A filha de Gaia escrita por Goth-Lady


Capítulo 40
Seu lugar?


Notas iniciais do capítulo

Queria me desculpar pela longa demora, pois estava enfrentando um grande bloqueio criativo em que não conseguia escrever uma linha sequer para esta fic, em compensação surgiam ideias para novas histórias aos montes. Espero que gostem do capítulo.



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Se alguém dissesse que um dia estaria no Acampamento Meio-Sangue, cercado de pessoas desconhecidas e que podiam matá-lo sem muito esforço, David não acreditaria. A sensação era a mesma de quando chegou ao Acampamento Júpiter. Diferente dos gregos, os romanos tinham que provar que eram fortes e que podiam sobreviver antes de irem ao acampamento, caso contrário seriam devorados por Lupa e seus filhotes. David pensou nisso enquanto encarava as camisetas laranja e roxa jogadas na cadeira.

Ele acordara em um quarto de paredes claras com arcos talhados sobre ela, cortinhas vermelhas majestosamente postas na janela e colunas romanas nos lugares certos. Havia um sofá-cama encostado na janela, uma escrivaninha, uma cadeira e cama de madeira nobre ricamente decorada com colunas e um dossel, além de videiras e uma pequena oliveira que não cresceria mais que o quarto, mas David poderia fazê-la dar frutos.

Na primeira vez que entrou naquele quarto, David jurava que sentiria o cheiro do mediterrâneo se olhasse pela janela. Doce ilusão, se bem que ele não conhecia o Mediterrâneo, então não tinha como saber.

— Ô Roma, vai dormir por mais quanto tempo? – Perguntou Marcos após dar batidas na porta. – A gente só está esperando você.

— Já estou indo.

O romano pôs a camiseta laranja e saiu do quarto, encontrando com o maia e o japonês, que também usava a camiseta laranja.

— Não é que a camiseta laranja ficou melhor em você do que a roxa? – Disse Yamato sorrindo com um toque de malícia, fazendo o rosto de David esquentar.

— Só estou usando porque não quero atrair mais atenção do que andar com vocês. – Retrucou orgulhoso.

— Eu acho difícil. – Disse Marcos. – Não há tantos ruivos no acampamento.

O romano revirou os olhos e seguiu com eles até a sala, onde se encontravam os outros. Como no dia anterior muitos tinham ido com seus pais para as tais reuniões mitológicas, apenas três integrantes ficaram de fato na Embaixada: Marcos, Jasmine e Tyler, sendo este último obrigado a ficar por causa das provas.

— Vocês demoraram. – Reclamou o maori. – Estavam se comendo por acaso?

— Que mau-humor é esse, molusco? – Questionou o maia. – Você não é assim.

— É que eu descobri que a minha primeira prova é daqui a pouco, o que seria amanhã de onde venho!

— Prova de quê?

— Física.

— Eita porra!

— A camiseta laranja ficou melhor em você do que a roxa. – Comentou Mikoto, fazendo o romano corar de novo.

— Com toda a certeza. – Concordou Fang. – Não acha?

— S-Sim. – Jasmine teve que concordar.

— Eu te disse. – Sorriu Yamato.

— C-Calado!

O grupo saiu da Embaixada e se dirigiu ao Pavilhão de Jantar para tomar café da manhã. No caminho, encontraram Will, que estava com Nico. O filho de Apolo aproveitou para perguntar como Jasmine se sentia e se não teve nenhum problema após o uso de magia na luta do dia anterior. O grupo aproveitou para apresentá-los e os japoneses foram para trás dele.

— Niko Niko Nii! – Gritaram em uma pose estranha de wai-fu.

Nico só faltou capotar, Will, Jasmine e David arregalaram os olhos e Tyler e Fang caíram na risada.

— Agora que eles não vão te deixar em paz mesmo. – Comentou Tyler.

— Fala sério. Já não bastava o Angus?

— Niko Niko Nii! – Os japoneses imitavam a personagem.

— Você não era o embaixador de Plutão no Acampamento Júpiter? – Perguntou David. – O único senador que não era nem centurião e nem pretor?

— Era.

— Senador? – Perguntaram Will e Jasmine ao mesmo tempo.

— O Acampamento Júpiter não é como aqui, há várias divisões. Para começar, somos divididos em cinco coortes, sendo que cada uma pode possuir dois líderes, que são chamados de Centuriões. Já os pretores são dois campistas mais qualificados eleitos pelo acampamento para comandarem o acampamento. Já o nosso senado tem dez lugares e é composto por pretores e centuriões, sendo que eles devem ser eleitos.

— Isso é complicado. – Comentou Tyler.

— Se acha isso complicado, espere até estudar o calendário maia. – Brincou Marcos.

— Porra! Não fale essa palavra!

Marcos riu, seguido de Fang e Yamato. Nico se afastou, seguido de Will. O grupo da Embaixada pegou a refeição e se dirigiu à mesa. Tyler mal conseguia comer, ele esfregava as têmporas o tempo todo, como estivesse com dor de cabeça.

— Você está bem? – Perguntou Jasmine ao amigo.

— Só estou estressado, Jazz. Eu nem sei se vou conseguir dormir hoje.

— Por que não?

— São 16 horas de fuso horário.

— Eita porra! – Exclamou Marcos. – Dezesseis horas de fuso horário?! É sério isso?

— O fuso horário daqui para a Nova Zelândia é complicado.

— Nova Zelândia? – Pensou David, alto o suficiente para todos da mesa ouvir.

— Eu sou de lá.

— Você é do Condado? – Perguntou Fang divertida.

— Gondor. Inclusive sou parente do Aragorn.

— Dá para perceber. – Brincou Yamato.

— Falando sério, sou de Tauranga, que fica uma hora de carro para o set do Condado.

— Eu sabia! – Exclamou a chinesa.

— Como vai fazer para dormir? – Perguntou Marcos.

— Eu não sei.

— Eu não consigo imaginar como seria se estivéssemos em seu lugar. – Disse Mikoto.

— Vocês são japoneses mesmo ou só de mitologia? – Perguntou o maia.

— De nacionalidade e de mitologia.

— Eu sou de Kyoto, já a Mikoto é de Osaka. Entendemos bem esse problema com o fuso horário.

— É melhor eu ir. Tenho muita coisa para fazer. – O maori respirou profundamente antes de deixar o prédio às pressas.

— Eu nunca o vi assim. – Disse Jasmine.

— Ele está estressado com essa história de provas. – Esclareceu Mikoto. – Yamato fica do mesmo jeito na época de provas.

— Fora o desespero que bate ao revisar a matéria no dia da prova. – Comentou Marcos. – Quem foi o idiota que inventou a semana de provas?

— Vocês ficam estressadas também? – Tornou a perguntar a filha de Gaia.

— Eu estudo sempre, então fico preparada. – Disse a japonesa. – O sistema educacional japonês é muito rigoroso.

— Meus pais dizem que eu reclamo demais em semana de provas. – Disse Fang. – Também, se o meu pai descobrir que eu pretendo colar, ele me mata.

— Deve ser difícil ser a filha de Guan Yu.

— Difícil? É praticamente impossível! Ele quase teve um troço quando descobriu que eu gostava de jogos de azar.

— Você joga jogos de azar?! – Espantou-se o japonês. – Aromatizante, que coisa feia!

— Não pedi sua opinião, Pikachu.

— O que aconteceu? – Perguntou Marcos.

— Fizemos um acordo. Eu posso jogar contanto que não trapaceie. Ele odeia trapaças. Não me deixa trapacear nem no The Sims! – A mesa riu.

— E você, Jasmine, como é em semana de provas? – Perguntou a filha de Tsukuyomi.

— Eu não gosto muito dela. Toda vez que eu tento estudar, as palavras ficam embaralhadas.

— Não te ensinaram a sua língua mitológica?

— Não antes de vir para cá. Raven começou a me ensinar grego antigo e Seshat concluiu meu ensino. Eu tive que reaprender inglês e agora consigo ler livros inteiros sem que as palavras saltem. – Pausou um pouco. – David, com os romanos é assim?

O ruivo, que até então era ignorado, ficou surpreso ao perguntarem a ele. Tinha prestado toda atenção na conversa e tentado assimilar as informações recebidas, pensando se deveria se pronunciar ou não, não esperava ser incluído de repente.

— Depende. Se depender dos deuses, estamos ferrados, pois eles não nos ensinam. Na verdade, nós temos que nos virar sozinhos, nosso acampamento é bem rígido quanto a isso. A minha sorte foi que meu pai me obrigou a frequentar as aulas de latim da minha antiga escola. Graças a isso, eu acabei tendo mais facilidade em ler.

— Raven me disse que teve que aprender hieróglifos antes de aprender inglês. E Diana e Helena tiveram que aprender runas.

— É sério?

— Somos estrangeiros. – Comentou Fang. – Aprendemos nossas línguas mitológicas antes de qualquer outra, caso contrário, não conseguimos ler nem quadrinhos de jornal.

— Já que as mitologias de vocês são quase a mesma coisa, vocês podem ler a língua mitológica um do outro? – Perguntou Marcos.

— Eu nunca experimentei ler grego antigo.

— Seshat me deu um texto em latim uma vez. Eu não entendi muita coisa, mas... Bem, antes que ela pudesse me ensinar latim, nós tivemos que ir à aula do Sobek.

— Os deuses egípcios te deram aulas? – O japonês estava surpreso, como todos ali.

— Eu estive em Asgard durante três dias. Os deuses nórdicos e os egípcios acharam melhor que eu seguisse as rotinas da Diana, da Raven e da Helena.

— E Nicolas, Eliot e Angus? – Tornou a perguntar o filho de Chaac.

— Eles não puderam ir à essa reunião. Na verdade, eu nem os conhecia na época, éramos apenas eu, Diana, Raven e Helena. Eles chegaram ao acampamento alguns dias depois com o Frísio.

— Conheciam o Fríso nessa época?

— Não, eles se encontraram por acaso. Frísio foi o primeiro a chegar após ouvir rumores que a Embaixada foi erguida. Estranho como parece que foi há tanto tempo.

— Quem veio depois?

— Tyler e Sienna. Eles chegaram juntos, mas não se conheciam. Depois veio a Parvati e depois você.

— E agora nós. – Sorriu o japonês.

— E ainda vai vir o Kuzco.

— Kuzco?

— Um amigo meu. Ele está na mesma situação que o Tyler, por isso não veio comigo.

— Ontem disseram que você tinha dupla nacionalidade mitológica, não? – Indagou o romano à grega. – O que é isso?

— É quando um deus adota um semideus de outra mitologia como protegido, aprendiz ou até mesmo como filho. Mestre Njord me adotou como filha, mas antes disso, ele já tinha me dado meu próprio Godcel e minha Godkey.

— God o que?

Couberam aos outros explicarem ao romano o que era aquilo, além de explicarem sobre a Chain. Jasmine ainda teve que explicar que a Godkey dela a levava para Asgard e não para onde Gaia se encontrava. Se os romanos achavam o Acampamento Meio-Sangue simples demais, deveria ser antes, pois agora, tinham que lidar com semideuses não tão simples assim.

— E o seu pai concorda com isso? Digo, com essa adoção?

— Eu não tenho pai, David. Eu não sabia sequer que tinha uma mãe. – Suspirou tristemente. – Cresci em um orfanato. Nunca conheci meus pais biológicos e também não fui adotada até pisar em Asgard.

Jasmine não se sentia confortável ao se lembrar de seu passado. Parecia que fora há muito tempo, mas era tão recente. Pensou na reunião em que os nódicos teriam e que não estaria presente. Nicolas e Diana disseram que ela não precisava ir, mas se ela também era nórdica por conta da adoção, porque deveria ficar? Marcos saiu de seu lugar, se sentou ao lado dela e a abraçou. Foi inesperado, mas ela o correspondeu mesmo assim.

— Eu também sei o que é crescer sem conhecer um dos pais. Eu fui separado da minha mãe, Jazz, e criado por uma amiga do meu pai. Essa confusão toda em que estive envolvido nos últimos dias... Acabei abrindo muitas feridas. Nós perdemos a nossa mãe. Meu irmão não tinha ninguém, já eu...

— Você só estava querendo achar o seu irmão. – Disse com doçura. – Ele precisa de você. Você tem alguém, ao contrário de mim.

— Não diga isso, Jazz. Você agora tem a nós, a Njord e a Nicolas também. O motivo de pedirem para você ficar é que só estamos eu, você e Tyler aqui. Os outros contam conosco para cuidar de tudo enquanto estão fora. Você é importante, precisam de nós aqui, já que Tyler está enrolado.

— Obrigada.

Ela o abraçou mais forte. Ficaram assim por algum tempo até se separarem. Marcos sorriu para a garota. Muita coisa tinha acontecido em tão pouco tempo que mal dava para respirar. Pensando bem, Jasmine viu que não estava sozinha. Tyler e Marcos estavam lá e eles precisavam gerenciar a Embaixada, ainda mais com novos membros.

— Vamos mostrar o acampamento para os novatos? – Perguntou o maia.

— Assim que terminarmos de comer.

Ao saírem do Pavilhão de Jantar, Marcos e Jasmine começaram a mostrar o acampamento aos quatro novatos. Eles também explicavam como funcionava cada parte do local, do jeito deles.

— Ali é o muro de escaladas. – Indicou marcos. – Eliot e Tyler vivem competindo para ver quem sobe a parede de lava mais rápido, mas o molusco sempre vence. A arena vocês conhecem. Diana não sai dela. Tem um rio que serve para jogarmos o capture a bandeira, mas nunca jogamos, já que os outros vivem passando raiva. O que podemos fazer se somos melhores juntos?

— E fazer sempre as mesmas coisas não os deixa entediados? – Perguntou Fang.

— Nós sempre damos um jeito.

— Eu não estou certa quanto a esse jeito. – Comentou Jasmine.

