Saia do Casulo! escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 6
Em Casa


Notas iniciais do capítulo

As descrições relativas ao "chá das cinco" na residência dos Souzanitzky e à influência psicológica das cores na decoração do quarto de hóspedes ocupado por Saya foram pesquisadas minunciosamente (e que trabalheira!).



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"De onde te vem, responde, essa tristeza infinda

Que galga, como o mar, o negro e nu rochedo?"

Charles Baudelaire - Semper Eadem

- Aquele Jonathan...! - resmungou Abraham em tom zangado. Guiava seu carro pela King's Road, a avenida em frente ao mar que é o cartão de visitas de Brighton, tendo de um lado a majestosa fachada dos elegantes prédios residenciais, hotéis e antigas mansões e, do outro, os píeres e as tranquilas águas azuis do Canal da Mancha. - Quer dizer que você ouviu tudo o que ele me falou ao pé do ouvido?

- Ouvi cada palavra - respondeu Saya com a costumeira frieza na voz. - As pessoas gostam de ressaltar o quanto sou diferente delas. Apesar disso, ou por causa disso, vivem se esquecendo da audição supersensível de uma chiropteran.

- Então é assim que aquela gente te trata? Como coisa e não como pessoa?

- Estou acostumada. Tem sido assim desde que... - ela se interrompeu e calou de súbito.

- Desde que o quê? - insistiu Abraham.

Saya hesitou. - Desde que me conscientizei do que sou, e de que não há lugar para mim no mundo dos humanos. - Um longo suspiro escapou de seus lábios. Tinha os olhos opacos e mirava o horizonte distante onde o azul do céu e o azul do mar pareciam fundir-se numa unidade.

- Como você foi cair nas mãos dessa gente da Escudo Vermelho?

- É uma longa história.

- Terá todo tempo para me contar. Olhe, estamos chegando em casa - minha casa.

Abraham parou o MG-TC diante do grande portão de cobre reluzente com uma pequena guarita de tijolo de uma mansão de dois pisos (Saya notou quão bem cuidadas eram as heras que cobriam os altos muros), acenou com a cabeça para o guarda na guarita, e o portão foi aberto. Abraham manobrou o automóvel para percorrer a pequena estrada de chão batido passando pelo bosque do parque que circundava a mansão, subindo a rampa que dava acesso à porta principal. Estacionou na garagem, que acomodaria com facilidade doze carros, desceu e abriu a porta para Saya; ela desceu do veículo sem a ajuda dele, tendo a katana embainhada nas costas e o embrulho em plástico na mão esquerda. Abraham, pegando o walkie-talkie e a pasta de Saya, encaminhou-se para a escada de pedra da entrada principal, e Saya o seguiu.

Ao perceber o ar meditativo da moça, que perscrutava tudo à sua volta com um olhar frio, Abraham comentou: - Grande, não é? Veja, Saya, tudo isto é uma só propriedade. O parque arborizado que rodeia a casa tem dois hectares, com árvores frutíferas e de ornamentação, quadra de tênis, quadra de squash, estábulo, canil, gatil e uma piscina térmica coberta de 25 metros. Herdei tudo de um tio-avô que eu nem sabia que existia, Sir Joseph Andrade de Mattos Mocatta, um prócer da comunidade judaica britânica. E um patrimônio suficiente para viver de renda. De outro modo seria impossível que um cara como eu, um professor universitário, fosse dono de uma mansão em Brighton. Saya?

O brilho nos olhos de Saya intensificou-se. Disse: - É que eu cresci em um lugar parecido com este, só que maior, bem maior. Era tão grande que chamavam de "o Zoológico".

Abraham fez um muxoxo. - Assim você me humilha.

Saya olhou para ele, espantada.

- Sério? Não tive essa intenção...

Abraham sorriu. - É brincadeirinha. Você não tem muito senso de humor, né?

- Faz muito tempo que não tenho motivo para rir - Saya redarguiu defensivamente.

- OK - disse o brasileiro, subindo a escada de frente à porta flanqueada por um par de estátuas de gatos de pedra. - Vamos entrar que a mamãe já está nos esperando.

- Sua mãe?

- É, antes de voltar pra te buscar no hospital tratei de telefonar e avisar à mamãe que eu estaria trazendo uma amiga pra passar uns dias conosco. Não precisa se preocupar, tudo o que ela sabe a seu respeito é que você é estrangeira, que acaba de sair do hospital e que necessita de repouso. De mais a mais, ela é brasileira e só arranha o inglês, assim podemos conversar, só você e eu, com uma boa margem de amplitude.

Abraham deteve-se para tocar na capa da mezuzá afixada ao umbral da porta com as pontas dos dedos e depois os beijou, conforme o costume judaico.

- Menos na frente dos criados, dos velhos criados de família de Sir Joseph. Eles entendem e falam inglês muito bem.

No espaçoso hall de entrada com teto em vitrô colorido, foram recebidos pelo mordomo Fitzgibbon e pela governanta Miss Updike: um irlandês alto e esguio, mas muito forte, com barba preta quadrada e feições pálidas distintas, olhos azuis, envergando camisa branca com colete cinza, gravata e calças pretas, e uma mulher loura, que aparentava ter cinquenta e cinco anos, elegante, de vestido cinza-grafite até os tornozelos. Eles cumprimentaram respeitosamente o patrão e sua exótica convidada, e Abraham entregou-lhes o chapéu e o pesado sobretudo, além do volumoso walkie-talkie e da pasta de couro marrom que trazia para Saya.

Os solícitos serviçais, com o máximo de polidez, ofereceram-se para guardar o embrulho em plástico e a katana de Saya. Num primeiro momento a moça fuzilou-os com o olhar, mas, logo em seguida, agradeceu e recusou educadamente.

