Fragmento de Memória escrita por Julia MKL


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/646800/chapter/1

Era um fim de tarde quente ponteado por nuvens coloridas. No horizonte, os tons diversos de laranja brilhavam no céu, anunciando o crepúsculo.

Ela estava sentada em uma cadeira confortável do lado de fora da casa em que morava, uma construção de madeira no estilo oriental clássico, bem como era de seu gosto. Adorava ficar ao ar livre, principalmente ali, onde haviam tantas árvores. Uma borboleta branca passou voando, cigarras cantavam e uma brisa suave balançou seus cabelos. Era tudo maravilhosamente calmo.

– Vovó - Chamei ao me aproximar.

A velha senhora olhou em minha direção e sorriu de forma bondosa. Ela usava um vestido bege simples de mangas curtas, tinha cabelos brancos presos em uma trança longa que caía sobre o ombro e o rosto enrugado. Seu olhar era distraído.

Parei ao seu lado e coloquei uma mecha de meu cabelo escuro atrás da orelha.

– Ouve um tempo, tanto tempo atrás, em que eu não imaginava… - Ela disse olhando para o céu, e a frase permaneceu incompleta. Sua voz era cansada.

– Vovó, logo vai começar o festival - Falei gentilmente.

– Ah, sim, sim. Eu não poderia perder o festival! - Ela riu e sua risada soou com um chiado. Olhou para mim novamente, sorrindo orgulhosa. - Você está tão linda, minha menina. Esse quimono foi dado a mim pelo seu avô, quando éramos jovens. Estou feliz que ele lhe sirva.

Sorri. De fato o quimono que ela me deu era lindo. Delicado e bem cuidado, como se estivesse novo, em um tom de rosa claro com detalhes de flores em um rosa mais escuro. Vovó havia me dado ele ainda naquele ano, em meu aniversário de dezesseis anos alguns meses antes.

Lhe dei a mão e a ajudei a se levantar, acompanhando-a de volta até a casa. Subimos os degraus de madeira com calma e soltei a mão da velhinha quando chegamos a sala, para que ela fosse até seu quarto. Parei em frente ao pequeno altar com a fotografia do vovô sorrindo, envolta por incensos. Ali perto, em um armário, se via a foto da vovó e do vovô juntos, ainda jovens. Ambos de cabelos escuros, sorrindo lado a lado. Toquei a moldura da fotografia com carinho. Vovó era alegre e cheia de energia, mas recentemente parecia cansada. Presumi que fosse saudade.

Já havia mais de um ano que o vovô havia falecido. Antes viviam os dois ali, mas desde então, era só ela. Preocupada, eu havia dito para minha mãe que passaria as férias com minha avó, para fazer-lhe companhia e animá-la. Agora já fazia uma semana, e estava sendo divertido, sim, mas… parecia haver uma certa tristeza sobre a vovó ainda.

A velhinha voltou a sala, trajando um lindo quimono azul claro com desenhos de flores de cerejeira em um tom de rosa que combinava. Tinha os longos cabelos brancos agora soltos e trazia uma escova em suas mãos. Era hábito nosso que eu penteasse seus cabelos. Vovó dizia que sentiria falta disso quando eu voltasse para casa.

Escovei com delicadeza e prendi os fios brancos em um coque baixo, como o que eu estava usando. Estando as duas prontas, saímos de braços dados enquanto a brisa noturna nos acariciava as faces. O cheiro era tão bom, o ar puro me acalmava. De fato, eu adorava esse lugar: a casa, as árvores, o vilarejo… Era bom estar ali.

Sob essa calma, um fragmento de memória me veio à mente. Uma memória de infância, de tanto tempo atrás, antiga, quase esquecida. De onde era ela? Eu não conseguia lembrar por completo. Era como olhar para um canto de uma fotografia e tentar adivinhar o restante que a compõe. Mas mesmo sendo uma lembrança incompleta, a saboreei até nos aproximarmos do festival, quando minha mente passou a focar no que havia a diante.

Eu e vovó nos divertimos por um bom tempo, observando as diversas barracas, saboreando doces típicos juntas e cumprimentando alguns moradores do vilarejo. Era uma noite quente com uma brisa agradável. Músicas alegres soavam ao fundo, e diversas pessoas, jovens e velhas, estavam se divertindo.

