O Amor é Para as Fracas escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 1
Capítulo único




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As estrelas brilhavam na escuridão do céu como pó de prata derramado. Zoë estava distraída naquela noite, mais interessada em ficar contemplando a lua e suas filhas do que se preparar para a caçada. Com Ártemis ausente, cuidando de seus assuntos de deusa dos quais ela desconhecia, era sua tarefa dar ordens às Caçadoras preguiçosas.

Ser primeira tenente poderia ser algo glorioso, mas também muito, muito cansativo. Principalmente porque aquele seria seu título pelo resto de seus dias imortais. Ela bocejou de puro tédio. Sentia-se enérgica, na verdade, e não queria ficar parada ali.

Com a certeza de que ninguém notaria, ela deixou seu posto e saiu caminhando a esmo pela floresta de pinheiros na qual a caça noturna logo teria seu início. O silêncio, marcado por um ocasional piar de coruja, era reconfortante. Zoë não estava prestando a menor atenção por onde andava, pois o brilho piscante das muitas estrelas acima de si e as árvores frondosas ao seu redor prendiam seu olhar.

Assim, terminou tropeçando em algo macio. Assustada, percebeu que se tratava de uma perna humana. Seus olhos dirigiram-se ao corpo à qual ela pertencia – torcendo para que ainda estivesse ligada a algum corpo. Eram três pessoas, na verdade, e dormiam tão profundamente que ela precisou reparar na respiração delas para não entrar em pânico. Mas antes mesmo de constatar que estavam vivos, a primeira coisa notada por ela é que eram três jovens meio-sangues, exalando aquele cheiro característico que logo atrairia todo tipo de monstros se eles permanecessem por tempo demais ali.

Zoë não tinha dificuldade em enxergar no escuro, portanto se aproximou para examina-los melhor. Ela havia tropeçado em uma garota, com cerca da mesma idade que ela fisicamente possuía. Suas roupas imundas eram em estilo punk e ela tinha um ferimento grave no braço, precariamente enfaixado em gaze suja. Isso despertou certa preocupação na Caçadora, e ela não poderia negar. Ao seu lado, dormia um rapaz mais velho, seu rosto sereno era muito bonito e sem nenhuma marca. Por sua vez, ele estava abraçado a uma garotinha loira, de no máximo sete anos, como em uma tentativa desesperada de protegê-la. Eles todos estavam em sério perigo, mas parecia que o cansaço os havia dominado.

Zoë os observou por um segundo, decidindo o que deveria fazer, embora não houvesse muita dúvida. Ela tocou sua trompa de caça e, num piscar de olhos, várias outras Caçadoras surgiram ali. A tenente não dizia nada, portanto elas vagaram por um tempo, sem saber o que fazer. Até que Phoebe ajoelhou-se ao seu lado.

— Quem são? – Ela perguntou friamente, indicando com um gesto os três semideuses que ainda não haviam sequer se movido.

— Não sei. – Zoë murmurou.

— Melhor deixa-los aí. Não podemos sair ajudando toda criança perdida que encontramos.

Ela a encarou, um tanto incrédula com a falta de compaixão.

— Você sabe muito bem que a Senhora os acolheria sem pensar duas vezes. E eu a estou representando. Vá colher algumas ervas medicinais, vamos precisar. – Ela a despachou, sem paciência para qualquer discordância.

Phoebe saiu a contragosto, arrastando os pés. Novamente sozinha, Zoë ergueu a mão e sacudiu a garota com o máximo de delicadeza.

— Acorde. Por favor.

Dois olhos azuis elétricos se abriram e a encararam, deixando-a em choque e roubando as palavras de sua boca.

— O que...? – Gemeu a garota, imediatamente se levantando e acordando os outros. A menina mais nova começou a chorar e o garoto tentou acalma-la.

— Calma. Meu nome é Zoë Doce-Amarga e eu sou a líder das Caçadoras de Ártemis. Vocês estão. Em. Segurança. – Zoë pronunciou a última frase devagar, pois tinha certeza de que eles demorariam a entender.

Em resposta, recebeu apenas três pares de olhos fuzilando-a com total desconfiança. Mas assim que processaram suas palavras, cederam um pouco.

— Eu sou Thalia. Filha de Zeus. – Finalmente, a semideusa decidiu dizer algo, esperando que o nome de seu pai lhe garantisse algum respeito. Temia mais pelos amigos do que por si mesma. – Esse é Luke, e a pequena é Annabeth. Estamos todos armados.

Zoë quase sorriu. Ela não costumava parecer ameaçadora quando não era sua intenção.

— Muito prazer em conhecer vocês. Veja, estou armada também, mas ninguém vai precisar se defender de nada.

Ela lembrou que trazia uma barra de chocolate com ambrosia consigo, e lentamente a estendeu para Annabeth.

— Quer? Vai te fazer bem. Você tem olhos lindos. – Aquilo, na verdade, foi direcionado à Thalia, mas ela não precisava saber.