- Venha - disse Abraham, tomando Saya pela mão. - Mrs Pinheiro Souzanitzky está esperando por nós dois.

Ele levou Saya para a vasta sala de estar, ornamentada com tapetes de seda persas. Do teto alto pendia um belo lustre dourado com miríades de cristais pequeníssimos. As paredes revestidas de papel em tons pastéis com listras finas exibiam luminárias decorativas elétricas em forma de botões de rosa entrelaçados, e quadros de Van Gogh e Goya. Elegância e sofisticação irradiavam das cornijas de lareira de pedra. No meio de um quadrado formado por dois jogos de sofás em tom de vinho havia um tapete de Hereke estampado com motivos florais em cores quentes - e havia gatos.

- Meus melhores amigos, meus irmãos e meus filhos - declarou Abraham, orgulhoso.

Saya estava perplexa. Jamais vira tantos gatos. Grandes e pequenos, pretos, brancos, fulvos, amarelos, cinzentos, tigrados, vaquinhas e fêmeas tricolores; gatos de pelo curto ingleses, gatos Bombay, abissínios, siameses, persas, sagrados da Birmânia, angorás e Ragdoll. Eles estavam cochilando nos sofás, nos tapetes, acomodados, ronronando, diante do fogo da lareira, em cima do massivo console do aparelho de TV Tele-Tone, saltitando e pulando por entre os livros na enorme estante de mogno branco, deslizando entre o secular relógio alemão de mesa e o par de castiçais de prata de lei. A chegada inopinada de Saya causou grande rebuliço no meio dos graciosos felinos, que se eriçaram todos na presença da chiropteran. Alguns se esgueiraram para seus esconderijos e postos de observação preferidos, debaixo dos móveis, mas um lustroso gato negro da raça de Bombay e um grande angorá branco permaneceram em seus lugares, com as patas cruzadas, encarando desafiadoramente a invasora de seu território, olhinhos rebrilhando por causa da camada de tapetum lucidum que os revestia por dentro e que dava aos mesmos a aparência de reluzentes pares de perídotos verde-limão.

- Vão se acostumar com você - afirmou Abraham, gentilmente afagando os belos felinos. - Gatos possuem a habilidade de filtrar a energia negativa do ambiente e devolver a positiva, você sabia?

Da ampla varanda envidraçada veio com passos rápidos uma bonita senhora sexagenária, relativamente alta (dez centímetros a mais que Saya), de olhar calmo e firme. Os finos cabelos castanho-escuros parcialmente cobertos por um lenço estavam começando a ficar grisalhos, e seus belos olhos verdes se sobressaíam em sua face envelhecida pelos anos, de tez muito branca. Vestia uma saia longa verde-musgo, reta, na altura dos tornozelos, e uma blusa estampada de mangas compridas. O sorriso era caloroso e jovial ao saudar Abraham, em português, mas desapareceu logo em seguida quando viu a jovem e linda acompanhante de traços mongólicos com uma repulsiva capa de náilon roxo escura, salpicada de manchas vermelhas, ferrugentas, de sangue seco, carregando um sabre longo japonês nas costas.

- Mãe, esta é Saya Otonashi, a amiga de que lhe falei - disse Abraham, a título de apresentação. - Saya, esta é minha mãe, Mrs Pinheiro Souzanitzky... a "dona" da casa.

E acrescentou apressadamente, em tom de desculpas: - Tivemos um ligeiro acidente no caminho, mas agora está tudo bem.

- Oh! - A mãe de Abraham exclamou suavemente, olhando para o rosto impassível da garota oriental com uma preocupação genuína. Tão rápido como se fora, o sorriso reapareceu. - Sou Maria Clara Pinheiro - ela disse, em inglês, estendendo a mão. - Meu filho e eu estamos felizes em recebê-la como hóspede, Saya.

Saya hesitou, e então apertou a mão que lhe era estendida, cumprimentando a senhora com um acenar de cabeça.

- Sabe, Saya, a mamãe se orgulha do sobrenome de solteira dela - explicou Abraham em inglês. - Apesar de assinar o nome completo, com o sobrenome do falecido marido, ou seja, meu falecido pai. É que ela descende de duas famílias cristãs-novas, criptojudias ou "marranas", Pinheiro e Moraes Lopes, que, por mais de três séculos, mantiveram suas tradições sefaraditas em segredo, no interior de Minas Gerais, Brasil, e de Trás-os-Montes, Portugal, exibindo apenas uma fachada de católicos devotados para a "Santa Inquisição" e resto do mundo. Até hoje a mamãe acende as velas de Shabat, antes do pôr-do-sol de sexta-feira, embora permaneça uma cristã fiel em muitos outros aspectos. Aliás, o papai também possuía sangue sefaradita, apesar de ser neto de judeus russos, mas eu já te contei, né?

"Daqui a pouquinho", pensou Abraham com ironia, "vou dissertar verbalmente sobre a saga de Abraão Lopes, que foi um dos pioneiros judeus portugueses que em 1654 fugiram do Recife, Pernambuco, Brasil Holandês, no navio Valk e foram aportar na então Nova Amsterdã, hoje Nova York. Como se uma chiropteran tivesse algum interesse em ouvir uma preleção sobre genealogia humana!"

A mãe de Abraham, Maria Clara, falou com ele em português. Abraham respondeu-lhe. Depois se voltou para a impassível Saya, e disse:

- Saya, é melhor eu levar você até o seu quarto. Já está quase na hora do chá das cinco.

Os quartos de hóspedes ficavam no andar superior, e seu acesso se fazia por intermédio de uma escada dupla ou do pequeno elevador no canto da sala. Abraham, a fim de não cansar Saya ainda mais, usou o elevador. Ele a levou até o quarto que seria o dela.