— Mas é divertido. Vocês vão ficar bem a partir daqui? Eu tenho algumas coisas para resolver.

— Sem problemas. – Garantiram.

Marcos se afastou do grupo para procurar Leo. Eles tinham muita coisa para resolver e falar. Jasmine se viu sozinha com os novatos. Era estranho pensar que ela era a responsável por integrá-los ao acampamento.

— Há alguma coisa específica que queiram fazer?

— Eu vou para o meu quarto. – Anunciou o romano.

— Mas já?! – Surpreendeu-se o japonês.

— Eu só quero ter um pouco de sossego.

— Tudo bem. – Garantiu a grega. – Helena e Sienna passam a maior parte do empo em seus quartos. Nos reunimos para comer ou quando estamos na Embaixada.

— Eu vou procurar alguma atividade que sirva de treino. – Disse Fang animada.

— Acho que vou dar uma volta por aí. – Disse Yamato.

Os três se distanciaram e tomaram rumos diferentes, deixando Jasmine sozinha com Mikoto.

— Onde fica esse riacho que falaram?

— Na floresta. Eu vou para lá sempre que vou meditar.

— Não sabia que meditava. Pode me mostrar onde é?

— Claro.

As duas andaram té a floresta. Nunca estavam em silêncio, conversavam o tempo todo. Já perto do riacho, Jasmine se sentou para meditar e Mikoto começou a fazer uma série de movimentos fluidos. Pareciam movimentos de luta, mas feitos com uma leveza impressionante.

— O que está fazendo?

— Tai Chi Chuan. Apesar de ter se originado na China, se tornou popular no mundo inteiro. Pense como uma meditação em movimento.

— Você pode me ensinar?

— Claro, mas vai ter que se dedicar muito.

Ao contrário do que parecia, tai chi chuan era mais difícil sendo executado do que visto. Mikoto fazia os movimentos parecerem tão fáceis. A japonesa explicava todos os conceitos e o que deveria fazer.

— Isso é difícil.

— No começo. Com prática, é possível aperfeiçoar a técnica. Se importa em continuarmos amanhã? Tenho que fazer uma coisa.

— Sem problemas.

As duas retornaram ao prédio da Embaixada. Mal entraram e ouviram palavrões oriundos da biblioteca. Correram para lá e encontraram Tyler debruçado em alguns livros como se fosse jogá-los do outro lado do cômodo.

— Tyler, você está bem? – Perguntou Jasmine.

— Longe de bem! Eu tenho que terminar de estudar esse troço!

— Precisa de ajuda?

— Preciso de um milagre! Se eu encontrar o cara que inventou a física, vou matá-lo. Se já estiver morto, peço para Angus ressuscitá-lo para matá-lo de novo e ainda mijo no túmulo dele.

— Isso que é alguém revoltado com a matéria. – Comentou Mikoto.

— Eu vou reprovar em física! – Parecia mais um lamento do que uma afirmação.

— Não diga isso, sei que vai conseguir. – Jasmine tentou animá-lo.

— E eu posso te ajudar com a matéria. Sou boa em física.

— Obrigado.

Mikoto ficou para ajudá-lo, antes que o maori entrasse em desespero, explodisse ou se recolhesse em posição fetal. Jasmine ficou sozinha. Era estranho pensar o quanto tinha se afeiçoado a seus amigos e depois ter acabado sozinha, como sempre estive em sua vida toda. Não ia pensar nisso, os outros iriam voltar, não iriam? Em um impulso, ela pegou seu Godcel e o observou. Pensou em ligar para Diana, Raven e até mesmo Helena, pensou em Frísio, mas ligou para Nicolas, seu irmão adotivo.

— Alô, Jasmine?

— Nicolas! É tão bom ouvir a sua voz.

— Está tudo bem? Está com algum problema?

— Não, eu só liguei para saber como você está.

— Estou bem, obrigado por perguntar. E você?

— Bem também. E a reunião?

— Ainda não começou, mas Asgard está parecendo um formigueiro. Parece que é muito sério.

— O quão sério?

— Eu não sei, não vejo Diana desde ontem, então não pude perguntar. Mas ouvi os gêmeos conversando, parece que Odin convocou os aliados.

— Os aliados?

— Sim, eu falo sobre isso quando tiver tempo, é uma longa história. Como estão as coisas aí no acampamento? Estão conseguindo passar as instruções e receber bem os novatos?

— Estão boas. Nós mostramos o acampamento a eles.

— E Marcos e Tyler? Esses dois estão te perturbando?

— Não. Tyler está estudando e Marcos têm algumas coisas para resolver.

— Imagino, ele não para quieto desde que fez aquele maldito teste de DNA. Desculpe tê-la deixado sozinha com esses dois, mas precisam de mim aqui e precisamos de alguém que ajude os novatos a se habituar, além de impedir que Marcos e Tyler inundem o acampamento.

— Não tem problema. Quando vocês voltam?

— Eu não faço ideia, mas espero que seja o mais breve possível.

— Alguma notícia dos outros?

— Eu não tive tempo para isso, Jazz. Prometo que voltarei o mais rápido possível. Só preciso ter certeza de que Diana e Helena estarão bem.

— E Mestre Njord?

— Não parou de comentar que era para você ter vindo também. Foi difícil enfiar na cabeça dele que não podíamos deixar os novatos sozinhos em seu primeiro dia no acampamento, ainda mais com Tyler e Marcos ocupados. Precisei da ajuda de Freya.

— Mande um beijo para ele.

— Pode deixar. E você, o que anda fazendo?

— Nada. Eu não tenho nada para fazer.

— Já fez o check up com o Will?

— Não acho que seja necessário.

— Mesmo assim, acho melhor você fazer. Só para ter certeza.

— Eu irei, então.

— Vou precisar desligar, precisam de mim agora. Te ligo quando puder. Se cuida.

— Você também.

Jasmine desligou o Godcel e o guardou na Chain. A corrente lhe fora dada por Raven logo depois da construção da Embaixada, quando ela mal conhecia suas mitologias. Parecia que tinha sido há tanto tempo. Novas mitologias foram surgindo e ela se perguntava se mais mitologias iriam aparecer.

— Com quem estava falando?

— David, eu não sabia que estava aí.

— Vim pegar um pouco de água. Tinha alguém aqui?

— Não, eu liguei para o Nicolas. Para saber como estão as coisas.

— E como estão?

— Eu não sei direito, mas ele vai me ligar quando puder.

— O que vocês usam para se comunicar?

— Godcel. – Ela pegou o objeto e mostrou a ele. – Thoth inventou e todos os estrangeiros usam. E não atrai monstros.

— Bom saber.

— Os romanos se comunicam por mensagens de Iris também?

— O que? Não. Usamos águias gigantes, mas desse jeito é melhor.

— Acho que sim.

O romano rumou para a cozinha e Jasmine saiu a Embaixada em direção à enfermaria. Era visível que David precisava de tempo para se acostumar com a Embaixada ao mesmo tempo em que a grega não sabia o que fazer quando estava sozinha e responsável pelo prédio.

Marcos procurava Leo pelo acampamento. Muitas coisas aconteceram entre os dois nos últimos três dias. Tinha sido tudo tão rápido que mal puderam conversar direito. Procurou pelo acampamento inteiro e não o encontrou. Soube por meio de Calypso e alguns filhos de Hefesto que seu irmão tinha se trancado na oficina na noite passada e que os amigos dele estavam preocupados. É claro que soou como se o estivessem repreendendo e a ex-ninfa acrescentou que era por culpa dele.

O maia teve alguma dificuldade para encontrar a oficina, mas assim que encontrou, esgueirou-se até um arbusto quando viu alguns dos amigos de Leo batendo à porta. Esperou até irem embora para se aproximar. As portas do bunker só poderiam ser abertas por filhos de Hefesto que podiam manipular o fogo, pelo menos, era o que diziam. Marcos só precisou de seu isqueiro e uma lata de aerossol para abri-las.

O lugar estava cheio de peças, projetos e invenções abandonadas. Algumas datavam de décadas atrás. O ambiente se encontrava iluminado, o que poupou ao maia o trabalho de improvisar uma tocha. Ele avançou pelo lugar. Não demorou a encontrar Leo. O grego estava debruçado sobre a mesa com as mãos na cabeça prestes a arrancar os cabelos. A cabeça do dragão se encontrava ao lado dele, esfregando o focinho metálico em seu braço. A criatura ergueu a cabeça ao perceber a presença do maia, fazendo uma espécie de som que lembravam engrenagens no processo. Leo também tinha notado, mas parecia perplexo.

— M-Marcos?! Como entrou aqui?!

— Com um isqueiro e um desodorante. Precisamos conversar.

— Eu sei.

O silêncio se instalou rapidamente entre eles. Marcos olhou em volta se perguntando como alguém conseguia ficar tanto tempo ali dentro, já Leo não conseguia se concentrar no que quer que fosse.

— Acho melhor irmos tomar um ar. – Sugeriu o maia.

— Não, obrigado. Eu prefiro ficar por aqui.

— Está falando sério?! Aqui é sufocante. Como consegue passar a noite aqui dentro?

— Passando, ué. – Deu de ombros.

— É melhor irmos lá para fora, arejar a cabeça.

— É melhor não.

Foi então que ele entendeu. Se saíssem e alguém os visse, encheriam Leo de perguntas e ele não queria falar com ninguém, pelo menos não agora.

— Olha, não precisa ser lá fora perto do acampamento, podemos ir para outro lugar.

— Tipo qual?

— Tenho um em mente. – Balançou a GodKey na frente do irmão. – Não é o panteão maia se quer saber, é só um atalho.

Leo deu um fraco sorriso. Os dois subiram em Festus e Marcos usou a GodKey. No instante seguinte, eles se encontravam perto das ruínas de uma pirâmide maia. Podiam sentir o cheiro de maresia ao longe. A brisa do oceano soprou em seus rostos.

— Seus tios destruíram a casa?!

— Por incrível que pareça, não. É que diferente das outras GodKeys, a minha pode me levar a qualquer pirâmide maia e de lá, eu consigo acessar a morada dos deuses. Estamos em uma zona arqueológica, então, cuidado.

— Onde estamos afinal?

— Cancún.

— Não brinca!

Cancún era um dos maiores destinos turísticos no México por conta da história e das belas praias banhadas pelo mar do Caribe. Leo estava em um dos maiores paraísos da Terra, no entanto o único som que conseguia produzir era o ronco do próprio estômago.

— O que acha de deixarmos Festus aqui e comermos algo? Há bons restaurantes ao sul. Algo me diz que você precisa. – Sorriu divertido.

— Eu posso pedir para que vire uma mala e levá-lo conosco.

— E não vai parecer nada suspeito dois adolescentes com uma mala.

Oito minutos de caminhada ao sul foi o trajeto que fizeram da zona arqueológica até o restaurante, que mais era um quiosque à beira mar com um píer e barcos por perto. Dava para ir até a água dar um mergulho, mas Leo não o fez, ao contrário de Marcos que tirou a camisa e o tênis e se jogou no mar. Ele só voltou quando a refeição de Leo chegou.

— Precisava mesmo ter corrido feito um louco para o mar?

— Precisava. É complicado ir à praia em Chicago. Tem que esperar até o verão, é muita gente para pouca praia e fica sempre cheio. Quando eu venho ver meu pai, nós sempre vamos a uma cidade que tenha praia, seja Cancún ou uma das ilhas no Golfo do México.

— Não temos algo parecido em Houston, mas nunca me importei. Não tem muito a ver comigo.

— Posso imaginar.

— Marcos, eu...

— Teremos tempo para falar sobre isso, em Chihuahua.

— Não me diga que vai me levar a um pet shop para ver esse tipo de cachorro.

— Prometo que não será um cachorro.

O resto da refeição de Leo transcorreu tranquilamente com diálogos leves e algumas provocações. Quando ele terminou e pagaram a conta, os dois retornaram para onde Festus estava. Segundo Marcos, Cancún não era o destino deles, por isso Leo se deixou levar pelas palavras do irmão e pela orientação.

Festus era rápido e com Leo de piloto e Marcos de navegador, não ademorou para eles alcançarem seu destino. Chiuhuahua é um estado do México que possui fronteira com os Estados Unidos, mais precisamente com o estado do Texas e o do Novo México. Festus sobrevoou um estreito vale onde um rio corria rodeado por precipícios em suas duas margens.

— Cañon del Penguis. – Anunciou Marcos. – Lá embaixo praticam canoagem e essas coisas. Podemos ficar aqui em cima mesmo, mas não muito em cima, algumas pessoas vêm fazer trilha e ver a vista.

Festus pousou em um dos desfiladeiros do meio, tomando o cuidado de ficar longe das vistas de qualquer ser humano. Leo e Marcos se sentaram no solo coberto pelo mato, o Rio Conchos corria abaixo deles.

— Impressonante, não acha?

— Se você dissesse que iríamos acabar em um desfiladeiro no meio do deserto, eu teria te mandado dar banho em macaco.

— Iria ser difícil, pois não temos um deus macaco.

— O Perigo te arruma um.

— Disso eu não duvido. – Uma longa pausa se sucedeu. – Então, como você está?

— Eu não sei, está tudo tão confuso. Eu não tenho certeza de mais nada.

— Eu compreendo.

— Marcos, você pode deixar de ser compreensivo por um momento?! Droga! Como é que você consegue ficar tão calmo com tudo isso?! Você é tão... Tão...!

— Você acha que eu também não fiquei confuso?! Que eu também não senti o mundo desabar sobre minha cabeça?! Acha que eu também não fiquei furioso?! Que eu não quis te procurar quando me contaram sobre você?! Que eu não tentei?!

Os olhos de Leo se arregalaram e as sobrancelhas se arquearam. Pela primeira vez, via Marcos sobressaltado daquela forma, se fosse filho de Hefesto, com certeza estaria pegando fogo, mas como era filho de Chaac, nuvens negras começaram a se formar no horizonte. Marcos respirou fundo e tentou se acalmar, não podia perder o controle, ainda mais sendo de uma mitologia voltada para o sangue e a guerra.