Nos sentamos em um banco mais recluso, próximo às árvores que demarcavam a entrada da floresta. Ríamos juntas de uma piada recém contada, e vovó concluiu sua risada com um suspiro. Suspirei também, saboreando o cheiro das árvores atrás de nós. Olhei para o céu, para admirar as tantas estrelas que brilhavam naquele céu escuro. O céu de Nagoya, a cidade onde eu morava, raramente tinha tantas estrelas como aqui.

Foi quando notei algo estranho. A princípio achei que talvez fosse um avião, pois brilhava e se movia, mas então aquela coisa pareceu aumentar de tamanho, ficar mais longo e… O que era aquilo? Parecia… Algo me dizia que era…

Esfreguei os olhos e tornei a olhar, mas aquilo - o que quer que fosse - ainda estava lá, voando no céu. Olhei para minha vó, perguntando-me se ela também era capaz de ver, e a encontrei com uma expressão assustada, olhando para cima, observando fixamente.

Aquela coisa se movimentava no céu com movimentos que me lembravam uma serpente, e então veio em nossa direção, aumentando a velocidade. Quando se aproximou, por um momento pude ver bem. A criatura era comprida, branca com escamas brilhantes e crista verde escura que surgia na cabeça, entre os chifres e seguia ao longo do corpo. Parecia um dragão chines com face que lembrava um lobo. Seu focinho era rosa e os olhos verdes. Era belo e assustador e voava em nossa direção.

Fiquei com o corpo tenso e nos abaixamos, eu e vovó, quando o dragão deu um rasante em alta velocidade, muito próximo as nossas cabeças. Soltei um grito de espanto.

– O que… O que era aquilo?

Meu coração deu um pulo, e aquela velha lembrança voltou a mim, apenas o fragmento dançando em minha mente de forma provocativa. Meus olhos encontraram os de vovó, e a segui enquanto se levantava e adentrava a floresta. Desviamos de diversas árvores e galhos, caminhando apressadamente floresta adentro. Retirei meu geta, o chinelo de madeira tradicional e continuei descalça, tentando ignorar a dor dos arranhões em meus pés provocados pela vegetação rasteira. Um pingo de prudência gritou dentro de mim. Onde íamos afinal? E se acabássemos perdidas ou devoradas? Tais dúvidas giraram em minha mente mas ainda assim fui incapaz de parar. A curiosidade fervia em meu peito, clareando minha visão.

Cansei em certo momento e me apoiei em uma árvore, respirando ofegante. Estava quente e o ar ali dentro daquela mata densa era parado. Gotículas de suor escorriam pelo meu pescoço e grudavam meus cabelos escuros ao rosto. Já devíamos estar vários metros dentro da floresta escura, e não era possível ver quase nada no caminho em que seguíamos. Ainda assim, notei que a vovó andava apressada e sem parar, com mais energia do que jamais a vira. Preocupada, me apressei a segui-la, antes que nos perdêssemos uma da outra no escuro.

Logo, porém, nos deparamos com uma área aberta, iluminada pela luz das estrelas. Havia um rio de águas claras não muito profundas, com margens cobertas por grama e pequeninas flores brancas. A largura era de cerca de quatro metros, mas era difícil dizer de onde a correnteza vinha e para onde ia.

– Eu não sabia que havia um rio aqui - Falei com a respiração entrecortada.

Observamos de um lado ao outro, mas não havia qualquer sinal do dragão. O fragmento de lembrança que vinha me assombrando ao longo da tarde fez-me sentir decepcionada. Havia sido um ilusão? Eu desejava que não, mas a realidade vinha até mim, em uma onda de frustração, dizendo que coisas como dragões não existiam de verdade. Senti lágrimas nos olhos, quando de repente, uma estrela lá em cima pareceu brilhar mais do que o normal - mais do que seria normal para uma estrela.

Prendi a respiração. Lá estava ele, o dragão vinha novamente a toda velocidade. Ao se aproximar do solo, fez um novo rasante próximo ao rio, agitando a água de tal forma que tive de cobrir os olhos ao ser atingida por alguns respingos e pelo vento decorrente do movimento da criatura.