O quarto era retangular e razoavelmente amplo, em tons de lilás, rosa e verde. As paredes foram revestidas de papel de pétalas de rosas vermelhas sobre fundo cor de lavanda na parte de cima e pintadas de verde bem claro na parte de baixo. Do teto pendia um lustre de três cúpulas com pingentes de cristal. A cama de solteiro ladeada pelo par de criados-mudos em madeira teca ficava de frente para a enorme janela panorâmica com vista para o mar. As cortinas duplas, uma na cor salmão e a outra, voal, branca com laços vermelhos, o espelho veneziano, o tapete violeta, o conjunto de cama lilás, o guarda-roupa marfim e os demais móveis em cores neutras, além de várias pinturas de Monet, completavam a decoração do aposento. Seu efeito total era o de um ambiente equilibrado, de bem-estar e, ao mesmo tempo feminino, relaxante, claro e alegre.

- A escolha das cores utilizadas na decoração é decisiva para criar uma psicosfera agradável e influenciar o estado de espírito dos hóspedes no sentido positivo - disse Abraham. - Então, Saya, você gostou? No seu caso, eu pensei que a combinação de lilás, verde e rosa teria um efeito a um só tempo calmante, relaxante, transmitindo frescor, harmonia e equilíbrio, e paz e amor. Ah, e os detalhes em vermelho. No meu íntimo, não sei por que, eu achei que você gostava de vermelho. Se não, a gente pode perfeitamente ir ver os outros cômodos de hóspedes. Que tal?

- Por mim, estou satisfeita - ela replicou. Seu olhar achocolatado esquadrinhou o quarto, impassível. Entrou, com um passo cauteloso e desconfiado tal como um gato em estado de alerta, depositou o embrulho em suas mãos sobre a penteadeira de cor marfim encimada por espelho fixo em cristal bisotê, depois tirou das costas a espada embainhada e deixou-a sobre uma poltrona coberta de tecido bege.

Rosas vermelhas! Como é que ele sabia?

- O quarto tem closet e banheiro privativo, com ducha quente e fria, além de uma bela banheira que refaz qualquer pessoa - Abraham explicou. - Tudo elétrico. Nada de aquecedor a gás ou a lenha. - Ele deu uma risada curta. - E pensar que o chuveiro elétrico foi inventado no Brasil, há vinte e um anos, porque as maiores cidades careciam de rede de gás. Agora, se você prefere ter o prazer de se banhar num legítimo ofurô de madeira segundo o milenar ritual japonês, posso te levar num banheiro fora do quarto e de uso exclusivo. Com todo respeito, claro.

- Não, não. Tudo bem. - Foi a resposta lacônica de Saya. Naquele momento o que mais queria era ficar a sós. Seu olhar pousou no embrulho sobre a penteadeira. Tinha sede - e não era de água.

O geógrafo caminhou em direção à porta do quarto e, antes de sair, virou-se para Saya, pigarreou e disse: - Fique à vontade, eu vou providenciar roupa limpa pra você vestir.

Quando Abraham saiu, Saya precipitou-se sobre o volume embalado em plástico, que avidamente começou a desembrulhar. Era, tal como suspeitava o humano, uma garrafa térmica. Feita em metal cromado com capacidade para um litro. Saya abriu-a, aspirou o aroma inebriante do rubro líquido viscoso, tépido, que havia no interior da mesma. Sangue! Veículo da força vital e sustento da vida! Sua sede era tamanha que emborcou a garrafa e bebeu com sofreguidão 450 a 500ml, mais ou menos a quantidade que se tira de uma pessoa quando se doa sangue.

Embora as transfusões recebidas no Hospital St. Mary tenham sido suficientes para restaurar minhas forças, o combate contra Coleman me esgotou rapidamente, de novo. Meu corpo é praticamente imortal, tem força, reflexos, velocidade, fôlego e agilidade sobre-humanos, e pode regenerar-se espontânea e instantaneamente de qualquer ferimento. Contudo, sem beber sangue fresco, humano ou animal, este corpo perde por completo as forças, tornando-se incapaz até mesmo de andar, quanto mais de lutar. Não sei como fui capaz de resistir até agora.

Depois de saciada sua sede bestial, de chiropteran, Saya tornou a fechar cuidadosamente o recipiente, embalou-o na sacola de plástico opaco e recolocou-o em cima da penteadeira. Dos cantos de sua boca delicada e carnuda escorriam finos filetes escarlates, deslizando para o seu queixo pontudo. Saya os lambeu e limpou os lábios de coral rosado com as costas da mão. Sentia-se forte de novo. Era sangue fresco, isto é, coletado no máximo quatro horas atrás. Vitae. Naturalmente que, em matéria de nutrição, não podia se comparar com o líquido vital jorrando quente e vermelho direto de uma veia jugular, ou artéria carótida - Diva, sua irmã gêmea, que o dissesse - , mas, ainda assim, Saya recusava-se a sugar o sangue de humanos, não importando o quão comprometida ficasse sua capacidade de combate corpo a corpo, por receio de perder o controle e matar as pessoas, tal como os chiropterans que caçava sem piedade. Tal como os vampiros mitológicos. Enquanto pensava, via a si própria e a Diva cravando seus dentes nos pescoços de seus respectivos chevaliers e sugando-lhes o precioso vitae que era simultaneamente fonte de nutrição e o catalisador imprescindível para o despertar das rainhas chiropterans de seu período de hibernação a cada trinta anos. Sim, rainhas transformavam humanos selecionados em chevaliers imortais que serviam para alimentá-las com fluido vital sempre que quisessem - evitando predar os meros mortais - , além de assegurar a própria reprodução. Apertou os lábios. Se ao menos ainda dispusesse de um chevalier... Mas não. Não mais. Tampouco desejava formar novos chevaliers para si. Engendrar um "cavaleiro" significava tirar a vida de um ser humano, fazê-lo renascer como um monstro congelado no tempo. "Como nós", ela refletiu.