— Eu também fiquei irritado, eu odiei saber que a minha mãe não era a minha mãe de verdade, amaldiçoei os deuses, até com meu pai eu briguei! Eu tentei te encontrar, Leo, mas os deuses maias me impediram pensando que eu faria uma grande besteira. – A respiração estava descompassada, ele visivelmente se esforçava para não ceder à raiva. – Eu era impulsivo como você e o que eu ganhei com isso?! Um tabefe do Tohil que me mandou para o outro lado da sala, uma bela bronca do Huracán, que por pouco ele não quebrou o meu pescoço, uma bronca lendária da Ixchel, mas o pior foi que eu não percebi que estava machucando as pessoas ao meu redor.

O céu estava escuro, grossas gotas de chuva começaram a cair de forma escassa. Algumas lágrimas brotaram nos olhos de Marcos, mas ele se mantinha firme. Leo era um espectador atônito, sem saber o que pensar e muito menos o que fazer.

— Quando eu sinto raiva, Leo, eu sou capaz de criar um desastre. Se não fosse por meu pai, Chicago teria tido a pior tempestade da história, mas eu fiz muito pior. Ixtab se matou por minha causa, ainda me lembro de seu choro antes da morte e a minha mãe... Minha mãe...

Leo se obrigou a agir. Ignorou as poucas, mas grossas, gotas de chuva que caíam e se aproximou de seu irmão mais novo, que fitava o chão. Esfregou sua mão no braço dele como se quisesse dizer que estava tudo bem, mesmo não estando.

— Eu fiz minha mãe adotiva chorar! Depois de tudo que ela fez por mim, eu a fiz chorar! Ela sabia que um dia eu iria descobrir, mas me amou mesmo assim. Até meu pai ficou arrasado!

— Marcos... – Ouviu-se um trovão ao longe, a chuva tinha se intensificado um pouco, mas não a ponto de se tornar uma tempestade. – Se acalme, não foi sua culpa! – Foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça. – Você não sabia, não tinha como saber! Eu...

A raiva tinha dado lugar à surpresa e ao medo. Leo não sabia o que fazer, nunca tinha se apegado a alguém de carne e osso, nem mesmo à sua namorada. As pessoas o abandonavam antes de entrar no Acampamento e mesmo nele, ele era visto de forma diferente, pois era o primeiro filho de Hefesto em tempos a controlar o fogo, algo considerado maldito entre seus irmãos. Nunca tivera alguém que precisasse de fato dele como agora. Ele não sabia como lidar com aquela situação. Marcos, por outro lado, nunca estivera só, tinha um pai e uma mãe adotiva que o amavam, as pessoas não tinham medo dele, tinha vários deuses que cuidavam dele, mesmo que lhe tivessem dado traumas, e ele não teve a infelicidade de conhecer tia Rosa. Eles eram muito diferentes, como o fogo e a chuva.

— Giovana não merecia isso. Você não tem ideia do quanto eu me odeio por isso.

— Tenho certeza que não merecia, mas se culpar não vai adiantar. Eu adoraria te dizer que vai ficar tudo bem, mas...

O maia abraçou o grego, deixando que o resto das lágrimas escorresse. Leo retribuiu o abraço e teve uma repentina vontade de chorar. Assim o fez, não sabia o que sentia, era uma mistura de emoções que nunca experimentara antes, a única coisa que sabia era que ambos estavam ligados por um elo de sangue.

A chuva diminuía conforme Marcos se acalmava. Quando ele recuperou o controle, a chuva parou e as nuvens se dispersaram. O maia rompeu o abraço e enxugou as próprias lágrimas.

— Desculpe, eu não sei o que deu em mim.

— Tudo bem. Eu também não sei o que deu em mim.

Marcos se sentou no chão contemplando o horizonte. Leo fez o mesmo após enxugar as próprias lágrimas.

— Você ainda sente raiva do seu pai? – Perguntou o mais velho.

— Não, eu sei que ele só estava tentando me proteger. Quando ele me deixou com a Giovana, ela tinha perdido o filho dela quando ele ainda era um bebê, e ela estava se recuperando do trauma. Ela não pode mais ter filhos Leo, e achava que nunca seria mãe. Quando meu pai contou sobre mim, ela prontamente me quis e me criou. Meu pai me contou que dei sentido a uma vida que não tinha mais sentido e que poderia se render à Ixtab, caso elas se encontrassem algum dia.

— O seu pai, deu você, o seu próprio filho...?! – Leo estava incrédulo, mas não zangado, não depois do que tinha ouvido. – Eu não consigo acreditar nisso.

— O meu pai é um cara legal, ele não deixou faltar nada nem para mim e nem para a minha mãe adotiva, me aconselhou sempre que precisei e nunca me deixou nos momentos difíceis. Leo, se não fosse por meu pai e por Itzamna, eu não sei o que teria acontecido. Ficar com raiva dos deuses só me fez machucar aqueles que se importavam comigo, fora que eu quase castiguei uma cidade inteira com um temporal.

— Vamos parar de falar disso, por favor.

— Certo... Sobre o que quer falar?

Leo não sabia o que dizer ou por onde começar. Talvez por sua vida? Contou sobre tia Callida, tia Rosa, a morte da mãe, os diversos lares adotivos pelos quais passara, a sensação de sempre estar sozinho, mesmo que estivesse rodeado de amigos, e do choque que tivera quando Marcos lançou a bomba. Marcos o ouvia perplexo e com uma pontada de tristeza. Se eles tivessem se encontrado antes, as coisas poderiam ter sido muito diferentes.

— Eu sempre acreditei ser filho único, que o mundo me odiasse depois que aconteceu, nem meus irmãos do chalé conseguiram despertar alguma simpatia em mim, eles acham que controlar o fogo é uma maldição catastrófica.

— Se Tohil ouvisse isso, te garanto que ele iria distribuir tapas em todo mundo. Isso se não incendiasse o acampamento inteiro.

— Posso imaginar. – Riu.

— Tohil sempre me ensinou que o fogo é um elemento vivo, ele nos fornece calor e as cinzas também podem ser benéficas.

— Isso é verdade. Aprendi há muito tempo que o fogo é uma ferramenta e não uma maldição.

O silêncio mais uma vez reinou sobre eles, mas não era desconfortável como das outras vezes.

— É estranho. – Disse Leo.

— O que?

— Por mais que eu goste dos meus amigos e seja leal a eles, você é a primeira pessoa com quem me sinto à vontade para realmente falar sobre isso.

— Não me diga que está apaixonado por mim? – Brincou.

— Oh, apaixonadíssimo, não vivo sem você, minha querida Julieta.

— Por que eu sou a Julieta?!

— Porque eu sou mais velho e digo que sim.

— Vai se catar!

Os dois riram. A amistosidade entre eles voltara. Eles se sentiam mais leves, apesar de algo ainda os incomodar.

— Vamos continuar sendo amigos? – Perguntou Marcos.

— Só pode estar brincando! Somos irmãos, cara. Que pergunta idiota.

— Tem razão, foi idiota mesmo.

— Estamos juntos de novo, como os maias queriam. – Leo passou o braço pelos ombros de Marcos.

— Tem razão. Estamos juntos e isso que importa.

— Nada vai nos separar agora.

De volta ao acampamento, Jasmine tinha ido fazer os exames de rotina com Will. Os exames não demoraram tanto quanto esperava.

— Está tudo certo, posso até te liberar.

— Verdade?

— Você se recuperou mais rápido que os outros campistas, o que foi uma surpresa devido as suas condições.

— Obrigada. – Sorriu sinceramente. – Ah, Will, você está precisando de ajuda na enfermaria ou algo assim?

— No momento não, mas obrigado pela preocupação. E os outros, quando voltam?

— Eu não sei dizer.

Uma movimentação anormal tomou conta da enfermaria. Alguns campistas foram postos em macas e a correria começou. Pelo que puderam constatar, eram os feridos do treinamento.

— Diana voltou e não me avisaram? – Perguntou Will atônito.

— Acho que não. Nicolas disse que eles vão demorar. – Foi então que ela se lembrou. – Fang disse que iria treinar.

— Fang é a...?

— A de cabelo curto.

— Japonesa?

— Chinesa.

— Acho que nunca vou me acostumar com isso. – Deu um sorriso sem graça. – Ainda quer me ajudar?

Jasmine assentiu. O trabalho na enfermaria a manteria ocupada pelo resto do dia ou até que Nicolas ligasse, o que viesse primeiro.

Os deuses ainda tinham que resolver o problema do inverno eterno na ilha das amazonas, mas nenhum deles tinha como fazer isso. Eles não queriam admitir, mas precisavam de ajuda, de um dragão de preferência. Hermes foi escolhido por unanimidade e teve que viajar até o Oriente.

Long Mu morava em uma modesta casa próxima ao Rio Xi-Jiang. Seria fácil encontrá-la, se o dito rio não fosse o maior do sul da China! O tal rio vinha da junção de outros dois rios, recebia alguns afluentes e na saída de Foshan, antes de Jiangmen, ele se dividia em vários afluentes antes de seguir viagem até o mar, sendo que ele ainda tinha um canal que desaguava em Macau.

Hermes iria fazer o óbvio e descartar as cidades ao redor do rio, mas as cidades na China eram enormes, principalmente perto do mar, fora os imensos campos de arroz ao lado do rio. Hermes teve que adentrar mais no interior do país para obter o resultado esperado. O deus quase xingou em voz alta quando soube que havia estradas nas duas margens do rio.

Deuses gostavam de privacidade, mesmo nos centros urbanos, mas Long Mu precisava ficar isolada por conta dos dragões. Pelo menos, ele não teria que rodar por Shangai ou Pequim que nem um peru. Por outro lado, a aventura valeria à pena. Fazia tempo que não viajava para lugares distantes e exóticos onde o correio não existia, o que não era o caso das cidades chinesas às margens daquele rio, mas sim da casa da deusa.

Depois de muito procurar, o que seriam dias para os mortais, ele encontrou a bendita casa. Era simples, de arquitetura antiga, uma casa de camponesa. Não esperou ser convidado para adentrar e avistá-la, mas logo os problemas surgiram. O dragão azul o pegou pela roupa e o ergueu, chamando os outros. Logo, todos o encaravam.

— Por que eu não me surpreendo?

— Olá Khaleesi, não estou aqui para roubar seus dragões, se é o que pensa.

Long Mu arqueou uma sobrancelha em descrença. De Hermes poderia esperar tudo. Até o que ele dizia que não iria fazer.

— Tem como provar o que diz?

— Não. – Sorriu amarelo. – Mas tenho um pedido para te fazer.

— Quer que eu os empreste para alguma coisa.

— Daria uma boa vidente.

A cara da chinesa se encontrava azeda, como se nada daquilo fosse novidade. Ainda exigia explicações, embora soubesse quais seriam. O grego percebeu que dessa vez não iria conquistá-la pelo humor, como tinha sido na reunião de pais.

— Eu não sou o primeiro a te pedir isso, não é?

— Não.

— Mas eu preciso do azul. – Achou melhor dizer de uma vez, já que o vermelho tinha aberto a boca para lhe lançar um raio. – A ilha das amazonas enfrenta um inverno eterno. Não só isso, todas que entram na ilha contraem alguma doença por conta desse inverno.

— Isso não é problema nosso.

— Mas...

— Eu já sei o que aconteceu por lá. Não fomos nós e a competência e responsabilidade são de vocês, não nossa.

— Veja bem, já que seremos aliados, talvez possa nos ajudar com isso e pedir algo em troca.

— O Conselho Oriental começará em instantes. Pode levar sua questão para que decidam.

— Isso não cabe ao conselho decidir.

— O conselho decidiu buscar aliança provisória com vocês, não eu. Guarde o que tem a dizer para o conselho, pois a mim não irá convencer.

— Vamos ao conselho, então.

De volta ao acampamento, Jasmine e Will tinham concluído o trabalho na enfermaria. Diferente do que os outros semideuses achavam, o trabalho na enfermaria era exaustivo e corrido. Ninguém parava naquele lugar. Alguns filhos de Apolo estranharam a presença da filha de Gaia, mas não reclamaram da ajuda extra.

— Obrigado pela ajuda.

— Disponha. A enfermaria é sempre assim?

— Piora quando Diana resolve lutar. – Will sorriu sincero. – Pelo visto ela deixou uma substituta.

— Fang é mesmo forte.

Will olhou para o relógio, estava quase na hora do almoço.

— Caramba! O Nico vai me matar!

— Por que ele faria isso?

— É que... – Não sabia se podia contar, mas talvez devesse arriscar. Jasmine nunca se mostrou como as outras. – Nós combinamos de sair. – Coçou a nuca.

— Entendi. É bom saber que vai sair com o seu amigo.

Will teve uma súbita vontade de rir, mas não o fez, estava sem graça.

— Eu disse alguma coisa errada?

— Não, é só que... Se eu te contar uma coisa, você promete guardar segredo?

— Claro.

— O Nico e eu, nós temos um caso.

— Como aqueles da polícia?

— Não er... Poderia não dizer isso para ninguém?

— Claro.

— Obrigado, é melhor eu ir ou vou me atrasar.

Após sair da enfermaria, Jasmine iria tomar o rumo do pavilhão quando encontrou Lou Ellen no caminho.

— Jasmine, e então, já recebeu alguma notícia do Nicolas?

— Só hoje de manhã. Ele disse que os nórdicos poderiam convocar os aliados.

— Que aliados?

— Eu não sei. Ele não chegou a me dizer, disse que ligaria mais tarde. Será que Quíron sabe?

— Não custa tentar.

Jasmine se despediu de Lou Ellen e foi procurar Quíron. O centauro se encontrava conversando com Dionísio, que estava uma pilha de nervos.

