu! Eu nem sequer sabia que já podia invocar as minhas asas e quase as perdi!”.

—Bom, parece que você está bem... – sentenciou Morgan, levantando-se – Tirando as suas asas, é claro.

O bardo agora estava parado diante de Kallahari encarando o menino com um olhar não muito amigável.

—E já que está bem, preciso que você e a mocinha me esclareçam algumas coisas antes de qualquer pergunta que queiram me fazer.

A ênfase deixava claro que ele não toleraria nenhuma birra de criança ou mínima contradição. Kallahari engoliu em seco e piscou. Foi aí que ele processou outra informação que Morgan acabara de dar.

“Mocinha?”, perguntou-se o garoto. Depois de alguns segundos refletindo sobre o motivo de estar ali naquela caverna com Morgan, as lembranças o acertaram como um coice em seu peito.

—A princesa! – ele exclamou levantando-se rápido demais. Suas costas protestaram novamente, o peso das asas sensíveis puxando-o para trás, mas ele não caiu.

—Princesa? – perguntou Morgan, incrédulo. – Aquela menininha é a princesa!?

Kallahari assentiu e desviou os olhos para o foco de luz mais adiante a caverna. Não dava para distinguir os traços dela, mas o tamanho e o rabo de cavalo se destacando da cabeça denunciavam sua identidade.

Antes que Morgan tivesse a chance de impedi-lo, o menino avançou decidido na direção da silhueta de Andreza. Quando os contornos de seu rosto se tornaram nítidos, ele sentiu a raiva borbulhar no fundo do estômago. Aquela nobrezinha arrogante e egoísta quase o matara. E ela sabia que, se estivesse em perigo, Kallahari era obrigado a interceder por ela, e até dar a vida em troca da sobrevivência de seu pescocinho real.

—Ei! – ele berrou ficando perigosamente próximo de Andreza.

A garota ergueu os olhos para encará-lo, e a expressão que Kallahari viu em seu rosto o fez diminuir drasticamente o passo. A pequenina estava com o rosto cheio de vincos cuja intensidade fora reforçada pelas sombras formadas pela fonte de luz, os olhos endurecidos repletos de decepção e desesperança, uma expressão que ele jamais imaginou ver no rosto de uma criança de cinco anos.

Andreza sustentou o olhar de Kallahari por longos segundos, e depois desviou-os para o chão diante de seus joelhos dobrados. O alado seguiu seu olhar e viu que ela segurava vários papeis amassados entre os dedinhos.

—Meus pergaminhos! – ele exclamou acabando de vez com a distância que os separava. Quando ele esticou as mãos para pegá-los, a princesa fechou os dedos nas bordas e tirou-os bruscamente do alcance de Kallahari.

—Ei! – ele protestou lançando um olhar intimidador para Andreza, mas que falhou miseravelmente. O olhar que ela lhe lançava era cinco vezes mais potente, e suas feições infantis pareciam intensifica-lo ao invés de torna-lo mais inofensivo.

Nesse instante, ele ouviu o som de pés raspando contra o assoalho de pedra e parando logo atrás dele. Virando-se de súbito, Kallahari deu de cara com a expressão séria de Morgan.

—Sente-se. – ele ordenou. – Depois que me contarem tudo, podem se acertar como quiserem.

O menino alado engoliu e assentiu, desviando o olhar para o chão. Os olhos azuis de Morgan lembravam as águas do Lago Celeste refletindo o céu do lusco-fusco. Era exatamente nessa hora que elas pareciam mais profundas e aterrorizantes para Kallahari, escondendo coisas e criaturas que apareciam em seus piores pesadelos.

De cabeça baixa, o garoto se sentou perto da fonte de luz e aguardou as perguntas do bardo. Ficou olhando para a bola incandescente que flutuava diante deles que emitia chamas para todos os lados. Naquela intensidade, ele imaginou que a fonte luminosa fosse emitir mais calor, mas a temperatura ao redor da fogueira era extremamente agradável.