Ouvi uma risada baixa, e depois mais alta. Olhei para a direita e encontrei minha vó com os olhos brilhantes e uma expressão de excitação no rosto. Ela gritou “YAHAHAAA!” enquanto dava um salto e começava a correr pela margem do rio, tentando sem sucesso acompanhar o dragão.

Fiquei um momento paralisada com tudo aquilo, então voltei a mim e comecei a correr atrás da idosa que perseguia o dragão. Com o meu par de getas em uma das mãos, ergui o quimono até a altura dos joelhos para poder me mover mais depressa.

Mais a frente, o rio fazia uma curva e o movimento era seguido pelas árvores da margem, assim, em certo ponto, minha avó sumiu de minha vista. A velhinha corria muito depressa, mais do que achei ser possível para alguém de sua idade.

Logo que cheguei lá, fiquei surpresa com o que encontrei.

Estávamos em algum lugar próximo à casa de minha avó. Eu podia ver o telhado alguns metros acima, após as árvores, mas não foi isso que me surpreendeu. Não havia mais dragão em lugar algum, apenas vovó, ofegante e de olhos brilhantes, com alguns fios de seu cabelo branco soltos. De frente para ela, na outra margem do rio, estava um garoto, mais ou menos da minha idade, com pele muito clara, cabelos escuros até o ombro e franja acima dos olhos. O garoto vestia branco e suas calças eram azuis. Ele era muito bonito, com olhos verdes brilhantes, como os olhos do dragão.

– Kohaku - Uma voz chamou baixinho.

Kouhaku…? Sim, sim, era isso. Como pude me esquecer? Aquele fragmento de lembrança que havia dançado em minha mente durante toda a noite voltou a mim, memórias de tanto tempo atrás, uma história sobre um lugar mágico, onde havia um garoto que também era um dragão. Meu peito doeu. Agora eu lembrava mas… Não havia sido a minha voz que pronunciou o nome.

Me surpreendi quando olhei novamente para minha avó, que encarava o garoto do outro lado do rio. Tudo se encaixava. Uma brisa fria balançou os cabelos sem cor que se soltavam do coque. Vovó tinha lágrimas nos olhos.

– Haku! - Ela gritou.

A velhinha apertou a barra do quimono rosa entre as mãos e o ergueu mais acima dos joelhos enquanto entrava decidida no rio. Do outro lado, o garoto abriu um sorriso.

Então eu finalmente lembrei de onde eu conhecia aquela história. As histórias sobre a casa de banho mágica, sobre bruxas e espíritos e sobre um garoto-dragão, eram as histórias que vovó me contava quando eu era pequena, e que contou para minha mãe tantas vezes antes. Olhei novamente para a velha senhora, incrédula. Não podia ser real, mas de alguma forma… Não eram apenas histórias.

– Chihiro! - O menino-dragão a chamou enquanto se aproximava da margem, parando a centímetros da água. Ele sorria e parecia encantado ao ver a velhinha.

– Haku… - Vovó agora chorava, as lágrimas escorrendo por seu rosto enrugado sem cessar.

Tentei chamar por ela, sussurrar seu nome, mas não consegui. Imaginei que ela poderia cair, se machucar e outras coisas terríveis poderiam acontecer a velha senhora, mas conforme avançava, eu reparei que ela parecia rejuvenescida a cada passo. Tão forte e determinada.

– Eu… - Chihiro deu um soluço e diminuiu a velocidade. - Eu me casei. Tive uma filha e dois netos. Eu fui feliz, amei meu marido. Mas…

Eu estava sem ação, não sabia o que fazer. Me deixei levar pela beleza do momento, observando tudo com atenção. O garoto - Kohaku - entrou na água e caminhou em direção a ela.

– Tudo bem - Ele disse.

– Mas… Eu nunca esqueci. Você disse que nos reencontraríamos e eu esperei a vida inteira - Todo o corpo de minha avó tremia com o choro. - Eu esperei todos os dias.

Nesse momento, Kohaku e minha avó estavam frente a frente no meio do rio. Ele era uns cinco centímetros mais alto do que ela, que mantinha as costas eretas. A água batia na coxa de ambos e Chihiro soltou o quimono, mantendo as mãos livres ao lado do corpo. Eles se olhavam nos olhos com ternura. O garoto secou as lágrimas da velhinha.