Bloodlust! A fome e sede por sangue que ela, como chiropteran, compartia com sua irmã e os seguidores desta e as feras teratoides criadas por eles era muito mais instintiva e imperiosa do que mera fome e sede que os mortais sentiam por comida e bebida. Saya o sabia. Quantas vezes, no auge da luta, ela vira os monstros inumanos drenarem o sangue das vítimas até matá-las e, não obstante, continuarem insaciáveis! Era mais que subsistência pura e simples; para eles, era um vício racial incurável, fonte de tamanho êxtase de prazer que obliterava toda razão. Em comparação, os vícios humanos do álcool, maconha, morfina, cocaína, heroína, haxixe ou ópio pareciam tão inofensivos quanto inócuos. Por outro lado, o sangue das rainhas chiropterans poderia vir a se tornar uma droga infinitamente mais poderosa e desejável do que quaisquer outros alucinógenos existentes no mundo humano. Saya estremeceu só de pensar nisso.

É por isso que chiropterans e humanos jamais poderão coexistir. Nós não podemos coexistir lado a lado com os humanos; é o mundo deles, não o nosso. Os chiropterans corromperiam a sociedade humana. Por isso eu preciso destruir a todos da minha espécie, minha irmã inclusa, e por fim matar a mim mesma.

Saya descalçou as botas pretas, logo a seguir despiu a capa roxa de náilon e a pendurou no encosto de uma cadeira. Com os pés descalços e usando apenas uma anágua de cor bege clara, encaminhou-se para o banheiro, abriu a porta e entrou. O banheiro era grande, ostentando no piso e nas paredes belíssimos azulejos azul-turquesa, ou verde-água, decorados por motivos marinhos. A banheira vitoriana branca posicionada estrategicamente debaixo da janela permitia ao usuário desfrutar de uma indestrutível vista dos esplendorosos jardins da mansão. Todavia, Saya não tinha a intenção de fazer uso de tal aparelho, pelo menos por ora. Em vez disso, descartou a anágua, tirou o sutiã e a calcinha, e, completamente nua, entrou no cubículo do chuveiro. Abriu a torneira e se colocou sob a ducha, deixando que o jato de água quente envolvesse todo seu corpo numa cascata prazerosa que lhe transmitia uma sensação de alívio físico e mental. Sentia-se tão relaxada! Apanhou o sabonete Lux na saboneteira ao lado da torneira e esfregou na esponja, depois a passou pelo corpo inteiro. "Estou tomando banho de espuma com o sabonete preferido das estrelas do cinema", ela pensou, não sem uma certa dose de ironia.

Cerca de três minutos após Saya entrar no chuveiro, sua audição ultra-aguçada captou os batimentos cardíacos de Abraham, que vinha pelos corredores, e seu olfato igualmente apurado detetou as moléculas do cheiro dele (como chiropteran, podia farejar sangue a um quilômetro de distância, e seu sentido de olfato só perdia para o da mariposa-imperador). Não se surpreendeu, portanto, ao ouvir as batidas na porta do quarto, nem a voz forte do cientista chamando por ela - depois de dez minutos de chuveirada quente.

- Saya! Saya! - ele disse, batendo na porta. - Trouxe-lhe roupas limpas. Posso entrar?

Ela desligou o chuveiro e saiu do box. Nua, ainda pingando água quente, entreabriu a porta do banheiro e repondeu numa voz alta e clara: - Entre.

Abraham girou a maçaneta da porta do quarto, abriu-a e entrou no aposento. Trazia em suas mãos um vestido cuidadosamente dobrado. Supreendeu-se por não encontrar Saya (e não dedicando senão uma rápida olhadela à ominosa garrafa térmica enrolada em plástico opaco sobre a penteadeira), mas em seguida reparou na porta entreaberta do banheiro. Disse: - Me perdoe, Saya, por interromper seu banho. É que eu não sabia com certeza se no closet havia algo adequado para você vestir. Daí que me lembrei deste vestido, ele é de uma prima em segundo grau que tem a sua altura e o seu porte, então, com toda probabilidade, vai lhe cair bem. Olhe, eu vou deixá-lo dobradinho aqui, em cima da cama, OK?

- Eu agradeço - a voz de Saya replicou secamente.

- Disponha. Bem... - ele pausou, ponderando com seus botões se deveria verbalizar o pensamento que lhe veio à mente; por fim concluiu, com um sorrisinho bobo: - Na próxima vez, se quiser um banho de ofurô, ou se quiser que eu esfregue as suas costas, por exemplo, não hesite em me pedir.

A resposta de Saya foi um sabonete Lux branco arremessado na direção de Abraham pela porta do banheiro entreaberta, seguido de uma esponja. O jovem brasileiro irreverente desviou-se a tempo do primeiro projétil, mas não do segundo. Sorrindo ainda mais largamente, ele disse: - Não esqueça da hora do chá, Saya-san. Até breve!

Apanhou o capote roxo de náilon pendurado no espaldar da cadeira. "Isto vai para a máquina de lavar", pensou Abraham.

Saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. No corredor, meneou a cabeça, pensando: "Shemá Israel! Não sei o que me levou a falar aquilo pra ela. Pelo menos, é bom saber que até uma garota chiropteran tem sangue nas veias... e não é sangue de barata!"

Respirou fundo, soltou um longo suspiro e entrou no elevador para descer. "Saya, não faz ideia do quanto eu gosto de você."