—Isso é fogo mágico? – perguntou Kallahari sem conseguir refrear sua curiosidade.

—Sim. – respondeu Morgan depois de fuzila-lo com os olhos. – É o mesmo que ilumina todas as estradas e ruas das nossas terras.

“Então era esse fogo que eu vi dentro das lamparinas da biblioteca subterrânea do palácio...”, pensou o garoto fixando as chamas que dançavam ao redor da esfera de energia. “Está explicado porque ainda estavam acesas”.

Foi aí que ele se lembrou que não sabia onde estava. Aquela caverna... Não se lembrava de ter ouvido sobre alguma nas redondezas da Vila Nanke. Então onde eles estavam?

Mesmo sabendo que o bardo poderia se irritar com ele novamente, Kallahari permitiu que sua curiosidade falasse mais alto novamente.

—Morgan, desculpa pergunta, mas... Onde nós estamos?

O velho, como Kallahari previra, voltou a lançar um olhar fulminante em sua direção.

—É uma caverna que fica atrás da cachoeira. Arrastei-os para cá para não chamarem a atenção dos aldeões. O que diriam se me vissem com duas crianças desacordadas, sendo que uma delas é supostamente a princesa e o outro é um garoto de dez anos com asas?

Tanto Andreza quanto Kallahari ficaram em silêncio. Morgan bufou e reduziu de vez a distância que os separava dos garotos, parando, ainda de pé, entre eles.

—Mas podem ficar tranquilos. Vocês podem ficar aqui o quanto quiserem para planejar uma saída estratégica depois de me explicarem tudo. Ninguém vem aqui por ser um lugar quase inacessível e tem uma boa vedação de som. Nem dá pra ouvir a cachoeira.

“É exatamente disso que estou com medo”, pensou o garoto lembrando-se do rosto carrancudo do bardo.

O velho bardo se sentou entre Andreza e Kallahari e em seguida puxou uma espécie de cabaça para perto de si. Ela estivera oculta pela sombra bruxuleante da princesa, impedindo que o garoto alado a visse antes. Ele arrancou a parte menor e bebeu o que quer que estivesse dentro, fazendo muito barulho. Ao termina, limpou a boca e o bigode com as costas da mão e tornou a tampar o recipiente sem muita cerimônia. Era estranho. Geralmente, todos os alados, independente do seu porte e classe social, costumavam ter movimentos particularmente graciosos que pareciam regidos por uma detalhada etiqueta. Mas Morgan era uma exceção. Seus movimentos eram bruscos e descuidados. Se não o conhecesse, Kallahari poderia jurar que era um forasteiro.

—Muito bem. – ele disse pousando a cabaça ruidosamente diante de si e olhando para Andreza. – Quem quer começar?

Os dois pequenos ficaram calados, os olhos fixos na chama esférica da fogueira mágica. Vendo que nenhum deles demonstrou sinais de querer responder, Morgan revirou os olhos e suspirou pesadamente.

—Ok. Talvez eu devesse fazer uma pequena recapitulação do que já sei. – ele olhou para Kallahari. – Já que o garoto aqui estava desacordado.

O menino se encolheu sem ousar desviar os olhos para fitar o bardo. Morgan tossiu e retomou a fala:

—A pequena Andreza, que agora sei que é ninguém mais que a nossa amada princesa, - era impressão ou ele parecia estar sendo sarcástico? – me contou sobre esses papeis e como eles foram parar fora dos limites do palácio real. De acordo com ela, alguém invadiu a biblioteca subterrânea do castelo e levou-os sem permissão. Esse suposto ladrão revelou-se ser você, meu caro Kallahari. Você estava com eles e alegou estar me procurando para mostra-los a mim, certo?