— Basta a nórdica sair para vir outra no lugar! Eu estou dizendo, Quíron, eu ainda vou ter um infarto.

— Com licença?

— Falando em um dos diabos.

— Precisa de algo, Jasmine? – Quíron decidiu ignorar o Senhor D.

— Eu só queria saber se o senhor sabe quem são os aliados dos nórdicos.

— Aliados dos nórdicos?! – Exclamou o deus.

— Não seriam os egípcios?

— Não exatamente.

Jasmine explicou a eles a conversa que teve com Nicolas. O Senhor D explodiu em palavrões e exclamações, nada com o que não estivessem acostumados. Quíron decidiu novamente ignorá-lo.

— Me desculpe, mas eu sinceramente não faço ideia de quem sejam os aliados dos nórdicos.

— Tudo bem. Eu posso esperar a reunião acabar para perguntar.

— Agora eu é que fiquei preocupado com isso. – Disse o Senhor D. – Na guerra que antecedeu o maldito pacto, os nórdicos apareceram com os celtas.

— Obrigada mesmo assim.

Jasmine se dirigiu para o Pavilhão de Jantar. Na porta do pavilhão, encontrou com David, que parecia incerto em entrar. Ela puxou assunto com ele e os dois adentraram no recinto. Algum tempo depois, estavam na mesa com Yamato, Mikoto e Fang.

— Tyler não veio?

— Ele foi embora. Disse que iria comer por lá e que deveria se preparar. – Respondeu Mikoto.

— E Marcos? Ele não é de se atrasar para comer.

— Eu não o vi desde manhã.

— Nem eu. – Disse Fang. – Estava lutando.

— Eu também não o vi. – Disse Yamato.

— E eu estava no meu quarto. – Falou David.

— Por que não liga para ele?

— É uma boa ideia, mas não sei se vou incomodá-lo, pareceu que ele iria fazer algo importante. Acho que vou enviar uma mensagem mesmo.

E foi o que fez. Demorou pelo menos uns 10 minutos para receber a resposta. A mensagem dizia que ele não iria, tinha algo importante para resolver.

Assim que Hermes entrou no prédio de reuniões, logo ele percebeu que o Conselho Oriental era um grande erro. Nunca em sua vida vira tantos inimigos amargurados em uma única sala. Os japoneses e chineses ocupavam a maior parte das cadeiras, embora estivessem em lugares opostos da sala, mas não eram os únicos. Long Mu tratou de indicar-lhe os coreanos e os mongóis.

Além dos coreanos e dos mongóis, a chinesa mostrou a ele o que sobrara do panteão tailandês, os sobreviventes do panteão tibetano, o panteão vietnamita, o indonésio e o filipino. Todos naquela sala pertenciam a nações com grandes divergências em seu histórico e que se odiavam. Os asiáticos não esqueceram as atrocidades do passado e os panteões pareciam lembrá-las em todas as discussões. Se os Três Grandes de cada panteão não mantivessem as rédeas curtas, todos estariam avançando nos pescoços uns dos outros.

Hermes não tinha dúvidas que a menor fagulha causaria uma guerra gigantesca que nem os hindus conseguiriam tomar as rédeas, e se essa guerra refletisse neles, estariam condenados. O humor de Long Mu também não parecia mudar.

— Melhor que isso, só o congresso brasileiro.

— Um lugar desses deve ser seu parque de diversões.

— E é, Khaleesi. Como vocês conseguem chegar a um acordo?

— Às vezes não chegamos. São séculos de divergências. Tomo o exemplo de nós chineses, odiamos os mongóis e não negociamos facilmente com eles. Os vietnamitas e os tibetanos nos odeiam. Até com os japoneses é difícil negociar. Por sorte decidimos deixar nossas diferenças de lado, pelo menos por enquanto.

— Quero ver quanto tempo vai durar esse “por enquanto”.

— Eu também.

— Teria sido mais fácil se tivesse aceitado me ajudar.

— Primeiro, já disse que não é problema nosso, e segundo, toda vez que um Conselho Oriental é evocado, todos os deuses devem comparecer, salvo aqueles que por ventura estejam dispensados.

— E se você não viesse?

— O meu panteão varreria o mundo atrás de mim.

Hermes bufou insatisfeito. A reunião perdurou durante muito tempo, era uma discussão sem fim. Hermes não podia ficar ali e Long Mu não estava habilitada a sair. Ele percebeu que alguns deuses estavam exaustos da discussão enquanto outros pareciam estar apenas começando, não era para menos que o humor de Long Mu estava azedo naquele dia, teria que lidar com isso também. Para alívio do grego, um intervalo foi dado.

— Eu pensei que isso não fosse acabar nunca!

— Quando as reuniões são longas, damos um intervalo.

— Isso vai demorar mais do que pensei. Por que não vem comigo para acabarmos logo com isso?

— Já teve sua resposta. Por que se importa?

— Eu não me importo, apenas é o meu trabalho, Khaleesi. Pensei que vocês quisessem e aliar a nós.

— Para deter a ameaça que está por vir e não resolver as suas próprias merdas.

— Meu pai não irá gostar disso.

— Diga a ele que se quiser arrumar confusão, saiba que podemos envolver todo o conselho. E se vocês apanharem para os mongóis, irão apanhar duas vezes dos chineses e três vezes dos tibetanos.

— Nossa, não precisa dessa violência toda. Só estou aqui para conversar.

— Eu sei, mas você está no meio de aliados cuja rivalidade provém de eras. Nós mesmos não gostamos dos mongóis ou dos tibetanos. Se algo nos obrigar a precisar da ajuda deles, pode ter certeza de que iremos bater duas vezes mais.

— No entanto, vocês e os japoneses decidiram deixar as diferenças de lado.

— Sim e estamos tentando fazer o mesmo com os outros.

— Se eles o fizerem, a regra de bater duas vezes ainda vai estar valendo?

— Sempre.

— Quem me dera ser protegido por mitologias assim.

— Bem, é mais ou menos a relação que vocês têm com os persas.

— Os persas cagam para nós. Nem quando derrubamos o império, os deuses apareceram. Acho que ninguém nunca viu um deus persa. Me pergunto se existem.

— Claro que existem, os hindus já viram uma vez ou outra, afinal, parte da Índia já pertenceu ao Império Persa. Eles não gostam de aparecer muito, estão sempre ocupados.

— É o que dizem. Já que está todo mundo cagando para as amazonas, acho que não tenho mais o que fazer aqui.

— Gostaria de comer algo mais tarde?

— Isso, é um encontro, Khaleesi?

— Não é um encontro. Já que se deu o trabalho de vir até aqui e já está escuro, o mínimo que posso fazer é hospedá-lo.

— Eu adoraria comer na companhia da mãe dos dragões.

— Me chame de Long Mu.

— Prefiro Khaleesi.

— Você quem sabe.

De volta ao acampamento, o almoço tinha terminado e o grupo da Embaixada se encontrava do lado de fora do pavilhão. Jasmine estava aflita, pois Nicolas não tinha ligado até agora.

— Não se preocupe, ele vai ligar. – Mikoto estava otimista.

— Eu sei, mas estou preocupada, principalmente com os aliados deles.

— Que aliados?! – Perguntou David incrédulo. – Os nórdicos têm aliados?!

— Eu não sei, é isso que quero descobrir.

— Infelizmente não conheço muito sobre mitologia nórdica. – Confessou Yamato.

— Nem eu. – Disse Fang. – Vocês querem treinar? O pessoal do acampamento não é tão bem preparado assim.

— Aceito o desafio, aromatizante.

— Eu acho que não fará mal. – Disse Mikoto.

— Eu vou voltar para o meu quarto. – Declarou David.

— Eu não gosto muito de lutar. – Confessou Jasmine.

— Que isso, vai fazer bem. – Disse Fang.

— Acho que vou ligar para os outros e descobrir sobre esses aliados.

O grupo se separou. Os asiáticos foram para a arena treinar seus golpes, David voltou para a Embaixada e Jasmine foi para perto do lago. Estava em dúvida se retornava a ligar para Nicolas ou se ligava para algum outro, talvez Frísio. Se bem que Diana poderia dizer com mais detalhes quem eram os aliados dos nórdicos. A aflição não parecia ter fim.

— Hei, você é a Jasmine, certo?

— S-Sou... Perdoe, quem é você mesmo?

— Sou Drew, sou veterana daqui.

— Ah, você é amiga do Angus.

— Isso. Eu queria saber se você queria sair comigo e algumas amigas minhas.

— Desculpe, mas agora eu não posso. Eu tenho que ver se meus amigos estão bem.

— Não é agora. Mais tarde, durante a noite, pode ser?

— Acho que sim.

— Combinado então, a gente se encontra depois do jantar.

Drew se afastou, deixando Jasmine sem saber como reagir. A morena só despertou do transe quando ouviu seu Godcel tocar. Era Frísio. Jasmine suspirou de alívio, embora quem tivesse que retornar era Nicolas.

— Frísio, é tão bom falar com você! Eu estava pensando para quem ligar.

— Aconteceu algum problema? – Soou visivelmente preocupado.

— Não exatamente. Nicolas disse que ia me ligar mais tarde e até agora nada.

— Ele deve estar na reunião. Essas coisas demoram e são estressantes. Eu mesmo não aguento mais.

— É tão ruim assim?

— No caso deles, eu não sei. No meu caso, tivemos que chamar os celtas ibéricos, os da Gália Belga e sabe mais lá da onde. A reunião ainda nem começou, estamos esperando os atrasados dos lusitanos. E ainda tem aquele saxão maldito. Eu não sei por que ele prefere vir às nossas reuniões do que às dos nórdicos.

— Por falar em nórdicos, você sabe quem são os aliados deles?

— Provavelmente os germânicos, já que os nórdicos têm contrapartes germânicas.

— Contrapartes germânicas?

— É como deuses gregos e romanos. Um acabou incorporando o outro com o avanço da Germania, tanto que há deuses exclusivamente germânicos. Um deles é o Seaxneat, da antiga tribo da Saxônia.

— Saxônia?

— É uma região da Alemanha, antes chegou a ser um reino e até mesmo uma tribo. Quando os saxões se estabeleceram na Inglaterra e se juntaram com os povos anglos, eles formaram os primeiros anglo-saxões e Seaxneat veio junto com eles por ser um deus exclusivo dos saxões. Ele foi adorado na Inglaterra.

— É por isso que nos referimos aos ingleses como anglo-saxões até hoje?

— Sim. Tanto que o inglês tem mais semelhanças com o alemão do que com o galês, pois ambos se originaram da língua germânica. Seaxnet prefere vir às nossas reuniões por praticamente se considerar inglês e encher o saco dos galeses com isso.

— Ele deve gostar muito de vocês.

— É porque ele quase não é lembrado. Mesmo quando visita a região da Saxônia, ele não se dá muito bem com os outros germânicos. Então acabou se afeiçoando aos celtas.

— Isso é uma pena. Quando você volta?

— Difícil dizer. Os malditos lusitanos ainda não chegaram. Até os hispânicos estão aqui. E já estão discutindo alguns pontos.

— Mas você não disse que a reunião não tinha começado?

— Sim, mas a urgência é tanta que já estão começando a discutir os pontos. Acho que vão começar sem os portugueses.

— Entendi.

— E você, o que anda fazendo?

— Nada, na verdade.

— E Marcos e Tyler?

— Tyler foi para a escola e Marcos sumiu.

— Como assim sumiu?

— Ele tinha pendências a tratar, mas ele deve voltar em breve.

— Sabe quando?

— Não.

— Eu vou para aí.

— Frísio, não precisa fazer isso. Sua mãe precisa de você.

— Ela vai entender. Droga!

— O que foi?

— Acabei de ver Atégina. Isso significa que os lusitanos chegaram e que preciso cumprimentá-los. A reunião vai começar. Se demorar muito, vou fazer de tudo para conseguir uma dispensa ou inventar uma desculpa e retornar ao acampamento. Preciso ir.

— Eu sei. Até e obrigada.

— Não precisa me agradecer. Até daqui a pouco.

A ligação foi encerrada. Jasmine se sentia aliviada e feliz com a descoberta. É claro que não tinha gostado dos nórdicos omitirem os germânicos, mas pelo que Frísio tinha dito do deus saxão, deveria ser complicado. Ela achou melhor procurar por Quíron e o Senhor D. Os dois jogavam alguma coisa que não conseguiu identificar.

— Ah, Jessica! – Disse o Senhor D. – O que a traz aqui?

— É Jasmine, senhor.

— Tanto faz, Jezebel.

— Eu só vim dizer que descobri quem são os aliados dos nórdicos.

— Mesmo? Quem? – Indagou Quíron.

— Os germânicos, pois os nórdicos possuem contrapartes germânicas.

O Senhor D se engasgou com a coca diet que tomava. É claro que ele se lembrava deles quando era Baco, as invasões bárbaras que contribuíram para o fim do Império Romano. Eram tantos povos bárbaros que conhecera, gauleses, ibéricos, celtas, caledônios e, sobretudo, vikings e germânicos. Os germânicos eram povos completamente divididos como os godos, saxões e teutões. Se os deuses nórdicos tinham contrapartes germânicas e eram aliados dos deuses dessas tribos, isso poderia significar o fim dos deuses gregos e romanos se resolvessem mexer com aquela garota ou qualquer semideus da mitologia deles.

— Senhor D, está tudo bem? – Perguntou a semideusa preocupada.

— Tudo, eu só estava me lembrando de uma coisa. Você disse germânicos, é?

— Sim. Frísio me contou sobre isso. Ele disse que há um deus germânico entre os celtas. Saxão, pelo que me lembro, foi muito adorado na Inglaterra. – O Senhor D tornou a tossir.

— Interessante. – Disse Quíron realmente interessado. – E como vai a reunião?

— Quando ele me ligou, ainda não tinham começado, pois estavam esperando os lusitanos. – O deus tossiu mais ainda. – Tem certeza de que está bem, Senhor D?