Entrementes, dentro do banheiro, Saya enxugava-se com uma toalha felpuda e mirava-se no espelho móvel acima da pia, que permitia a uma pessoa ver-se por inteira. Seu corpo mignon e esguio, aparentemente frágil e delicado, de pele ambarina, cintura fina, quadris curvilíneos, seios fartos e aveludados, com os mamilos cor-de-rosa, aparecia refletido no cristal frio. Seus cabelos curtos e pretos estavam lisos e escorridos, emoldurando o rosto triangular de mocinha de dezesseis anos. Por razões desconhecidas pela ciência atual, as fêmeas chiropterans não sofriam de degenerescência física e mental como as humanas, mas permaneciam com a idade fisiológica de dezesseis anos. Saya o sabia. Noventa e nove anos depois, ela e Diva ainda só tinham dezesseis anos! Tinha plena consciência do quão atraentes, desejáveis sexualmente ela e sua irmã podiam ser para um bom número de machos (e ocasionalmente fêmeas) humanos. Possuía ainda, como chiropteran, a habilidade de ver a aura - o campo bioelétrico - das pessoas, sendo assim capaz de descobrir os cambiantes estados de espírito dessas mesmas pessoas.

Enrolou-se na toalha e saiu do banheiro. Foi ao closet, escolheu calcinha e sutiã, e vestiu-os. Após deixar o closet ela baixou os olhos para o vestido que Abraham lhe trouxera, pegou-o de cima da cama e inspecionou com curiosidade. Era um modelo leve e elegante, em cetim de seda cor-de-rosa claro, com um decote bateau e babados na barra, na altura dos joelhos. Christian Dior, talvez? Depois de três anos usando capas de náilon em cores sombrias, tristes...

Saya vestiu-se e calçou-se com alguns movimentos rápidos. O espelho veneziano da parede lateral mostrou-lhe a imagem de uma bela humana muito suave, delicada e feminina. Um par de grandes olhos castanhos futae, amendoados, fitava-a do outro lado da superfície espelhada de modo inquisidor. Uma estranha no espelho. Aquele vestido, aquelas acomodações de luxo traziam-lhe à lembrança sua vida anterior na propriedade da família Goldschmidt, então conhecida como "o Zoológico", em Bordeaux, na França, onde havia crescido. Onde, durante o primeiro meio século de vida, desfrutara a doce ilusão de ser humana, apenas uma jovem humana - e não um monstro que bebe sangue - e de ter uma família e amigos. Ela, a xodozinho da casa, o "tesouro" de Monsieur Joel Goldschmidt, nascida em berço de ouro e criada a pão-de-ló.

Até que, naquele fatídico ano de 1883...

"Meu mundo de mentira desmoronou... Um 'experimento', nada mais... Igual a ela."

Por uma fração de segundo, Saya viu no espelho outra imagem sobreposta à sua, idêntica, porém marcada por frios orbes de íris vermelhas e pupilas verticais como riscas pretas, e uma boca cruel de lábios carmesim. E essa face bela e terrível estava toda respingada de sangue, do sangue de suas vítimas. Eu sou você. O seu verdadeiro "Eu" interior.

"Sim, eu sei", ela ponderou consigo, encarando seriamente seu próprio reflexo, que, de rosto limpo, íris castanhas de pupilas redondas e lábios róseos, devolvia-lhe o olhar tranquilo. "Pois eu conheço bem os meus erros, e o meu pecado está sempre diante de mim. Salmo 51, versículo três. E a existência dos chiropterans é o meu pecado!"

Dali a pouco Abraham estava de volta. Tal como antes, os aguçados sentidos vampíricos de Saya captaram-lhe a aproximação, o cheiro e as batidas de coração ainda nos corredores. Ela aguardou tranquilamente que ele batesse à porta do quarto, e então lhe deu permissão para entrar.

- Saya! - Abraham exclamou baixinho. Também estava de banho tomado e roupa limpa. Extasiado, contemplou a beldade que se encontrava diante dele. O vestido justo ressaltava as curvas do corpo pequeno, embora sexy e sensual, da rainha chiropteran, e o rosa pink formava um belo contraste com a pele dourada como um pêssego amadurecido ao sol do Japão. - Saya!

- Está se repetindo - ela observou, lacônica. Abraham não fazia ideia de que Saya via as cores, a forma e o tamanho do seu campo áurico tão facilmente como podia enxergar no escuro ou detetar o calor dos corpos dos animais homeotérmicos; podia ler a sua aura, as emoções e os sentimentos nela refletidos, com a facilidade com que leria um livro aberto em inglês ou japonês. Pergunta: saberia interpretá-los? Turbilhões, variações bioenergéticas de todos os tipos?

- Desculpe. - Abraham sorriu, um tanto sem jeito. Seu olhar percorreu casualmente todo o aposento, e então recaiu sobre a penteadeira com espelho na cor marfim: lá estava pousada, ainda, a garrafa térmica enrolada em sacola plástica opaca, mais enigmática do que nunca. Disse: - Melhor guardar aquilo fora das vistas dos criados... Especialmente se for o que eu penso que é.

Saya guardou rapidamente o embrulho numa gaveta da cômoda. Depois disso, Abraham lhe tomou a mão, puxando-a. - Venha, Saya, que a mamãe está nos esperando.

A jovem seguiu-o sem argumentar, deixando-se conduzir por ele para o corredor (a porta do quarto foi fechada). Enquanto segurava sua mão, Abraham indagou, em voz baixa, temendo que alguém pudesse ouvir: - Saya, eu sei que não é da minha conta, mas... Aquilo é uma garrafa térmica, não é? E o que tem dentro não é café nem chocolate, estou certo?

- É sangue, sangue humano - Saya respondeu quase num sussurro. - Proveniente de doadores voluntários, todos membros da Escudo Vermelho.