O rosto do pequeno alado tinha ficado vermelho com a forma com que Morgan estava colocando os fatos. A raiva pela princesa só crescia, e ele não duvidava nada que partiria para cima dela assim que se acertassem com o velho bardo. Como ela podia ter sido tão... desdenhosa nesse relato? Ele tinha salvado a vida dela!

Lívido de raiva, Kallahari espiou sobre as pernas cruzadas de Morgan para fixar Andreza. A garota continuava na mesma posição, só que agora abraçava os joelhos com força. Sua expressão era indecifrável, já que a maior parte do rosto estava coberta por sombras.

—Eu perguntei se estou certo, garoto. – disse o bardo num tom levemente ríspido.

O alado apenas assentiu. Ele não era maluco de interromper Morgan.

—E então, - continuou o velho espichando os braços para trás. – vocês tiveram o infortúnio de esbarrar com cinco arruaceiros da Vila Nanke que arremessaram isso cachoeira abaixo. A minha primeira pergunta é: por que diabos vocês pularam atrás desses malditos papéis?

Andreza se encolheu ainda mais, enterrando o rosto em suas coxas finas. Kallahari fuzilou-a com os olhos e provocou:

—É melhor ela responder. Afinal, foi ela que pulou primeiro. Eu só pulei porque ia morrer de qualquer jeito. Se eu deixasse a princesinha se espatifar no Rio da Alegria sem fazer nada, minha cabeça rolaria assim que a notícia chegasse aos ouvidos do papai dela.

Morgan não repreendeu Kallahari pelo tom desdenhoso, limitando-se apenas a virar a cabeça na direção de Andreza e dizer:

—Então?

A princesa se remexeu desconfortável onde estava e ergueu o rosto alguns centímetros. Com uma voz quase inaudível, ela respondeu:

—Eu não podia deixar algo precioso se perder. São os meus livros. Meu tesouro. E todos eles contam histórias que preciso saber.

Kallahari revirou os olhos e bufou.

—Nossa. Você é realmente uma princesa mimada. Muito.

Morgan virou bruscamente a cabeça para o garoto e lançou o mesmo olhar intimidador de antes. Com os dentes quase trincados, o bardo sibilou:

—Eu não terminei ainda. Então fique de boca fechada.

Kallahari emudeceu instantaneamente. Aquilo era inesperado. O bardo era uma referência de simpatia e jovialidade em toda a terra dos Alados. Ele nunca iria imaginar que, na verdade, Morgan fosse um velho ranzinza e nem um pouco educado.

—Por que você quer saber sobre todas essas histórias? – perguntou o velho alado voltando-se para a princesa.

Kallahari teve que fazer um esforço imenso para não protestar. Ele ia mesmo se deixar levar pela conversinha mole dela? Voltando os olhos vagarosamente para Andreza, o garoto preparou seu melhor olhar de desprezo, mas o que viu o fez arregalar tanto os olhos que eles quase saltaram das órbitas.

Ele nunca tinha visto um rosto infantil tão triste. Triste e... maduro. Assim que Morgan fizera a pergunta, Andreza havia levantado os olhos e encarado firmemente o rosto do bardo. O olhar negro da menina acentuado pela escuridão parcial da caverna carregava uma tristeza tão profunda que podia trazer lágrimas nos olhos de pessoas mais sensíveis. Aquela expressão... no rosto de uma criança... Havia algo errado com ela. Muito errado.

A princesa apertou os lábios e piscou várias vezes. Estava tentando espantar as lágrimas que tentavam escorrer, mas era quase impossível. Depois, lentamente, baixou a cabeça e balançou-a com veemência.

Não queria responder àquela pergunta. Na verdade... não iria conseguir.