O deus não respondeu. Deu algum tempo até ter se recuperado de quase engasgar diversas vezes.

— Depois você pode me contar mais sobre eles, Jasmine. – Disse o centauro gentilmente. – Vou adorar saber mais.

— Eu não sei muita coisa. Talvez eu deva pesquisar na biblioteca. Obrigada, senhor Quíron.

A garota se afastou dos dois. Dionísio apenas olhou para o centauro.

— Torça para os nórdicos e germânicos não forjarem uma aliança permanente com os celtas ou nossas pregas vão estar mais largas que o cabeção do Peter Johnson.

— Você não tem jeito. – Suspirou derrotado.

Jasmine não perdeu tempo e correu até a Embaixada. Lá, ela entrou na biblioteca e procurou por livros sobre a mitologia germânica, a nórdica, sobre o Império Romano, a Germânia e a formação da Inglaterra. Estava tão entretida que mal percebeu alguém entrar.

— Ok, isso é novidade.

— Tyler! Você voltou.

— O que você faz na biblioteca? Você quase não vem aqui.

— É que eu estava procurando informações sobre os germânicos.

— Germânicos?

— Sim. Odin é conhecido pelos germânicos como Wothan, Woden, Wodaz, Wodanaz, enfim, há várias variações dependendo do local e época.

Claro que ela tinha errado a pronúncia de todos os nomes, afinal, não era conhecedora da língua. Tyler também não podia dizer o mesmo, era capaz de embolar as pronúncias e dizer algo nada a ver com nada.

— Por que está interessada em germânicos?

— Frísio disse que os nórdicos possuem contrapartes germânicas, assim como os gregos possuem as romanas. Queria ver se encontro alguns que são exclusivamente germânicos.

— Boa sorte com isso.

— E a sua prova?

— Eu confundi as datas.

— Como assim?

— A minha prova de física é amanhã, eu tive prova de biologia.

— Isso é uma pena. Conseguiu fazer?

— Claro. Para a minha sorte, eu sou muito bom em biologia. – Não ia contar que teve um ataque em frente aos seus amigos da escola e quase morreu do coração ao descobrir que estudou para a matéria errada. – Eu vim estudar física novamente, mas pelo visto você está ocupada.

— Eu posso sair.

— Não! Não quero te atrapalhar. Eu vou estudar no meu quarto, assim não te atrapalho em sua busca.

Tyler pegou alguns livros de física e se despediu sorrindo de Jasmine. Ele subiu as escadas para seu quarto enquanto a grega se via novamente em sua pesquisa.

De volta à China, Hermes tinha parado em um pequeno restaurante chinês que mais parecia uma lanchonete. As ruas eram mais populosas do que pensava e tinha passado por tantas barraquinhas de comida ao ar livre que seu cabelo devia ter absorvido todos os cheiros possíveis.

— Isso é pior que Chinatown.

— Aqui é a China real, é mais tumultuada. – Explicou Long Mu. – Prefere carne ou legumes?

— Eu gostaria de entender o que está escrito naquele menu. Você não podia ter escolhido um lugar com o cardápio em inglês?

A chinesa riu, já os cinco dragões transformados em crianças gargalharam. O grego não gostou nada daquilo.

— Bem, você está em uma cidade a oeste não muito visitada por estrangeiros. Não vai encontrar muitos lugares para comer onde se fala inglês. Talvez nos pontos turísticos, mas estes são mais cheios.

— Mais cheios do que isso?

— Acredite, Pequim e Xangai são piores. Hong Kong e Macau nem se falam. Eu poderia sugerir outra, mas não sei se gosta de cidades agrícolas que não têm o menor contato com o inglês.

— Espertinha. Tem outras opções?

— Temos o Himalaia. Prefere o Everest ou o K-2?

— Por que não me mandam para uma praia no Caribe?

Os dois começaram a rir. Um país tão grande e com uma diferença gigantesca entre os estilos de vida de cada região deveria assustar, embora fosse de se esperar. Deveria se acostumar com isso caso se mudassem para o Brasil, como Atena sugerira e os preparara. Embora fosse ideia da deusa da sabedoria, era a ideia mais idiota que Hermes já ouvira na vida. Ele se perguntava se Atena não tinha merda na cabeça na hora de pensar nisso.

O Brasil tinha seus próprios deuses, um tanto esquecidos, mas eles continuavam lá e Tupã se popularizou por algum tempo com as histórias do Papa-Capim. Além dos deuses brasileiros, havia deuses africanos que dominavam o estado da Bahia e graças às religiões de matrizes africanas, o culto deles se estendeu para outros estados. Ainda tinha a proximidade com os incas e o péssimo negócio que Hermes teria com a transportadora. O correio no Brasil era dominado pelo governo, não havia como outra empresa se instalar, já que o governo não gostava de concorrência, e distribuir cartas e mercadorias sem antes passarem por ele, fora o imenso buraco negro que era Curitiba, onde as mercadorias ficavam séculos sem movimentação, sem falar nos altos impostos para qualquer coisa. Definitivamente, Brasil era uma péssima ideia.

— Tem aqueles bolinhos brancos que vocês entopem de coisa, até mesmo de porco?

— Baozi? Para começar é um pão.

— Esse mesmo.

— Por isso que perguntei se queria carne ou legumes.

— Não é carne de cachorro, pelo amor de Zeus.

— Claro que não! De onde tirou isso?

— Sei lá. – Achou melhor se fingir de bobo já que tinha chamado atenção negativa dos dragões. – Me vê um de porco.

A chinesa fez os pedidos. Os dragões estavam sempre atentos ao menor movimento. Os baozi chegaram recém-cozidos no vapor. Os dragões não pensaram duas vezes antes de comer, assim como eles.

— Você não confia em mim, não é mesmo?

— Só um tolo confiaria plenamente em você, mas não posso deixá-lo no escuro quanto à situação atual.

— Está falando da suposta aliança que fizemos, mas se recusam a nos ajudar?

— Não nos aliamos para consertar suas merdas, mas se insiste tanto, posso pelo menos olhar a ilha, mas é bom não aprontar comigo.

— Eu? – Abriu um sorriso amarelo. – Logo eu, Khaleesi?

— Nossa situação é crítica, precisamos de todos os nossos deuses operando aqui. – Preferiu não entrar na brincadeira para demonstrar que o assunto era sério. – Nossos melhores guerreiros foram deslocados para longe daqui.

— Que interessante.

Long Mu suspirou profundamente. Ao invés de pegar um baozi, ela pegou um guardanapo e caneta e escreveu algo. Em seguida o dobrou. Já Hermes, tinha que lutar com os dragões para que não comessem todos os pães, que estavam deliciosos por sinal.

— É isso que estão protegendo. – Entregou o pedaço de papel dobrado. – Quem sabe isso não esclareça tudo?

Hermes pegou o papel e o desdobrou. Sorte que não tinha nada na garganta ou teria se engasgado. Ele leu o conteúdo duas, três, quatro, cinco vezes para averiguar que não tinha lido errado.

— É sério isso?

— Mais do que pensa. Nossos guerreiros precisam proteger este lugar de qualquer pessoa que queira se aventurar. Se conseguirem chegar a esta pessoa...

— Todos nós estaremos condenados. – Completou a frase por ela.

— Nossos maiores esforços estão nesta missão. Ninguém deve se aproximar, nem seus deuses ou semideuses. Já temos problemas demais com os demônios.

— Suponho que um deles seja Guan Yu. A filha dele está no acampamento, ela sabe disso?

— Não e preferimos assim. Dissemos que estava em missão, mas não especificamos qual tipo de missão. Seria doloroso demais pensar que a pessoa que você ama está na linha que impede nossa condenação. Se ela quiser ajudar, pode se pôr em perigo sem querer.

— Vocês gostam muito dela.

— Diferente de vocês, nós realmente amamos nossos filhos. – Bagunçou o cabelo de Yao. – Os criamos com honra acima de tudo, mas os amamos e nos importamos com eles. Você já amou algum filho seu sem que ele tivesse feito grandes feitos ou se tornado o heroi de todos?

— Não, jamais amei qualquer um de meus filhos. Confia em minhas palavras?

— Nestas sim.

— Não acredita que eu possa amar?

— Você não é do tipo que cria raízes. – Disse com desdém. – Não fica quieto em um só lugar ou com uma só pessoa. Se duvidar arrumou três novas namoradas antes de embarcar nesta missão.

— Cinco. – Riu. – E mais duas antes de entrarmos neste restaurante.

— Safado!

— E acho que vou arrumar outra amanhã.

— Disso eu não duvido.

— Mas está errada, Khaleesi. Eu posso ser tudo isso que você disse, mas já amei alguém.

— E o que aconteceu?

— Prefiro não falar sobre isso.

Tinha tornado o semblante sério. Não ia falar sobre Luke e May e muito menos admitir que tinha sido culpa dele. Não, ele não tinha culpa alguma, nenhum deus grego tinha culpa, pelo menos era o que eles gostavam de pensar. Colocavam a culpa em tudo e todos, mas nunca admitiam. Mas se não fosse pelas merdas que fizeram, as coisas poderiam ser diferentes? Afinal, Luke já o odiava antes de conhecer Cronos. Um rápido pensamento cruzou sua mente, por um instante pensou nada daquilo fora culpa de seu avô Cronos, mas dele próprio. Afastou tais pensamentos com a mesma velocidade que chegaram.

— Vocês chineses se culpam por alguma coisa?

— Muitas coisas, mas admitimos nossos erros e tentamos aprender com eles. Presamos a honra, muitas vezes preferimos morrer com ela do que viver sem ela. No entanto, até a honra pode ser restaurada.

— Do que está falando?

— Não gostamos de fracassos tanto quanto qualquer outro, na verdade odiamos fracassar, tanto que alguns de nós preferimos tirar a própria vida a viver em desgraça. Porém a vida não é assim, há novas chances e podemos restaurar nossa honra. – Ela respirou profundamente antes de continuar. – O que estou dizendo é que se você se culpa por algo, você tem a chance de consertar.

— E se eu não tiver essa chance?

— Então cuide para não cometer o mesmo erro no futuro. Seja lá o que tenha feito, não faça de novo.

— É fácil dizer.

— É complicado fazer, mas só você pode aplacar o que sente. Eu só posso aconselhá-lo.

— Está preocupada comigo, Khaleesi?

— Somos aliados, certo? Pelo menos até isso tudo acabar. E não me venha falar das amazonas, ainda não sei seus reais interesses neste caso.

— Preciso ter algum interesse?

— Deuses gregos não fazem nada sem que tenham algum interesse, principalmente você. Por acaso quer fugir com meus dragões?

— Só quero sua confiança, mas pelo visto não está disposta a confiar em mim.

— E eu deveria?

— Não.

Acabaram por pagar a conta e sair do restaurante. As ruas começavam a esvaziar e os estabelecimentos a fechar. Acabaram por retorar à casa da chinesa, pois a viagem seria longa no dia seguinte.

— Seu marido não se incomoda?

— Começou mais tarde do que pensei.

— O que?

— Sério? “Seu marido não se incomoda?”. Essa é sua tática de flerte?

— Flerte? – Se fez de desentendido. – Só estou perguntando para o caso do seu marido aparecer.

— Essa foi a pior cantada que já ouvi, só não supera...

— “Você vem sempre aqui?”

— Essa mesma.

— Seu pai era dono de aeroporto?

— Aeroporto? Sério que você está me perguntando isso?

— Ué, então como é que ele fazia para manter um avião desses em casa?

A deusa começou a rir de tão ridícula que era a suposta cantada. A risada se tornou gargalhada.

— Você já pode adicionar “deus das cantadas de pedreiro” aos seus títulos.

— Acho que não. Apolo tem umas piores, uma vez ele levou uma bolsada por causa de cantada.

— Até imagino o nível das cantadas para se levar uma bolsada.

— Pelo menos a garçonete não bateu na cabeça dele com a bandeja no mesmo restaurante.

— Como assim?

— Ele estava em um encontro, a parceira dele deu uma bolsada e saiu, então ele resolveu tentar a sorte com uma gaçonete. Por pouco ela não acertou a cabeça dele com a bandeja.

— Credo! Seu irmão é pior que você.

— Eu não presto, mas meus irmãos são piores. Ares e Hefesto então, dá até vergonha de sair com eles para balada ou qualquer coisa assim. Ares é um troglodita que acha que pode puxar mulher pelo braço na porta do banheiro, espero que a Macha dê um jeito nele, nem que seja com os punhos. Hefesto é o feio que reclama que não pega ninguém quando leva um fora. Já Apolo é o cara que disputa quem pega mais gente na balada.

— E você?

— Eu sou o cara que conversa até na fila do banheiro.

— Pelo visto gosta de conversar.

— Uma boa convesa abre portas. E pernas.

— Disso eu não duvido. Aposto que aproveita para abater carteiras nas filas do banheiro também.

— Culpado! E você, como é nas baladas?

— Não frequento baladas. Pode não parecer, mas eu gosto dessa vida pacata de camponesa.

— Tem irmãos?

— Tive duas irmãs. Não foram importantes para serem consideradas divindades pelo povo chinês, então não estão entre nós há muito tempo.

— Entendo.

— Se quiser mesmo ir à ilha amanhã, é melhor irmos dormir.

— Mas já?

— Quase uma da manhã.

— Como o tempo passa rápido. Ainda mais com uma companhia tão agradável.

— Vai mesmo ganhar o título de deus das cantadas de pedreiro.

— Maldade, Khaleesi.

— Há muito a se fazer amanhã.

— Não há necessidade de acordar cedo, podemos ir à tarde, já que o fuso é diferente mesmo.

— Não quer dizer que não tenha trabalho amanhã.

— Oh, merda. Eu esperava fugir do trabalho.

— Boa noite.

— Boa noite, Khaleesi.