- É, eles cuidam muito bem da sua - como foi que o Jonathan a chamou? - "arma letal".

- É isso aí.

Ele levou Saya até a escada que conduzia para o pavimento térreo. - Importa-se de descer por aqui? Ou prefere usar o elevador?

- Pode ser pela escada mesmo - ela respondeu.

Abraham pigarreou. - Mas você pode comer comida humana, não pode?

- Posso comer uma ampla variedade de alimentos - ela redarguiu.

- Ótimo, então. - Abraham sorriu triunfal e apanhou o cotovelo da garota. - Vamos, Saya.

Enquanto descia a grande escada de braço dado com Abraham, Saya percebeu que uma estranha sensação, a um só tempo deliciosa e amedrontadora, principiava a despontar dentro de si. Era tal qual uma chama, ou faísca de eletricidade, que se acendia dentro dela, em seu íntimo, fazendo-a sentir-se viva de uma maneira que há muito tempo não experimentava, cada vez que se permitia ser tocada por aquele homem - aquele humano. Aquilo a amedrontava precisamente porque a fazia sentir-se bem! Fazia três ou quatro décadas que não deixava que um ser humano - e muito menos um macho - a tocasse, ou sequer se aproximasse dela. Desde que ele se fora. Seu primeiro e único amigo, depois seu primeiro e único chevalier. Morto. Liquidado. Tinha sido na Rússia pré-revolucionária, às vésperas do "outubro vermelho". Maldito Rasputin! Isto a levara a fechar-se, como numa concha protetora, reprimindo o resquício de humanidade que havia em si e focando-se tão somente na missão para a qual os homens da Escudo Vermelho - seus novos tutores, os herdeiros do nome Joel Goldschmidt - a treinaram: exterminar todos os chiropterans do mundo. "Para isso não posso ter coração", ela repetia mentalmente para si. Agora, porém... Que tipo de pessoa era esse Abraham para perturbá-la com pensamentos e sentimentos que ela julgava mortos, ou, pelo menos, esquecidos no mais profundo de um abismo negro? Pensou: "Esse humano não é igual aos outros. Ele sabe quem e o que eu sou, mas insiste em me tratar como uma pessoa e não como um monstro hematófago que merece morrer, ou uma 'arma letal' a ser usada contra os de minha própria raça. Pior ainda, ele gosta de mim! Para o seu próprio bem, eu preciso desencorajá-lo. Caso contrário..."

Não concluiu o pensamento. Para quê, afinal? Já vira esse filme antes... com Eric. Conhecia o desfecho. Morte. Pois a perdição e a morte eram suas únicas dádivas aos incautos, humanos ou não, que dela se achegavam... como o seu primeiro e único amigo e chevalier. "A morte é o meu dom", refletiu. "E quanto a mim? Será que eu... sinto ALGUMA COISA pelo Abraham-san?"

Loucura! Inconcebível!

"Aberrações só podem ficar com aberrações."

Ao chegar ao térreo, Abraham levou Saya para a varanda envidraçada onde Mrs. Pinheiro Souzanitzky os aguardava, trajando vestido longo de cetim na cor creme. Junto dela havia uma moça de estatura mediana, de olhos azuis e cabelos louro-mel, lisos, na altura dos ombros, que usava um bonito vestido longuete azul-claro puxado para o lilás. Não teria mais que vinte anos. Abraham apresentou-a a Saya.

- Saya, esta é minha prima Lorna. Ela também mora aqui conosco. Lorna, esta é a minha amiga Saya Otonashi, de... - Ele parou. - Hummm... De onde você disse que mesmo, Saya?

- Okinawa - respondeu a garota chiropteran em tom frio e com a fisionomia inexpressiva de sempre, que destoavam por completo de sua figura graciosa e elegante.

- Prazer em conhecê-la, Saya Otonashi de Okinawa - replicou Lorna alegremente. - Gostei do seu corte de cabelo à la garçonne. Aliás, o vestido da minha irmã caçula lhe cai muito bem, sabia?

Saya olhou para ela, mas não falou.

A mãe de Abraham, como anfitriã, indicou quatro cadeiras ao redor de uma mesa de centro em madeira maciça de eucalipto, coberta por uma toalha xadrez estilo inglês, ostentando as bandejas dos serviços de chá, café e chocolate quentes, em prata maciça, as jarras de refrescos e os copos, xícaras, pires e colherinhas, açucareiro, guardanapos, além das travessas com os salgadinhos, bolos e biscoitos em torno de um colorido arranjo floral composto de rosas, tulipas, gérberas, girassóis, jacintos, lírios e palmas.

- É só um chazinho informal em família - disse Lorna.

Todos se sentaram à mesa. Abraham e sua mãe, frente a frente, e Saya e Lorna, idem.

- Na realidade o tão decantado "chá das cinco" é servido a partir das duas horas da tarde, aqui na Inglaterra - Abraham explicou a Saya, que ouviu pacientemente. - A primeira entrada, ou "1º tempo", como eu gosto de dizer, vai das duas às quatro da tarde, que é quando começa a segunda. Portanto, nós já estamos no "2º tempo", por começamos pontualmente às cinco horas, e temos de terminar antes das primeiras horas do anoitecer, ou seja, a "prorrogação", que são as horas apropriadas para os coquetéis. - Esboçou um sorrisinho cínico, e disse: - Faz lembrar um jogo de futebol, né?

Mrs. Souzanitzky encheu as chávenas e as passou a Saya e a Lorna, que repassou a Abraham. Assim como as bandejas de prata polida, os jogos de porcelana chinesa emprestavam ao "chazinho informal" um ar de solenidade. Começaram por degustar o Earl Grey, o saboroso e tradicional chá-preto inglês, mas logo passaram ao favorito da mãe de Abraham, o de camomila. Apesar de o geógrafo confessar sua predileção pelo Gyokuro, o chá-verde japonês.