Morgan , por sua vez, fitava Andreza com o máximo de atenção possível. Tivera a mesma sensação que Kallahari em relação ao olhar triste da menina, mas os anos que carregava nas costas haviam endurecido seu coração a ponto de ensiná-lo muito bem a mascarar suas emoções. Entretanto, o bardo não deixava de estar extremamente intrigado. Andreza tinha apenas cinco anos e tinha essa fixação pelos documentos guardados pelos Alados na sua fortaleza de madeira. O motivo ele sequer conseguia imaginar. Mas de uma coisa ele tinha certeza: o motivo não era egoísta, como ficara sugerido pelas acusações de Kallahari. Os olhos da menina guardavam uma maturidade singular, que muitos demoravam anos e anos para atingir.

Mas havia algo a mais ali. Algo que deixara uma pequena impressão no bardo. Por trás da tristeza e da maturidade, a princesa dos Alados escondia um terceiro aspecto.

Vendo que teria de construir uma outra abordagem, Morgan suspirou e reorganizou sua estratégia, recuando:

—Tudo bem. Não precisa responder. Agora vamos à segunda pergunta, que na verdade é mais uma ordem: quero explicações verdadeiras sobre as suas asas. – ele apontou acusadoramente para as asas alvas que se projetavam das omoplatas de Kallahari, e depois voltou o olhar carrancudo para Andreza. – E o tornado que livrou os dois da morte certa segundos antes de vocês baterem na água.

—Tornado? – exclamou Kallahari sem conseguir se refrear.

A princesa limitou-se a se encolher de novo.

O pequeno alado buscou na memória desesperadamente por imagens daquele momento crítico. Lembrava-se de ter mergulhado na névoa produzida pela cachoeira, e dali em diante sua visão ficou bastante prejudicada. Via apenas um vulto borrado diante de si, que logicamente pertencia à Andreza. Lembrava-se de alguns segundos depois ter visto uma mancha escura gigante tomar conta de seu campo de visão, o que significava que a água estava perigosamente próxima. Foi no momento que a morte lhe pareceu certa que Kallahari enlouqueceu. Lembrava-se de ter se debatido no ar pensando em como queria suas asas naquele momento, que era sua única chance de sobrevivência e aí...

—Ah! – arfou Kallahari. – Foi isso!

Tanto Morgan quanto Andreza o espiaram com espanto.

—Eu não estava me lembrando direito porque a névoa tinha praticamente me cegado, mas... as sensações... – ele se empertigou onde estava ao se lembrar do momento fatídico. – Eu vi que íamos mesmo morrer e comecei a me debater feito um louco pensando nas minhas asas, e em como elas poderiam nos salvar... Foi aí que eu senti uma dor horrível nas costas, como se algo tivesse rasgado a minha pele um pouco abaixo dos ombros. Só que logo depois da dor, eu senti como se tivesse ficado maior, e eu senti uma extensão no meu corpo se projetando das costas. Então eu instintivamente direcionei toda a minha força pra essa extensão e as agitei.

Morgan o fitava com uma expressão neutra, mas Andreza o encarava com fascínio, mesmo que a contragosto.

—Foi de imediato. Senti o vento passar mais rápido por mim e em instantes tinha alcançado os pés da princesa. Daí eu a puxei para trás e tentei prendê-la contra meu corpo, mas nesse instante eu vi que era tarde demais. A água estava há uns dez metros. Não dava pra erguê-la junto comigo e... – a voz de Kallahari foi sumindo na medida que sua cabeça se virava para que ele encarasse a princesa.

—Então eu invoquei o Tornado. – ela completou desviando os olhos para a fogueira com a típica expressão de uma criança quando é pega no flagra fazendo alguma arte.

—Então eu estava certo. – o pronunciamento de Morgan fez os dois darem um pulo onde estava. O bardo ficara tão quieto que eles haviam esquecido que ele ainda estava lá. – O Tornado foi obra sua.

A princesa se encolheu ainda olhando para as chamas. O bardo a encarou, furioso.

—Você tem noção de que técnica é essa, mocinha? Tem noção do risco que passou ao invocar um tornado como aquele?