Assim que a chinesa saiu, o grego começou a se virar para fazer um arco-íris usar a mensagem de íris. Ele pagou alguns drackmas e imagem dos deuses do Olimpo se materializou.

— Houston, temos um problema.

— Não me diga que falhou. – Rosnou o pai.

— Não falhei, nós vamos à ilha amanhã.

— Então qual é o problema?

— Parabéns, você vai ser vovô!

— HERMES!

— Nada de netos, mas está sendo um parto buscar por cooperação.

— E os chineses, têm algum ponto fraco? – Perguntou Atena.

— Eu não percebi, mas estive no Conselho Oriental hoje e bem, aquele lugar está prestes a explodir com a menor fagulha. Ainda bem que os persas cagavam para nós porque eu odiaria ter que viver daquele jeito. É o que dá juntar todos os inimigos milenares em um só lugar.

— Então, crie a fagulha.

— Nem pensar. Não ouviram o que eu disse? Inimigos milenares. Se eles suspeitarem de armação nossa, os japoneses vão querer nosso couro. Os chineses vão bater duas vezes mais na gente porque apanhamos para os japoneses e os mongóis três vezes mais porque apanhamos para os chineses e os japoneses. Eu que não vou mexer com aquele bando de Gengis Khan.

— Os mongóis ainda existem? – Os outros deuses estavam perplexos, tanto que proferiram as palavras em uníssono.

— Pensei que eles estavam extintos.

— Não, estão vivos, eu mesmo os vi, assim como os tibetanos e tailandeses. Eu estou dizendo, derrubar os japoneses não vai rolar. Vamos ter que nos contentar que os nomes deles vivem mais nas mídias orientais que os nossos.

— E se jogarmos as suspeitas para outra mitologia? – Questionou a deusa da sabedoria.

— Eu não vou causar intriga entre eles porque eles estão nos protegendo do verdadeiro apocalipse. Então se vocês dão valor às suas bundas, é melhor ficarem longe dessas terras. Caso contrário, irão condenar todos nós sem exceção.

Os deuses ficaram boquiabertos com a insolência. Não era a primeira vez que Hermes era insolente, ele tinha roubado o gado de Apolo, ameaçado se tornar o príncipe dos ladrões caso não fosse reconhecido e podia ser tão teimoso quanto uma mula.

— Se ela for libertada, nem mesmo nossos titãs terão como derrotá-la. Se Cronos conseguir uma aliança, nem sei o que pode acontecer.

— Ela? – Questionou Ares. – Como uma mulher detém tanto poder?

— Pergunte para a Macha. Ela vive te dando uma surra.

— Desgraçado.

— De quem estamos falando? – Perguntou Apolo. – É bonita?

— Eu não sei, não perguntei.

— Qual o nome dela.

— Não vou dizer.

— Fala logo! – Ordenou o pai. – Esse suspense está me deixando louco.

— Eu não posso dizer o nome dela. Os mortais podem, mas os deuses não podem, por isso não vou dizer a vocês para não correr o risco de ninguém pronunciar sem querer.

— HERMES!

— Tchauzinho.

Ele encerrou a mensagem e se jogou na cama, respirando profundamente. Faltavam poucas horas para o sol nascer e teria um longo dia pela frente, e agora teria que fazer aquela aliança funcionar, custe o que custasse.

O tempo passou no acampamento e logo a noite caiu. Tyler mal saiu do quarto, mas isso era esperado. Já Marcos não deu sinal de vida, nem mesmo no jantar. Nicolas Também não tinha ligado.

— Ele ainda não ligou? – Perguntou Mikoto, que recebeu um aceno negativo de Jasmine com a cabeça.

— Se fosse eu já teria ligado. – Disse Yamato. – Isso é falta de consideração.

— Acho que se estendeu e agora os nórdicos devem estar comendo e bebendo hidromel.

— Eu que queria uma reunião dessas. – Comentou Fang.

— E o outro que sumiu e até agora não voltou? – Questionou David.

— Marcos? Ele disse que tinha algo importante para resolver.

— O que de tão importante ele deve ter para não sumir o dia todo?

— Acho que deve ser algo com o irmão dele.

— O irmão dele? – Perguntou Mikoto.

— Que irmão? – Yamato estava muito interessado.

— É complicado. Ele descobriu que tem um irmão que também é semideus e as coisas têm sido bastante complicadas para eles durante esses dias. Houve até teste de DNA no meio dessa história.

— Mas deuses não têm DNA. – Protestou David.

— Mas humanos têm. Marcos e Leo são de mitologias diferentes, um é filho de Chaac e o outro de Hefesto, mas a mãe era a mesma.

— Está aí algo que não se vê todo dia. – Comentou Yamato. – Parece até nosso caso, Miko.

— Como assim?

— Yamato e eu não somos apenas primos por mitologia. Nossos pais mortais também são irmãos, mas o pai dele mora em Kyoto e a minha mãe em Osaka. Eles têm sobrenomes diferentes porque a nossa avó ficou viúva cedo e se casou novamente quando minha mãe era muito pequena, por isso minha mãe usa o sobrenome do pai dela enquanto meu tio leva o do pai dele.

— Isso que é coincidência. – Tornou a comentar o romano.

— Eu nunca ouço falar nos seus pais mortais.

— É que eles são considerados comuns e insignificantes para esse tipo de vida. – Disse Fang. – A maioria dos deuses vê os humanos como uma simples forma de procriar. Poucos se apaixonam de verdade, a maioria só está em busca de uma aventura, se deixa se levar pela paixão ou arruma filhos para resolverem suas merdas.

— Falando assim, até parece que somos descartáveis.

 - Para alguns sim, a menos que sejam seus favoritos.

— O que sua mãe faz, Fang? – Perguntou Jasmine.

— Ela era do exército chinês, mas acabou sendo dispensada, acabou arrumando um emprego em um cassino em Macau e hoje é gerente dele.

— Uma filha de Guan Yu crescendo em meio aos jogos? Isso sim é incoerência. – Disse o japonês.

— Posso ter sido criada em um cassino, mas consigo ganhar de você em qualquer jogo sem precisar roubar. Não é minha origem que importa e sim minhas escolhas. Sua mãe não te ensinou isso, sol das oito?

— Não viemos aqui para brigar. – Sentenciou Mikoto olhando de Yamato para Fang. – Vocês dois deveriam cooperar e não acusar um ao outro. Nossos Três Grandes não foram claros?

Yamato e Fang cruzaram os braços e viraram de costas um para o outro. O clima tinha ficado tenso de repente.

— Me desculpem por isso. – Tornou a dizer Mikoto. – Nossa rivalidade com os chineses é antiga e não apenas mitológica.

— Como assim? – Questionou Jasmine.

— As coisas no oriente são mais complicadas. Mesmo com a globalização e diplomacia entre os países, ainda há ressentimentos em seus povos e eu estou falando de povos milenares com passados antigos e recentes.

— Mas vocês não têm um conselho ou algo assim? – Perguntou David. – Eu ouvi algo sobre isso ontem.

— Temos, mas a tensão não parece diminuir. Os chineses e os mongóis se odeiam, os coreanos odeiam os japoneses, os vietnamitas e os tailandeses não gostam dos chineses e nem dos japoneses, os japoneses e chineses se odeiam e tudo piorou com a Segunda Guerra Mundial, os mongóis e os japoneses têm suas rivalidades, os coreanos e chineses têm suas desavenças, os indonésios e filipinos quase não comparecem, mas quando o fazem, aumentam a discussão. Por pouco os hindus não fazem parte do conselho.

— Também se fizessem, seria uma tragédia. O que houve na WWII para eles se odiarem mais ainda?

— A WWII aconteceu um pouco depois do início da Segunda Guerra Sino-Japonesa. As duas guerras acabaram se juntando em uma só, terminando com a rendição do Japão perante os Aliados.

— O Japão decidiu anexar os territórios da China pela força. – Fang decidiu se pronunciar. – Não só da China, fez o mesmo com Coréia, Filipinas e o Sudeste Asiático. Houve todo tipo de coisa, massacres, longos períodos de fome, mas o pior é que até hoje não houve qualquer pedido de desculpas deles, pelo contrário, até tentaram amenizar a própria culpa, principalmente depois de Nanquim.

— Como se vocês chineses fossem santos. – Disse Yamato. – Vocês mesmos mataram seus próprios estudantes na Praça da Paz Celestial.

— Já chega vocês dois! – Esbravejou a japonesa batendo ambas as mãos na mesa e chamando a atenção de todo o refeitório. – Não estamos aqui para brigar e sim para deixar nossas diferenças de lado! Querem se matar? Se matem! Mas avisem aos seus Três Grandes que não vão cooperar, do contrário, eu mesma faço isso.

Novamente Yamato e Fang ficaram calados. Os dois se retiraram do Pavilhão de Jantar e cada um foi para um lado. Mikoto voltou a se sentar exausta.

— Me desculpem por isso, mas se eu não puser ordem, eles realmente vão brigar a noite inteira. Não está sendo fácil para eles e nem para mim.

— Mas ao menos você está tentando. – Tornou a dizer a grega. – Quem sabe se der um tempo, eles não...?

— Vai ser difícil. A única coisa que os impede de ir embora é a nossa missão de superar nossas diferenças e trabalharmos juntos para seja lá o que esteja vindo. Falhar em uma missão para nós orientais é uma grande desonra e nenhum de nós quer isso.

— Eu entendo. – Disse David. – Lupa não aceitava falhas e fraquezas, falhar em uma missão custava o respeito do acampamento. Era difícil recuperá-lo.

— Para nós, a desonra é pior que a morte. É preferível morrer a viver em desonra.

Mikoto respirou fundo, se levantou da mesa e se pôs a caminhar.

— Aonde você vai? – Perguntou Jasmine.

— Cuidar para que Yamato e Fang não cometam nenhuma besteira.

— E eu achando que os gregos e os persas se odiavam e que nós romanos eramos rígidos e exigentes. Comparados a eles, nós somos nada.

— Espero que eles consigam se resolver.

— Acha uma boa ideia deixá-los no acampamento?

— Eles só precisam de tempo, David. Nem todos se adaptaram facilmente. Seria mais fácil se os outros estivessem aqui.

— Por falar nisso, teve notícias deles?

— Não, mas vou ligar para eles. Deveríamos tentar amenizar as coisas, pelo menos até os outros chegarem.

— Você não sabe muito que fazer, não é?

— Não. É a minha primeira vez cuidando de tudo sozinha. Se ao menos Tyler não tivesse prova e Marcos estivesse aqui...

— A Fang gosta de jogos, não é mesmo? A gente pode pedir a ela para nos ensinar a jogar baralho. Isso poderia manter todos ocupados até a hora de dormir.

— É uma boa ideia!

Os dois se levantaram e se encaminharam para fora do pavilhão. Drew os esperava do lado de fora refeitório.

— Pronta para irmos?

— Aonde?

— Combinamos de sair depois do jantar, lembra?

— Eu não acho que seja uma boa ideia.

— Vai furar com as amigas?

— Eu...

— Tudo bem, pode ir. – Disse David. – Eu posso cuidar dos outros.

— Mas David...

— Ele está certo. Vamos.

Jasmine acabou indo com Drew. David ficou para trás com uma enorme dor de cabeça. Reconhecia aquele poder, mal conseguia acreditar que tinha sido facilmente manipulado por uma das filhas de Vênus. Afrodite! Tinha que reconhecer que naquele acampamento Vênus era Afrodite. Sem alternativa, correu até a Embaixada. Ao chegar lá, abriu a porta sem qualquer cuidado. Ele subiu as escadas para o segundo andar. Não se lembrava onde ficava o quarto de Tyler, por isso foi batendo e tentando abrir cada porta.

— Mas o que é isso?! – Perguntou Fang descendo as escadas, dando a entender que tinha se refugiado em seu próprio quarto. – Porra, eu pensei que tinha entrado o pior ladrão do mundo no prédio!

— Não dá tempo de explicar, eu preciso achar o quarto do Tyler.

— E para que?

Assim que girou mais uma maçaneta e ascendeu a luz, ele escutou um “porra” alto demais. O maori ainda proferiu outros palavrões, grogue pelo sono. Irritado, o maori se levantou da cama com uma cara assustadora e aura assassina emanando de seu corpo. David paralisou de medo e corou ao notar que ele se encontrava de cabelo solto e somente de cueca azul. O maori possuía corpo atlético com músculos definidos, o resultado de uma vida nadando.

— Pode me explicar que merda é essa?!

— E-Eu preciso do seu GodCel. – Teve que reunir coragem para falar, caso contrário ele poderia arrancar seu fígado, pelo menos essa era a impressão que ele causava.

— Você me acordou só para me pedir a porra...?!

— A Jasmine saiu com uma filha de Vênus... Afrodite! Ela me manipulou para deixá-la ir.

— Puta que pariu! Fang, você tem o número do Marcos?!

— Acho que não.

— Então me ajudem a procurar a merda do meu GodCel!

David e Fang não perderam tempo e entraram no quarto. O local estava uma bagunça, cheio de livros, pacotes de salgadinhos e um bule de café, além das roupas recém-atiradas ao chão. Tyler manipulou a água para sair da torneira e molhar seu rosto, molhando também seus cabelos e busto, deixando o romano ainda mais vermelho. Os três pararam a busca assim que ouviram um som metálico. Eles correram para fora do prédio, encontrando o dragão de metal pousando em frente à Embaixada. Leo e Marcos desceram dele.

— Está entregue, madame. – Brincou o filho de Hefesto.

— Muito engraçado.

— Até que enfim você voltou seu porra!

— Tyler?! É você?!

— Não, é a Chapeuzinho Vermelho.

— Mas o que está acontecendo aqui? – Perguntou a figura que acabara de surgir com uma sombra.

— FRÍSIO?! – Gritaram em uníssono.

— Da onde caralhos você surgiu?!

— Você não estava com os celtas? – Perguntou Marcos.