- Sirva-se à vontade, Saya - disse Abraham. - Você está em casa.

Para sua supresa, a moça não se fez de rogada. Francamente, não esperava que ela fosse baixar a guarda tão fácil. Mas Saya aceitou de bom grado a xícara de chá que Maria Clara lhe ofereceu. Bebeu sem rodeios e aceitou outra xícara, e mais outra. Bebeu oito xícaras seguidas, com ou sem leite e açúcar, para começar, enquanto devorava com apetite os minissanduíches de queijo, salmão e pepino, patês, croissants e biscoitos creme-cracker. E não parou por aí. Depois dos salgados foi a vez dos petit-fours, pikelets, scones recheados com geleia de morango e cream cheese, consumidos pela garota com evidente prazer e nenhuma inibição. Finalmente voltou-se para as delicadas e lindas madeleines e pastries de chocolate, tarteletes de frutas, shortbreads, bolos galeses, torradas com marmelada e geleia de laranja, tudo regado a refresco de chá-verde e pêssego, chocolate quente e muito, muito café brasileiro puro! O apetite enorme de Saya - que até então parecia uma ostra fechada na concha, nada comunicativa - desconcertou não só Abraham como também sua mãe e sua prima que, entre si, trocavam olhares apreensivos, já imaginando de que campo de refugiados do Extremo Oriente aquela garota teria saído. A forasteira não recusava nenhum tipo de comida e bebida que lhe ofereciam. Mrs. Souzanitzky perguntava - por intermédio do filho - se ela gostado dos quitutes ese queria mais, e Saya sempre dizia "sim". Como resultado, as travessas onde eram servidos os sanduíches, as tortas e os bolos eram esvaziadas e imediatamente repostas, lembrando um verdadeiro rodízio.

- Caramba! - disse Lorna, dando uma piscadela maliciosa para Abraham. - Essa sua amiga "japa" tem uma fome de leoa, ela come por nós quatro! - Falou em português, para que a suposta "japa" não entendesse. - Não sei como consegue manter esse corpinho de ninfeta dela.

Abraham torceu o canto da boca. O apetite descomunal de Saya era muito provavelmente um efeito colateral de seu metabolismo sobre-humano, ou inumano. Se já é assim no chá da tarde, quando chegar a hora do jantar, então...

O espanto dos Souzanitzky foi ainda maior quando Saya declarou que, em Okinawa, costumava beber calpis, uma bebida à base de leite fermentado concentrado, direto no gargalo de uma garrafa de um litro e sem diluir em água. "Ela falou sério quando disse que podia ingerir uma ampla variedade de alimentos", refletiu Abraham.

De qualquer modo, o chá prosseguiu entre comes e bebes e muita conversa bilíngue, com Lorna e Maria Clara inventando assuntos ou trocando ideias sobre os musicais da MGM, da Broadway, elogios ao bolo de Gales, e Abraham e Saya na maioria das vezes apenas ouvindo.

Após o chá, retiraram-se para a sala de estar, separada da sala de jantar por um tapete. Abraham mostrou a Saya um luxuoso móvel, todo em madeira de nogueira, com rádio, televisão e toca-discos, "três-em-um", que ocupava um canto da sala. Disse: - Isto, Saya, é a minha "menina dos olhos". É um Admiral Triple Thrill Television, fabricado nos Estados Unidos. Rádio AM/FM, TV "espelho mágico" de dez polegadas e vitrola toca-discos com ajuste de duas velocidades, tudo automático. Top de linha. Pode usar e abusar como e quando você quiser. A menos que prefira disputar o bom e velho Tele-Tone com a mamãe, a prima Lorna, a Boadiceia e a Morrigan. - Ele indicou com o polegar da mão direita o televisor console em mogno, enorme e pesado, na extremidade oposta da espaçosa sala, e que servia de "poleiro" a uma dupla de gatas de pelo branco e preto dormitando encarapitadas no alto do eletrodoméstico.

- Gatos - disse Saya, sem nenhuma inflexão na voz.

- E cães. E considero que esta casa é muito mais deles do que minha. Transformei esta propriedade em um abrigo para animais, algo com que sempre sonhei desde criança. Mas a maior parte dos meus 36 cães e mais de 60 gatos está no canil e no gatil, respectivamente, de modo que você não os verá aqui dentro. E o estábulo, não os utilizo para criar cavalos de raça, mas para dar guarida a cavalos velhos e doentes que foram abandonados por seus donos. Lá no Brasil, eu não podia fazer nada, mas aqui, com o que herdei e investi nos negócios mais promissores, posso ajudar os animais que eu tanto amo. Vítimas do desrespeito, da crueldade humana.

- No "Zoológico", onde eu cresci, nenhum animal gostava de mim. Todos me temiam, fugiam de mim. Instintivamente, eles reconheciam o perigo que um chiropteran representava.

- Eu amo animais, em particular os gatos e os cachorros. São meus melhores amigos, depois dos livros, é claro. Eu os prefiro à maioria dos humanos que conheço. - De repente, um lampejo súbito recordou-lhe de algo que, até então, havia esquecido. - Você toca algum instrumento, não toca?

- Sim. Violoncelo. - No mesmo instante veio-lhe à mente, qual flashback, a imagem de si própria, tão bela e jovem como agora, porém ostentando um suntuoso vestido rosa-salmão, de tafetá de seda pura, saia ampla, com babados e bordados, corpete de mangas bufantes e gola alta; os cabelos longos e negros, que normalmente iam até os quadris, estavam presos por um enfeite em formato de tiara de diamantes e pérolas naturais. E tocava um cello alemão do século XIX.