Andreza não mexeu um músculo. Estava tão encolhida que poderia ser facilmente confundida com uma pedra se olhassem seu vulto de longe.O nível de raiva do bardo a pegara completamente desprevinida. E, além disso, ela sempre achara que o Tornado fosse a técnica mais básica de um sacerdote, o que não reivindicaria tanto conhecimento sobre controle e canalização de energia. Mas, pelo visto, ela estivera enganada o tempo todo.

—Agora sim faz sentido. – continuou Morgan. – Você pulou porque sabia que poderia se salvar. Iria usar o tornado para desacelerar seu corpo ao cair na água... Ou até quem sabe usar a rotação dele para atirá-la em terra firme. E saiba que isso não te faz menos irresponsável. Pular foi uma ideia insana. Principalmente pelo fato de estar acompanhada por esse aqui.

Ele apontou o dedo indicador sujo para Kallahari, que se empertigou onde estava pelo tom usado pelo bardo. Puxa! Ele não era e a simpatia em pessoa nem de longe, mas conseguia enganar os aldeões direitinho. Contudo, o garoto não protestou. Afinal, estava adorando ver a princesinha mimada levar um esporro do velho. Ninguém do palácio (a não ser ele) estava ali para defende-la em seus caprichos infantis, então Morgan poderia falar à vontade sem correr o risco de parar numa forca.

Entretanto, a fúria de Morgan não durou muito. Depois de baixar o indicador, ele respirou fundo e pegou a cabaça novamente, destampando-a sem cuidado e bebendo do conteúdo sem fazer questão de demonstrar polidez. Depois de três goles generosos e audíveis, ele bateu a cabaça no chão e tornou a fechá-la. Inspirando, ele voltou a encarar as duas crianças e disse:

—Escutem. Eu não me interesso muito pelo que acontece ou o que deixa de acontecer com vocês, mas me deixem explicar uma coisa. Sorte não é algo com que a gente possa contar o tempo todo, então nem ousem aprontar outra vez nessas proporções. – ele olhou acusadoramente para Kallahari. – Você podia ter se partido ao meio, sabia? Existe uma razão para que os alados só busquem despertar suas asas aos quinze anos. Seus corpos estarão fisicamente preparados para a dor, e tem muito menos chance de partirem ao meio do que um tronquinho macilento de um moleque de dez anos. Aposto que deve estar doendo um bocado isso aí. – ele apontou para as asas de Kallahari. – E foi realmente um milagre ter parado de sangrar tão rápido.

Morgan parou para tomar fôlego novamente, puxando a cabaça que acidentalmente colocara perto do fogo. Inspirando novamente, o velho virou o rosto para encarar Andreza. A menina observava-o com o olhar apavorado, mas ainda assim era possível perceber uma certa resignação. Ela sabia que tinha feito algo errado e estava preparada para arcar com a bronca. Isso fez com que a ferocidade do bardo vacilasse por um segundo, mas logo sua testa se vincou numa expressão de repreensão.

—E você, princesa— ele enfatizou a palavra de forma desdenhosa. -, nunca mais tente invocar um Tornado daquele antes de se iniciar de forma apropriada. Você devia saber que só os iniciados no Cultivo Espiritual podem realizar magias desse porte. Se você perdesse o controle da canalização de sua energia, você morreria imediatamente.

Andreza assentiu timidamente e abaixou a cabeça.

—Não vou mais fazer isso. – disse com a culpa explícita em sua voz.

A obediência imediata da garota fez a postura carrancuda de Morgan vacilar. Observando melhor suas reações, ela não parecia ser a princesa mimada da qual Kallahari falara. Muito pelo contrário: Andreza parecia muito mais ciente do mundo e de como ele funciona do que muitas pessoas bem mais velhas que ela.

Cruzando os braços, o velho bardo tornou a suspirar e olhou para a fogueira.