– Eu sei.

– Tive tanto medo de que fosse morrer antes que esse dia chegasse, Kohaku - Sua voz agora fora quase um sussurro.

Ele riu suavemente e pegou as mãos frágeis e delicadas da velha senhora.

– Mas eu prometi, não foi?

Chihiro riu e encostou sua testa na do garoto. Ambos fecharam os olhos e, sutilmente, minha avó foi rejuvenescendo. Os anos voltaram, as rugas sumiram e os cabelos escureceram. Num instante, ela era uma menina outra vez.

Quando abriu os olhos, vovó ficou surpresa ao se ver jovem outra vez. Ela olhou incrédula para as próprias mãos, para o próprio corpo e em seguida abraço Kohaku, feliz, gritando seu nome. As mãos do garoto envolveram sua cintura e os dois giraram rindo juntos, como se dançassem uma música só deles.

Chihiro então virou-se para mim, mas sem largar a mão do menino-dragão. Ela sorriu de forma carinhosa e eu compreendi sem que nada precisasse ser dito.

– Hiyori… - Meu nome soou diferente. Sua voz era suave e jovial.

– Tudo bem, vovó. Eu entendo - Lágrimas vieram aos meus olhos. Compreender não fazia aquilo ser menos doloroso.

A garota me observou por um tempo enquanto segurava a mão de Kohaku, que olhava para ela. Só agora eu era capaz de notar que havia uma certa luminosidade envolvendo-os, era o casal que iluminava o rio e as árvores. Chihiro tinha lágrimas nos olhos, mas seu sorriso era feliz. Ela acenou para mim com a cabeça, e o menino-dragão fez o mesmo olhando nos meus olhos. Então a menina voltou a envolver o pescoço do garoto-dragão com os braços.

– Haku? Vamos ficar juntos?

– Sim - Ele sorriu.

– Você promete?

– Eu prometo.

Os dois fecharam os olhos e a luz que os envolvia aumentou, até que fosse impossível enxergar qualquer coisa. O rio ficou agitado e começou a se mover de forma anormal. A água envolveu Chihiro e Haku, e antes que eu pudesse fugir, uma onda se ergueu e me envolveu também.

Olhei para cima, para o céu, desesperada. Meu corpo todo estava submerso. Soltei um grito que subiu pela água em forma de bolhas. Não havia o que fazer, eu não sabia nadar. Fechei os olhos e perdi a noção do mundo a minha volta. Tive a impressão de sentir alguém acariciando meus cabelos e meu rosto de forma carinhosa, da mesma forma que minha avó fazia.

Quando abri os olhos e pude respirar novamente, eu estava sentada na beira do rio, com o quimono encharcado. A água do rio se acalmava, e não havia sinal de vovó, nem do garoto. Tudo estava escuro e silencioso, e eu não fazia ideia de como havia parado ali. Me levantei e olhei para o rio, sentia em meu coração que minha vó estava bem. Ela não estava aqui, mas estava onde deveria estar. Chihiro era parte do rio agora.

Lágrimas encheram meus olhos e transbordaram, escorrendo pelo rosto.

No entanto, ouvi algo e esperei surpresa e atenta. Em um piscar de olhos, uma criatura saiu da água de forma barulhenta e em grande velocidade.

Lá estava o dragão branco, voando pelos céus.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Weee o/ Gostaram? Espero que sim. Faz um tempo que eu tive essa ideia, mas demorou pra escrever ;u;Bem, vamos a alguns pontos importantes:
- Hiyori é criação minha.
- Chihiro falou que teve uma filha e dois netos, isso pois Hiyori tem um irmão mais novo queee não apareceu na história. Só achei interessante comentar ^^
- Após os acontecimentos aqui escritos, Hiyori voltou pra casa vazia, ficou algumas horas olhando para o céu e pensando no que havia acontecido. Depois de um tempo ela escreveu o que viu. Deve ter sido complicado explicar o sumiço da avó... Que desculpa vocês imaginam que ela deu?
Se gostarem mantem reviews. Obrigada por ler :>



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Fragmento de Memória" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.