- Hum, acho que você já tinha mencionado isso. Bem, eu toco piano. - Dizendo isso Abraham fez um gesto indicando com o braço o piano de cauda francês Pleyel, brilhando em impecável laca preta, no centro do vasto aposento. - Quem sabe, a gente pode fazer um dueto de piano com violoncelo... Tipo, executar uma sonata de Beethoven, ou de Chopin, ou "Adagio e Allegro" de Schumann. Ou, se não tem nada contra os russos, uma sonata de Prokofiev.

Entrementes, imersa em lembranças, Saya fazia aflorar em sua tela mental vívidas cenas de si própria, ostensivamente vestida de seda de tafetá em cor salmão, longas madeixas negras penteadas de forma elaborada, empenhada em ensinar seu novo pajem, um rapazinho de doze ou treze anos e olhos cinza assustados a tocar violoncelo; depois esse mesmo pajem, já um jovem mancebo de dezenove para vinte anos, tendo aprendido a tocar tão bem quanto ela, ou melhor, o "Prelúdio da Suíte Nº 5 em dó menor", "Allemande" e "Gavotte I e II", de J. S. Bach... Amigos inseparáveis... O primeiro beijo encabulado entre ambos, o acidente fatal, a "partilha de sangue", o "renascimento" como chiropteran e chevalier... Eric!

- Abraham...

- Que é, Saya?

- Gostaria de ir para o meu quarto.

- Tudo bem. Eu levo você.

Abraham acompanhou a garota até seus aposentos.

- Sabe, Saya - disse ele, quando se despediram no corredor. - Com meu patrimônio atual eu não tenho necessidade de dar aula para viver. Faço isso porque a disseminação do saber das Ciências Naturais é o meu dever, o meu jeito de lutar por um futuro melhor para o planeta Terra e sua humanidade. Maimônides, o mais ilustre filósofo judeu sefaradita do século XII, em sua introdução ao Pirkei Avot, eleva o professor, em certos casos, acima dos pais sanguíneos, pois, se os pais dão a vida à criança, o professor, que a instrui em sabedoria, lhe ensina os valores e as razões de viver. Ou seja, ensinar alunos equivale a procriar filhos, espiritualmente falando.

- Ensinar? - repetiu Saya, em um tom interrogativo. - O quê?

Abraham encarou-a seriamente, e, com um charme sui generis, retirou os óculos e deixou seu olhar acaramelado mergulhar no dela, cor de mogno.

- Que na natureza não existem monstros, mas somente nas cabeças dos homens. Que não existem raças malignas e sim indivíduos malignos e benignos, maus e bons, em todas as raças. Que o maior perigo de todos que enfrentamos está em nós mesmos, é o nosso medo irracional daquilo que não conhecemos... e que só nos parece ameaçador enquanto não procurarmos travar conhecimento com ele, levando luz à escuridão. Porque o único verdadeiro inimigo que deve ser ferozmente combatido é a ignorância. Medite nisso, Saya Otonashi.

Ele se inclinou e beijou a testa de Saya, em sinal de carinho. As pupilas dela dilataram-se.

- O jantar será servido pontualmente às 19 horas - disse ele, com uma formalidade que contrastava com o gesto afetuoso de poucos segundos atrás. - Até logo, Saya.

"A intimidade deve vir aos poucos", Abraham ponderou consigo, enquanto se afastava pelo corredor. "Especialmente com alguém como a Saya."

Ela entrou no quarto e fechou a porta rapidamente. "Abraham-san não é um humano qualquer", pensou, tirando os sapatos vermelhos e deixando-se cair na cama forrada com lençol lilás e perfumada com lavanda. "Ele tem sido bondoso comigo. Ele aceitou-me como eu sou." Com exceção do "David" atual, seu guardião e mentor da Escudo Vermelho, cuja função era dar suporte à sua missão de caçadora, nenhum outro ser humano a tratava com tamanho respeito, e, por que não dizer, cuidado e carinho. "Desde... Desde os acontecimentos de Bordeaux!"

Fechou os olhos. Na sua frente surgiu um quadro pavoroso, no qual visualizava a imponente mansão dos Goldschmidt que era seu antigo lar sendo devorada pelas chamas de um incêndio colossal que parecia alcançar o céu. E nos degraus da escadaria, tendo pouco mais que andrajos para cobrir-lhe a nudez, Saya viu a sua contraparte, sua imagem especular: bela, terrível e selvagem, pele pálida em contraste com a cascata de cabelos negros como a noite que lhe batiam um pouco abaixo da cintura. O sangue dos homens que matara para aplacar a sede feral, tão carmesim quanto os lábios crispados mostrando as pontas agudas dos caninos, salpicava-lhe o corpo gracioso e o rosto de menina dominado por um par de demoníacos olhos azuis, de um azul luminoso, inumano, brilhando malignamente feito safiras astéricas. Diva!

Podia ouvi-la cantando, com voz de sereia, transterrena. Saya... Minha irmã... Nós somos iguais!

Não!

Mortalmente assustada, Saya abriu as pálpebras e fitou o teto. Seu pesadelo particular, recorrente, há seis décadas. "Preciso proteger o Abraham-san. Para o bem dele, preciso afastá-lo de mim."

No silêncio expectante teve a ilusão exata de ouvir uma "voz interior" - seria a voz de sua alma? - que sussurrava suavemente: "É isso o que você REALMENTE quer?"


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Notas finais do capítulo

Como se trata de um universo alternativo, nada impede que o chevalier de Saya, morto há muitos anos, se chamasse "Eric" e não "Haji"; afinal, Saya teve outros pajens antes de Haji, por que não poderia ter se entendido melhor com um deles, em vez de com o nosso tão decantado ciganinho?



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