“Bom, acho que já posso me dar por satisfeito... Mas isso tudo ainda me incomoda”, pensou Morgan enquanto observava as chamas amarelas dançando em volta da bola de energia que flutuava no centro da fogueira. “Um garoto de dez anos despertar suas asas? Há quantos anos isso não acontece? E essa princesa... Eu já tinha ouvido falar dela, mas agora vejo o quão superficial é o olhar dos civis em relação à ela... Será que eles fazem ideia que ela está se iniciando sozinha? E ainda por cima... Os dois pareciam muito desesperado por recuperar aqueles pergaminhos...”

O bardo desviou os olhos da luz e olhou para os papéis pousados diante dos joelhos de Andreza. Aquele era o detalhe que mais o incomodava. Os desenhos, as coordenadas, as descrições e a caligrafia... Não havia erro.

—Muito bem. – Morgan pigarreou e aprumou-se onde estava. – Acho que já me disseram o suficiente. Agora podem falar. O que vocês querem saber?

Tanto Andreza quanto Kallahari ergueram bruscamente as cabeças baixas e arregalaram os olhos para o bardo. A bronca tinha sido tão longa e tensa que eles não imaginavam que Morgan ainda fosse responde-los. Os dois pequenos alados se entreolharam e depois voltaram a encarar o velho. Ele suspirou pesadamente e passou a mão pelo rosto.

“Acho que os assustei além da conta...”, pensou, exasperado.

—Vou ter que escolher de novo? – ele perguntou tentando não soar tão agressivo.

Kallahari imediatamente endireitou a coluna e cruzou as pernas. Não queria dar mais motivos para que Morgan ficasse irritado.

—Eu... – ele começou meio atrapalhado. – Eu queria saber se você sabe sobre essas... criaturas.

Ele fez um gesto indicando os pergaminhos e o diário que estavam com Andreza. Ela se empertigou de forma afobada e estendeu os bracinhos para agarrar os papéis, entregando-os imediatamente para Morgan.

O bardo já tinha dado uma boa olhada neles enquanto os dois estavam inconscientes, mas aproveitou para analisá-los de novo. Ao fazer isso, aquele incômodo no fundo de sua mente voltou com força total.

“O que diabos... isso significa?”, era a única pergunta que ressoava em sua mente cansada.

Ele sabia o que eram, sabia muitas histórias sobre aquele povo... Mas não se lembrava de como aprendera sobre eles.

Tentando ignorar suas próprias dúvidas, Morgan baixou o pergaminho com os desenhos que analisava sobre o colo e disse em tom solene:

—Essas criaturas a que você se referiu são chamadas “Abissais”. Os Abissais, ou Nascidos da Maré, são uma espécie humanoide que se desenvolveu no fundo de um oceano longínquo, muito além dos limites das terras de Pan Gu.

Enquanto Morgan falava, arrepios violentos percorriam os braços e a espinha de Kallahari. A ideia de que aquelas criaturas exóticas existiam fazia-o se sentir como se estivesse imerso num sonho. Ele estivera certo o tempo todo. Havia muito mais para explorar mundo afora do que haviam contado.

—São criaturas fascinantes. – continuou o bardo fixando os desenhos. – Por viverem em águas extremamente profundas, seus corpos desenvolveram uma resistência física gigante. A pressão da água forçou-os a se adaptarem e desenvolverem uma força inimaginável, e por isso se tornaram os seres mais poderosos e perigosos do oceano.

—E-e aquele desenho circular? – perguntou Kallahari quase quicando de excitação. – É a cidade deles?

—Sim. – respondeu Morgan. – A capital dos Abissais, a Cidade das Tormentas, é uma cidade submersa que muitos acreditam ter sido construída sobre o casco de uma tartaruga gigante. Assim, ela está em constante movimento dentro do oceano, sendo impossível determinar sua localização exata.

Kallahari voltou seus olhos para os papeis presos entre os dedos do bardo e franziu a testa. Puxa! O mundo era tão grande e diverso... E ia muito além dos Alados e seus domínios. Seria um desperdício ficar o resto da vida enfurnado dentro do palácio servindo aos nobres com seus narizes empinados e asas ridiculamente alvas.