— Eu voltei mais cedo. Tive um pressentimento estranho e também, os celtas demoram muito em suas reuniões. Mas vocês não me responderam.

— Eu acabei de chegar.

— Não importa, a Jasmine saiu com uma das filhas de Afrodite.

— Mas não somos amigos de nenhuma filha de Afrodite. – Lembrou Marcos.

— Eu sou da Piper. – Lembrou Leo.

— Merda! Eu a deixo sozinha com vocês dois para uma merda dessas acontecer?!

— Vocês dois o caralho, pangaré! Esqueceu que eu sou o único nessa joça que ainda tem que lidar com as provas e que estuda há 16 fusos daqui?!

— A culpa é minha, eu devia ter ficado no acampamento e deixado para resolver meus assuntos com o Leo depois.

— Vocês podem parar de gritar que nem putas brigando por ponto?! – Pronunciou-se Fang. – A amiga de vocês pode estar com problemas e vocês aí, discutindo.

— Fang tem razão, não é hora para discussões. – Disse David.

— Gaoithe, consegue rastreá-la?

Com a magia do urso vai ser difícil, mas posso rastrear a outra. O sangue dos semideuses tem cheiro diferente.

— Eu vou contigo. – Disse Marcos.

— Não, eu vou. – Pronunciou Tyler. – Por alguma razão, eu sou imune a essas coisas.

— Então eu também vou. – Disse Fang. – Aprendi muito com meu pai e posso colocar minha honra acima do amor e da atração.

— Marcos, você fica com o David e os outros. – Tornou a dizer Frísio. – Preciso de alguém para cuidar de tudo até o nosso retorno, mas haja o que houver, não ligue para o Nicolas.

— Pode deixar.

— Nem para Diana ou Raven. Vamos deixá-las fora disso, pelo menos por enquanto.

— Já entendi.

— E da próxima vez que você se desculpar por passar um tempo com seu irmão, eu te mato. Você resolveu o que tinha que resolver, nada mais.

— Obrigado.

— E Tyler, vá colocar um short! É a segunda vez que te vejo de cueca!

— E qual é o problema? Vai implicar com minha cueca agora?

— Eu vou te deixar aí se não se trocar.

— E eu? – Perguntou Leo.

— Você dorme comigo hoje. – Tornou a dizer Marcos. – Eu não vou te deixar voltar para aquela lata de sardinha.

Enquanto isso, Sienna estava sentada ao lado da mãe presenciando toda a reunião. Descobrira que ela abrigava Cimopoleia e a usava como assistente e até mesmo secretária. Os astecas, os maias e os incas discutiam muitas coisas, mas nada pertinente na visão dos inuites. Maias eram próximos aos astecas e até parecidos, mas não o bastante para serem considerados as contrapartes uns dos outros, sendo diferentes. Os incas eram importantes, lógico, fechando o trio dos povos mesoamericanos mais conhecidos.

Ao contrário do que parecia, Sienna não estava desinteressada. O trio parecia se acertar e vez ou outra falavam de proteger seus territórios, dando a brecha para os inuites se intrometerem. Por incrível que pareça, ela era a única semideusa presente.

— Isso é perda de tempo. – Resmungou Cimopoleia. – Devíamos estar traçando um plano e desvendar quem está por trás disso.

— Você não consegue ver, mas não me surpreende. – Pronunciou Sienna. – Esses deuses foram de povos guerreiros. Se eles não se entrosarem, teremos problemas e problemas dentro de uma aliança ainda instável podem levar à ruína.

— Mas precisam fazer isso agora?

— Tootega ainda não se pronunciou. Não é tão urgente quanto parece.

— Está dizendo que estamos aqui para perder tempo?!

— Nada é perda de tempo.

Sienna aproveitou para se levantar e se aproximar dos outros deuses. Sedna iria atrás da filha, mas Tootega gesticulou que não precisava. A garota foi para o meio dos incas, o que ela tinha ido fazer lá, nenhum dos presentes sabia.

— Desculpem-me pela interrupção, mas achei que teriam trazido um semideus inca.

— Aquele Jaguar tem uma língua comprida! – Reclamou o deus dourado com uma espécie de armadura e coroa que lembrava o sol, não era para menos, pois aquele era Inti, o deus do sol e um dos Três Grandes Incas. Ele se encontrava sentado ao lado direito de Viracocha, o líder dos incas.

— Foi o filho de Chaac quem me falou.

— É amiga do Marcos? – Questionou a mulher de incrivelmente longos cabelos negros, sentada ao lado esquerdo de Viracocha, trajando uma espécie de top azul bem escuro com detalhes em prata e uma saia da mesma cor curta nos lados e comprida na frente com um cinto prateado e coroa dourada. Esta era Mama Quilla, a Terceira Grande Inca.

— Ora, se é amiga do Marcos, é bem-vinda! – Disse um deus com cabeça e chifres de cervo e corpo de cobra com cauda adornada com correntes de ouro. – Urcaguari ao seu dispor.

Como aquele deus em específico conseguira se reproduzir, era um grande mistério, na verdade nem tão grande assim. Sienna era acostumada com essas bizarrices, afinal se até Nanook podia ter filhos com humanas, qualquer deus podia. Isso se devia à duas coisas: a névoa, em alguns lugares ela era extremamente densa; e a mudança de aspecto. Deuses tinham diferentes aspectos, diferentes aparências por eras e mais eras, o que custava um deus meio animal ter aspecto humano? Os egípcios não tinham uma cabeça humana quando resolviam sumir com suas cabeças de animais para namorar? Sua mãe, Hel e Ah Puch alguma vez foram impedidos de ter filhos? Gaia não podia gerar mais com seu avatar da mesma forma que Akna? Adlets não tinha se originado de uma humana e um grande cão ruivo? Às vezes Sienna preferia não questionar as coisas, pois elas não tinham qualquer explicação lógica, apenas aconteciam e pronto.

— Infelizmente meu Santiago não pôde vir. Ele está em época de provas.

— Santiago?

— Oh, é claro, Marcos e ele se referem um ao outro como Kuzco e Malária. Garotos! Não dá para entender o que se passa na cabeça deles.

— Devo concordar. – Pensou nos garotos da Embaixada, mais especificamente em Angus e Tyler, afinal um era impossível adivinhar o que faria e o outro não tinha muita noção. – Estamos nos preparando para a chegada dele.

— Ele me contou. Espero que vocês três possam ser amigos, para o bem de nossas mitologias.

Um vento ancestral soprou através de todos no recinto, o que era estranho, pois não havia janelas na sala. Palavras iluminadas surgiram no centro do local. Imediatamente Tootega se levantou e se aproximou delas, rapidamente as traduzindo para os demais.

— “Do inimigo haverá dúvidas. Alianças formadas colapsadas. Deuses esquecidos serão lembrados. Mitologias caídas ascenderão. Fraternidade e amizades turbulentas.” Desculpem, é apenas isso que foi nos revelado.

— E mesmo assim não nos disse muita coisa. – Pronunciou-se Huracán.

— O trecho que fala do inimigo me preocupa, Tootega. – Pana apressou-se a dizer. – Sei que as coisas estão se arrastando, como se não estivessem acontecendo de verdade e tudo o que vimos foram pontos isolados.

— Eu sei. O inimigo é paciente, não sabemos quando vai atacar.

— Então não podemos deixar nossa guarda baixa. – Disseram Tohil e Tlaloc ao mesmo tempo. – Eu que disse primeiro!

— Eles têm razão. – Comentou Chaac. – Se o inimigo é tão esperto, o que ele está esperando?

— A pergunta é: quem é o inimigo? – Pontuou Sedna.

Todos se entreolharam. Ninguém tinha qualquer ideia de quem pudesse ser o inimigo descrito, mas a profecia poderia mudar, então não podiam ter certeza se haveria um ou dois ou nenhum.

— Mitologias caídas... – Quetzalcoatl estava pensativo. – O trecho se refere àquelas que ninguém mais lembra?

— Ninguém além de nós e poucos humanos que dedicam seu trabalho a documentar fatos e peças históricas e mitologias. – Disse Pinga. – Podemos procurar remanescentes.

— Deve haver deuses norte-americanos que se adaptaram à vida humana ou estão escondidos. – Disse Tepeu. – Talvez algumas tribos indígenas ainda transmitam suas histórias de geração para geração.

— Se for o caso, nós devemos enviar nossos melhores deuses para entrar em contato com uma antiga mitologia que conhecemos. – Disse Viracocha. – Ainda mais se considerarmos o ambiente hostil ao qual vivem.

— Albânia? – Perguntou Xolotl, fazendo seus irmãos baterem com as palmas das mãos em seus rostos.

— Brasil.

Jasmine tinha ido com as filhas de Afrodite a um bar em uma zona não muito movimentada. A garota estava com mal pressentimento, mas não deu tanta importância. Elas entraram no estabelecimento juntas. A espinha de Jasmine gelou. No bar havia sujeitos mal encarados que torceram os narizes assim que avistaram o grupo. Alguns não prestavam atenção nelas e muitos homens pareciam bêbados.

— Vocês não deveriam estar aqui. – Disse um homem no balcão. – Isto não é lugar para vocês.

O dito homem possuía o cabelo preto até os ombros, vestia roupas pretas e surradas além de coturnos. Ele mal tinha olhado para o grupo, estava mais entretido em seu whisky do que em qualquer outra coisa. As garotas ficaram visivelmente incomodadas, mas Drew não se abalou.

— Mesmo? Por acaso alguém aqui pediu a opinião de um mendigo bêbado?

As outras riram, menos Jasmine, que comentou com Drew que não tinha sido legal da parte dela, mas esta ignorou.

— Deveria tomar cuidado com quem você insulta, ainda mais quando esse alguém sabe que você gosta de quebrar corações, “irmãzinha”.

O tal homem cuspiu sarcasticamente as palavras enquanto as encarava com seus olhos róseos. As garotas gelaram perante seu olhar penetrante. Algumas queriam sair de perto imediatamente, a presença dele tinha se tornado tenebrosa e ameaçadora, mas não com Jasmine. A filha de Gaia sentia o oposto, uma presença doce, atrativa e até mesmo protetora. Não conseguia parar de olhar para os olhos dele, não só por serem fáceis de se afogar, mas sim por lhe serem familiares. Mas Drew era teimosa e não se deixava intimidar facilmente.

— E você deveria ter cuidado com quem ameaça, principalmente se essa pessoa pode...

Drew não conseguiu terminar de falar, pois o estranho carvou algo em seu peito. As outras ficaram chocadas e paralisadas. Era uma flecha preta tão escura quanto uma noite sem lua ou estrelas com direito a blackout. O estranho sorriu sarcasticamente antes de soltar a flecha. A mesma entrou no corpo de Drew como se estivesse sendo sugada por um vortex. Não havia sangue em suas roupas nem nada.

— Espero que isso sirva de lição, “irmãzinha”. O coração dos outros não é brinquedo.

As garotas ficaram pasmas, mas Drew assentiu que estava tudo bem. Elas se dirigiram para uma mesa, o mais longe possível daquele homem, que voltou a beber. Jasmine continuava parada no mesmo lugar. Não tinha medo dele, pelo contrário.

— Deveria tomar cuidado com quem faz amizade, menina, e manter distância desse tipo de amiga.

— É a primeira vez que saio com elas. O senhor é um deus?

— Por que pergunta?

— Por causa daquela flecha, eu acho. E senhor tem os mesmos olhos de Himeros.

O estranho bateu com o copo em cima do balcão e a encarou. Mesmo assim, não havia nada a temer.

— Vejo que conhece o ninfomaníaco. Vai ficar plantada aí?

A filha de Gaia se sentou ao lado dele no balcão. Não sabia o porquê, mas ele não conseguia intimidá-la.

— Como o conhece?

— Ouvi falar dele e dos outros erotes e ele e Eros apareceram na reunião de pais.

— Os deuses fizeram uma reunião de pais?!

— Muita coisa aconteceu no acampamento. O que você é do Eros e do Himeros?

— Irmão.

— Photos?

— Não me confunda com aquele projeto de protagonista de Final Fantasy!

— Anteros?!

— Não, o Papai Noel.

Jasmine custou a acreditar que estava diante do erote sumido. Diferente dos outros dois de incrível beleza, Anteros não se preocupava em ser belo, ou desistira desde que tinha sumido. Seu cabelo preto estava bagunçado feito um ninho de rato, as roupas pretas surradas e tinha cara de mendigo bêbado decadente.

— Por que você sumiu?

— Amar é complicado e parece que cada século que passa as pessoas esquecem o que é isso. – Disse mais para si mesmo do que para ela. – Ah o amor, há alguma miséria maior que o amor? Essa porra já é complicada aí vêm os deuses e fodem tudo! Ou foram os humanos que foderam com tudo? Quem se importa, para mim já deu. – O deus retornou a beber.

— Como assim?

— Eu era o deus do amor correspondido e o vingador do amor não correspondido. Sabe o que isso quer dizer? – Ela negou com a cabeça. – Que eu tinha que lidar com toda a merda dos erotes e da minha mãe.

— Mas você ainda é esse deus.

— É porque ninguém quer o meu posto e meus irmãos são um bando de pau no cu. – Tornou a beber do copo. – Qual o seu nome mesmo, menina?

— Jasmine, senhor.

— Bem, Jasmine, amar é uma merda. As pessoas não valorizam mais, não ligam em amar e serem correspondidas, não, elas ligam para possuir e usar. Alguns amam demais esperando que seu parceiro as ame do mesmo modo e alguns não ligam de usar o amor do seu parceiro para obter vantagens ou só machucá-lo psicologicamente. As pessoas confundem amor com desejo, desejo com paixão, paixão com carinho... E quando o coração se quebra, xingam até a mãe! Isso se não tem tragédia no meio. Ah como eu odeio manipuladores, invejosos e quebradores de corações!

— Er...