E era por isso que Kallahari sabia exatamente o que iria fazer.

—Eu vou encontra-los. – o garoto sentenciou subitamente elevando a voz.

Morgan arregalou os olhos e piscou para Kallahari.

—O quê?

—Vou encontrar os Abissais. – repetiu o alado. – Estou cansado dessa chatice daqui. Eu não vou ficar servindo nobres arrogantes para sempre como minha mãe. Eu vou entrar no exército e me tornarei um dos melhores arqueiros de que já se teve notícia. E assim que estiver forte, vou ao Porto dos Sonhos pegar um barco e vou explorar o oceano em busca dos Abissais.

Aquela declaração vinda de um garoto de dez anos parecia ridiculamente absurda. Se Morgan reagisse como uma pessoa sensata, teria explodido em gargalhadas e dissuadido o menino daquele sonho maluco. Mas ele não riu. E o mais chocante: ele acreditou nas palavras do menino. Kallahari estava falando sério, ele sabia disso. Se não estivesse, aquelas asas nunca teriam rompido a carne de suas costas tão cedo.

Era por isso que se esperava até os quinze anos para forçar os alados a abrirem suas asas. Todos eram submetidos a um teste que despertaria neles coragem. Quanto mais pura fosse a coragem que brotava no peito de um jovem alado, mais poderosas suas asas despertariam e se desenvolveriam.

E Kallahari tinha coragem. Muita. Tinha ficado óbvio no seu tom de voz e na forma como pulara sem pensar atrás da princesa.

Aquela constatação fez o incômodo na mente de Morgan ganhar novas proporções, e ele percebeu que estava forçando-se a se lembrar de algo... Algo que ele sabia que acontecera há muito tempo.

“Esse garoto...”, ele pensou franzindo a testa.

—Ah é? – ele disse tentando parecer desinteressado. – Bom, se um dia você encontrá-los, me conte mais sobre eles.

Esperando uma reação birrenta do garoto, Morgan se surpreendeu ao sentir suas sobrancelhas se arqueando de espanto diante do sorriso de Kallahari.

—Pode deixar! – ele exclamou alegre.

Morgan estalou a língua e desviou os olhos para a Andreza. A princesa escutava a tudo com atenção, os grandes olhos negros levemente arregalados. O bardo abriu a boca para passar a vez para a princesa, mas a voz de Kallahari cortou-o:

—Ah, só mais uma pergunta. Como o senhor sabe de tudo isso? Digo, sobre os Abissais. – o garoto arqueou as sobrancelhas numa expressão de expectativa. – Você já viu algum?

A pergunta pegou Morgan de guarda baixa. O velho alado fechou a boca, que estivera aberta para chamar Andreza, e lentamente voltou seus olhos para os papeis pousados em seu colo. Pela primeira vez na vida, Morgan responderia àquela pergunta com uma mentira. Muitas histórias ele ouvira de aventureiros, muitos até de outras raças. Mas aquela história... Aquela que contava sobre os Abissais... Ele não se lembrava. Não até colocar as mãos naqueles pergaminhos e naquele diário... O diário escrito com a sua letra.

Respirando fundo, Morgan olhou para o garoto e respondeu com o tom de quem respondera àquela pergunta milhares de vez:

—Ouvi de aventureiros que encontrei quando viajava pelo mundo.

Os olhos de Kallahari brilharam. Céus! Como ele queria partir logo! Queria muito conhecer Pan Gu e todas essas pessoas que viviam metidas em jornadas com destinos incertos.

—Que legal... – o garoto murmurou piscando atônito, como se acabasse de acordar de um sonho particularmente real.

Morgan por fim voltou seus olhos para a Andreza tentando não pensar nas sensações estranhas que as perguntas de Kallahari haviam lhe causado.

—E você, princesa? O que quer saber? – ele perguntou num tom casual.

Andreza se remexeu onde estava novamente e desviou o olhar para o fogo. Ficou alguns segundos em silêncio, o peito infantil subindo e descendo de forma exagerada por causa da respiração acelerada. Inspirando uma última vez, a princesa disse:

—Eu queria saber sobre... A Cidade da Dor Celestial e o Império do Crepúsculo.

Kallahari franziu a testa para Andreza e Morgan arregalou os olhos. Ele tinha ouvido direito?

“Por que uma menina de cinco anos iria querer saber sobre isso?”, ele se perguntou mentalmente, incrédulo.

Andreza esperava a resposta do bardo com o corpo trêmulo. Será que levaria uma outra reprimenda do bardo? Talvez tivesse sido uma péssima ideia perguntar aquilo no final das contas. Todos os adultos a repreenderam severamente quando ela perguntou sobre aquelas histórias. Talvez Morgan não fosse diferente...

Ainda meio atônito pela pergunta da garota, o bardo voltou a se remexer onde estava e pegou a cabaça. Tomou um gole e voltou a olhar atentamente para Andreza.

—Olha... – começou ele num tom sombrio. – Eu não tenho a menor ideia do motivo de você querer saber sobre isso, mas vou te avisar: não é uma boa história de ninar.

Andreza, que estivera o tempo todo encolhida e abraçada às suas pernas, baixou os olhos para seus joelhos e suspirou de leve. Ela estava certa. Por que ela imaginara que seria diferente com Morgan?

O bardo permaneceu em silêncio, observando-a. A garota tinha ido até ali para perguntar aquilo a ele, o que significava que não tinha obtido a resposta de seus tutores, pais ou empregados. E por tudo que Andreza havia feito, ela parecia realmente querer uma resposta para aquela pergunta. Seria injusto não contar, não depois de tudo que ela passara.

Ele tinha plena consciência que seria perigoso contar tudo para a princesa, então ordenou mentalmente os detalhes mais inofensivos das histórias. Quando se deu por satisfeito, voltou os olhos para a fogueira e voltou a suspirar, mergulhando novamente em suas ruminações mentais.

“Céus, o que diabos está acontecendo aqui? Um garoto de dez anos aparece com pergaminhos e um diário escrito com a minha letra e alega querer saber do que se trata. A princesa dos Alados vem procurar pessoalmente um velho bardo para ouvir as duas histórias mais terríveis que já aconteceram nessa terra maldita... e ela só tem cinco anos! Ah... Isso sem contar suas habilidades de magia (que eu duvido que se restrinjam ao Tornado) e o par de asas recém-despertado nas costas do garoto. Quem são esses dois?”

Os olhos de Morgan vagaram para sua direita e repousaram sobre Andreza novamente. Era indescritível a tristeza contida neles, e o coração do bardo novamente tornou a vacilar. Ele não tinha a menor ideia se ia se arrepender disso algum dia, mas a garota tinha lutado para conquistar aquele direito. Pigarreando, Morgan disse:

—Bom, já que vocês se meteram nessa confusão gigantesca só para ouvir algumas histórias de um velho bardo, vou contar a vocês... – ele tornou a olhar para a bola de fogo mágico e assumiu um tom sombrio. – Começando pela cidade criada pelos deuses, ou melhor, a Cidade da Dor Celestial...


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Notas finais do capítulo

E aí meus leitores divooos?? O que estão achando? Estão gostando??
Não me deeeixem curiosa! Deixem eu saber o que vcs estão pensando sobre todas essas tretas aushuahusahh! Opinem, critiquem, comentem!
Ah, e lembrem-se da sessão PAN! Podem me perguntar o que quiserem!
E confiram o tumblr para informações sobre os cenários, as cidades, as raças, etc
http://fanficperfectworld.tumblr.com/
Um beijão para vocês meus divos e até o próximo capítulo!



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