— Ainda bem que ainda existem casos como o seu. Estão ficando cada vez mais raros.

— Meu caso?

— Sabe por que você não tem medo de mim? – Novamente, ela negou com a cabeça. – As pessoas que têm medo de mim são aquelas que brincam com o coração dos outros. Não correspondem ao amor dos outros, os manipulam para depois quebra-los em mil pedaços. Já as pessoas que realmente amam não têm medo de mim. Você não tem medo porque você am...

O GodCel de Jasmine começou a tocar. Ela pediu licença para atender. Seu rosto se iluminou ao ver o nome de Nicolas no visor.

— Nicolas! Você demorou!

— Me desculpe, Jazz. A reunião só acabou agora e nem preciso dizer que acabou com todo mundo bêbado.

— Imagino. – Ela riu. – Ainda mais quando os nórdicos se juntam aos germânicos.

— Exata... Como sabe sobre os germânicos?

— Frísio me contou sobre Seaxneat e que os nórdicos têm contrapartes germânicas. Então resolvi pesquisar mais a fundo. São eles seus aliados, não?

— Sim, um deles na verdade. Os outros são mais complicados.

— Têm outros?

— Sim, mais uma mitologia apenas. Eu te explico depois. Frísio voltou?

— Não sei, pelo menos não até a hora em que saí do acampamento.

— Você saiu... Onde você está?! – O tom de voz demonstrava que ele estava visivelmente preocupado.

— Em um bar com Drew e algumas meninas.

— Me passa o endereço, vou para aí ago... Mas que droga!

— Nick, está tudo bem?

— Nada preocupante. Me mande o endereço por mensagem, eu preciso ir. Não fale com estranhos e tome cuidado.

— Está bem.

Ela desligou o aparelho. Anteros a fitava com curiosidade. Ele não tinha ligado de atender o bendito aparelho bem ao lado dele, iria ignorar a conversa se ela mencionado os nórdicos e germânicos.

— Eu ouvi você dizer “nórdicos e germânicos”?

— Sim. Um amigo, que agora é meu irmão, é nórdico, assim como duas das minhas amigas.

— Entendi porra nenhuma.

— Eu fui adotada por Mestre Njord. O filho dele agora é meu irmão.

— Puta merda! Dupla nacionalidade mitológica?

— É.

— Então é bom se preparar, pois os últimos mortais saíram do bar.

— O que?

Ela olhou em volta. Algumas pessoas saíram do bar, sendo assim, as que restaram se revelaram monstros. Assim que os monstros apareceram, Drew e as outras meninas correram para o lado de fora, a deixando para trás. As pessoas que estavam no bar começaram a mudar de forma. Não tardou a virarem monstros e a encararem. Jasmine rapidamente se levantou do banco e pegou seu cajado.

Antes que pudessem atacá-la, ela bateu com a ponta no chão fazendo inúmeras vinhas surgirem. Algumas seguraram os monstros mais agressivos ou que tentassem atacá-la, mas outras apenas decoraram o cenário. Dessas vinhas brotaram flores e novamente Jasmine bateu com a ponta do cajado no chão, fazendo-as desabrochar e liberar uma espécie de pólem. Os monstros um a um caíram desacordados. Ela recolheu as vinhas. Anteros estava perplexo.

— Não vai matar ninguém?

— Por que eu faria isso?

— Deixa para lá.

Anteros, aproveitando que o dono estava dormindo, pulou o balcão para pegar outra garrafa. A porta se abriu em um estrondo, revelando um corcel inteiramente negro. Ele adentrou no recinto seguido por um corcel branco e ambos possuíam pessoas em suas garupas. Eram Frísio, Tyler e Fang. O celta mal desceu do cavalo e correu até a morena, a segurando pelos ombros.

— Jasmine, você está bem? Está ferida?

— Eu estou bem.

— Não está machucada?

— Estou bem.

— Tem certeza?

— Estou bem.

Jasmine estendeu a mão e tocou no rosto do celta, tentando reconfortá-lo. Não importasse o que ele perguntava, ela sempre respondia que estava bem, mesmo que estivesse um pouco tonta, mas não queria preocupá-lo, não mais do que já estava. Frísio segurou a mão da garota que acariciava seu rosto.

— Fico feliz que esteja segura.

— E eu que você tenha voltado.

— Ô Pangaré, vai ficar de rolo à noite toda?! – Perguntou Tyler, fazendo-os lembrar de sua presença. – Eu tenho prova amanhã, caralho!

— Tyler! Fang! Como vocês me acharam?

— Os unicórnios rastrearam o cheiro das garotas que estavam com você. – Explicou Fang. – Nós as encontramos pelo caminho e elas nos disseram onde estava.

— Isso depois de Tyler resolver quase afogá-las e de Fang quebrar o braço da Drew.

— Mas eu dei uma adaga para ela e ela estava consciente. Tinha plenas condições de se defender e eu lutei desarmada para tornar a disputa mais justa.

— Não podia ter só quebrado o braço? – Perguntou o maori.

— Não luto contra quem não possa se defender. Por isso emprestei minha adaga a ela, ela não usou porque não quis.

— Com amigos assim, o necrotério fica cheio. – Comentou o deus tornando a beber.

— Pessoal, este é Anteros. Ele me fez companhia à noite toda.

— E vocês devem ser os amigos e o namorado dela.

— Namorado? – Perguntou Jasmine, Frísio apenas corou. – Mas não tenho namorado.

— Você vai me dar trabalho, né?

Novamente o celular de Jasmine tocou. Era Nicolas. Ela achou melhor colocar no viva voz para todos ouvirem.

— Jazz, onde você está?! Pedi para...

— Nick, está tudo bem.

— Tudo sob controle, Ragnar.

— Ragnar? Espere aí, Tyler?! Você...

— Acabei de chegar, eu, Pangaré e Fang.

— Está tudo bem, Nicolas. – Comentou Frísio. – Ela está segura.

— Frísio?!

— Sua irmã é mais forte do que parece. – Comentou Fang. – Colocou todos os monstros para dormir.

— É o que?! Will não tinha dito...? Deixa para lá, estou feliz que esteja segura.

— Como está mestre Njord?

— Dormindo de tanto beber. Nem ele e nem os gêmeos sabem disso e é assim que pretendo manter. Foi complicado lidar com os aliados e não me refiro somente aos germânicos.

— Você explica amanhã. – Tornou a dizer o celta. – Vamos voltar à embaixada. Marcos e os novatos estão nos esperando.

— Certo, eu preciso ir também.

Nicolas desligou e Jasmine guardou o GodCel. Anteros já tinha saído, levando algumas garrafas e deixado a gorjeta no balcão. Físio e Jasmine montaram em Fiaín e Fang e Tyler em Gaoithe. Demorou algum tempo até retornarem à embaixada. Marcos, Leo, David, Yamato e Mikoto estavam na sala.

— Pelos deuses, você está bem! – Exclamou o maia a abraçando.

— Eu o deixei preocupado?

— Um pouco.

— Agradeça ao David. – Disse Fang. – Ele quem acordou Tyler para te procurar e Frísio voltou por acaso.

— E eu dei apoio moral! – Exclamou Leo.

— Obrigada. A todos vocês.

— Fico feliz que esteja bem. – Disse Mikoto. – Embora não tenha estado aqui na hora.

— Vamos deixar isso para lá. – Tornou a dizer a chinesa. – Tudo que precisamos é de uma boa noite de sono.

— Concordo. De alguma forma, foi um dia cheio para todos nós.

Todos subiram as escadas, indo cada um para seu respectivo quarto, com exceção de Tyler. O maori foi até o quarto de Marcos, onde o maia se encontrava com Leo.

— Marcos, será que posso falar com você?

— Claro.

— Foi mal, cara. Eu fui um babaca com você. Com vocês dois na verdade.

— Sem problema. – Disse Leo. – Você só estava preocupado com a sua amiga. Se fosse a Calypso, eu nem sei o que faria.

— Eu nem sabia o que fazer.

— Muito menos eu. – Disse Marcos. – Cara, acho que não estamos prontos para lidar com essas coisas mesmo.

— Queria que ao menos Sienna estivesse aqui. Ela com certeza saberia o que fazer.

— Ou Parvati ou Helena.

— Bem, é melhor eu ir. 16 fusos é uma porra.

— Posso imaginar.


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Notas finais do capítulo

De Nova York/Long Island até Tauranga são 16 horas de fuso horário. Sim, tive que pesquisar isso.
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Nova Zelândia é o país onde filmaram O Senhor dos Anéis. Tauranga fica a 1h e 30min de carro do Set do Condado, onde viviam Froddo e os hobbits. O set ainda está de pé para os turistas conhecerem. Caso alguém queira visitar a Nova Zelândia, visitem o Condado.
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Tai Chi Chuan é uma arte marcial que hoje é muito popular entre os idosos. Seus movimentos são lentos e quase monótonos de vista, mas na prática é mais difícil do que parece. É como uma meditação em movimento.
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Cancún , quem nunca ouviu falar de Cancún? É um dos maiores destinos turísticos do México, com belíssimas praias.
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Chihuahua é um estado do México que faz fronteira com o Texas e o Novo México. Nele há um grande desfiladeiro com o Rio Conchos logo abaixo usado para trilha, escalada e até mesmo canoagem.
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A China é o país mais populoso do mundo e por conta de seu tamanho, tem uma grande diversidade em seu território.
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Na ásia há vários panteões, muitos deles hoje são praticamente esquecidos e alguns quase extintos. É muito complicado, por exemplo, encontrar boas informações sobre o panteão mongol, é possível encontrar informações de alguns deuses, mas não são muitas. Se alguém conhece algum livro ou site sobre mitologia asiática que não seja a japonesa, a chinesa e a hindu, pode compartilhar.
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A Tailândia antigamente era o Reino de Sião (por isso gato siamês), Sião também englobava o Laos e parte do Camboja. Fica de curiosidade aos interessados.
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O Tibet foi invadido e anexado à China. Se há resquícios de que houveram deuses tibetanos, para isso vou ter que cavar muito atrás de informações.
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A Mongólia (voltando a falar dela) já dominou boa parte da China, a Coreia, tentou dominar o Japão e chegou até a Polônia, isso na era Khan, quando Gengis Khan e seus descendentes eram vivos. O interessante é que os mongóis eram nômades, eles não sabiam administrar cidades, quanto mais um império.
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A Coreia nem sempre foi Coreia, nos primórdios, antes até mesmo da invasão mongol, ela era dividida em três reinos: Sila, Baekje e Koguryo ou Goguryeo. Ainda tinha um 4º Estado chamado Kaya ou Gaya (depende da fonte). Não é importante para a fic, mas fica de curiosidade.
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A Pérsia já foi dona de parte da Índia, principalmente o noroeste.
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Seaxneat é um deus saxão cujo culto foi levado à Inglaterra e por lá se firmou por anos.
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A Inglaterra tinha vários povos, entre os bretões, os gauleses, os daneses, caledônios, anglos e também os saxões, que são povos germânicos. Os saxões e os anglos foram os que tiveram maior influência, tanto que até hoje a os ingleses são conhecidos como anglo-saxões.
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A Saxônia, que antes era um reino no continente, hoje é um estado/província da Alemanha.
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Os povos germânicos, entre eles teutões, saxões e godos se expandiram pela Europa, não é segredo que a língua deles influenciaram o que hoje seria o alemão, o dinamarquês e até mesmo o inglês tem influência. A influência também se estendeu à mitologia, tanto que os deuses nórdicos também eram venerados pelos germânicos.
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Da mesma forma que Zeus é conhecido por Júpiter pelos romanos, Odin é conhecido por outros nomes pelos germânicos, isso varia de povo, região e tempo.
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Atégina é a deusa lusitana (portuguesa) da primavera, da fertilidade, cura e há quem diga da lua. Os lusitanos primeiramente eram influenciados pelos celtas até que houve a expansão romana.
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Baozi é aquele bolinho cheio de coisa dentro. Na verdade é um pão, mas acabamos chamando de bolinho.
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Eu não vou me estender sobre Nanquim aqui por ser uma das maiores atrocidades já cometidas, vou deixar com que pesquisem para tirarem suas próprias conclusões. O Japão não ensina sobra Nanquim nas escolas ou tentam amenizar para não sair como grande culpado. É uma das maiores feridas da China. Só pesquisem o que houve em Nanquim.
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Viracocha é o deus criador da mitologia inca.
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Inti é o deus inca do sol e a figura mais importante do panteão inca.
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Mama Quilla é a deusa inca da lua, da fertilidade e do casamento. Ela também é esposa de Inti.
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Urcaguari ou Urcaguary (esse segundo dá mais resultados) é o deus inca dos metais, das jóias e dos tesouros subterrâneos (interpretem como quiserem). Não há muitas informações sobre ele.
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Nanook é o mestre dos ursos da mitologia inuit. Ele quem decidia se o caçador em questão estava pronto ou não para caçar um urso.
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Photos é o deus da paixão. Algumas versões o colocam como filho de Afrodite, já outras como filho de Íris e Zéfiro, o vento do oeste. Infelizmente ninguém se lembra dele, então não há muitas informações.
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Anteros é o deus do amor correspondido e vingador do amor não correspondido. Seu nome é muito ambíguo, pois pode tanto significar "o amor voltou" ou "anti-eros". Na maioria dos mitos, ele é filho de Ares com Afrodite. Afrodite se perguntava o porquê de Eros não crescer, já que ele sempre ficava na forma de criança. Foi revelado a ela que o motivo era ele sempre ser solitário, ele precisava de alguém com quem pudesse crescer junto, afinal, o amor precisa ser correspondido para poder crescer (e Himeros tinha sido esquecido no churrasco), então foi procurar o Ares, deu pra ele e problema resolvido.
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Ragnar é o personagem da série vikings (quem pescou a referência?). Também é o nome de um deus de uma série de RPG brasileiro chamada Tormenta.
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