A menina pegou o doce com suas mãozinhas e examinou-o com cautela antes de devora-lo de bom grado. Podia-se notar que ela era bem esperta para sua aparente pouca idade. Luke deu um meio sorriso. A atitude de Zoë o tranquilizou completamente, e ele decidiu conversar com ela.

— Essa tal de Ártemis... – Ele começou. Sabia que era uma deusa, e provavelmente não deveria se referir a ela como “essa tal”, mas não se lembrava de sua personificação e nem sabia nada sobre as Caçadoras.

— É a deusa da caça e da lua, irmã gêmea de Apolo. – Zoë respondeu, com uma clara pontada de orgulho em sua voz. – Ela nos ofereceu imortalidade em troca de nossa eterna companhia e auxílio. Ela não está aqui no momento, mas tenho certeza de que poderemos acolhê-los com sua benção. O que acham?

Thalia franziu o cenho. Aquilo lhe parecia uma boa ideia, mas ela não poderia se dar ao luxo de confiar em ninguém.

— Vou considerar. Por Annabeth.

— O seu ferimento... Podemos cura-lo com o poder da natureza.

Thalia assentiu, aliviada.

— Não tenho muita fé nesse “poder da natureza”, mas ficaria grata. Vocês estão acampadas aqui?

O semblante sempre sério de Zoë pareceu iluminar-se por um segundo antes que ela respondesse.

— Sim. As tendas estão logo ali. Podem nos seguir?

Em questão de minutos, o trio caminhava junto ao grupo de Caçadoras pela floresta escura, sem a menor ideia de seu destino, mas confiando plenamente na líder, que os tratara tão bem. Thalia seguia à frente de todos, ao lado de Zoë, para tentar perceber com antecedência caso estivessem sendo guiados em direção a uma enrascada. Luke estava mais despreocupado e tentava puxar assunto com uma das belas e frígidas garotas, que o ignorava completamente e ainda ameaçava espanta-lo com suas flechas. Annabeth estava rindo novamente, brincando com um enorme cão de caça que havia se afeiçoado a ela.

Tudo estava bem e sob controle, mas os pensamentos de Zoë ficavam cada vez mais agitados enquanto ela lançava olhares de esguelha à filha de Zeus que seguia andando com passos firmes, próxima a ela. Phoebe se aproximou, reivindicando sua atenção. Ela chegava carregando uma larga cesta, repleta de ramos e flores de plantas aromáticas.

Como curandeira principal, ela sabia reconhecer a propriedade medicinal de tudo o que havia colhido. Havia folhas ali que serviriam de remédio para estancar hemorragias, acelerar cicatrização, aliviar infecções... O poder da natureza já havia salvado vidas. Bastaria uma pasta feita daquelas ervas para curar os ferimentos de todos os três semideuses. Zoë lhe deu um tapinha de aprovação no ombro, o qual ela retribuiu com um sorriso azedo. Quem diria que um trabalho feito com tanta má vontade poderia ter um resultado tão bom.

— E quanto à ronda noturna, chefe? Ainda faremos? – Phoebe perguntou. O tom de irritação em sua voz era claro, mas foi ignorado.

— Claro. Mas talvez tenhamos de adia-la, por um bom motivo. Quero que nossos hóspedes sejam alojados em lugares confortáveis e recebam toda a ajuda que precisarem. Posso contar com você? – Zoë retrucou, erguendo uma sobrancelha.

Phoebe resmungou em concordância e se afastou novamente. Zoë empertigou-se, satisfeita. Ela mandava ali, não importa o quão absurdas suas decisões parecessem às vezes. Ela passou o resto daquela noite andando de um lado para o outro e gritando comandos, certificando-se de que tudo seria feito exatamente de forma que Thalia e seus amigos ficassem bem tratados, alimentados e acolhidos, embora soubesse que não era necessário.

Talvez fosse a quebra de rotina que a deixara tão empolgada. Algo extraordinário havia acontecido, sem dúvida. Zoë ainda não percebia, mas seu coração, apesar de gelado e coberto por teias de aranha, estremecia dentro de seu peito e passava a bater com mais força.

***

Na manhã seguinte, tudo estava quieto no acampamento das Caçadoras. Elas teriam partido naquele mesmo dia e migrado até outra floresta para seguir com a Caçada, mas como agora estavam abrigando aventureiros, decidiram ficar por mais algum tempo. Na verdade, Zoë decidiu – e é claro, gerou bastante controvérsia entre as outras. Mas ela tinha de saber o que estava fazendo, ela sempre sabia.

Dentro de uma das tendas espaçosas, Luke e Thalia conversavam aos sussurros, pois Annabeth dormia tranquilamente próxima aos dois, agora que não precisava mais ficar alerta, sempre com medo dos monstros. As curandeiras foram muito antipáticas com eles, especialmente com Luke (deixando claro que era apenas por ele ser um indivíduo do sexo masculino), mas lhes deram o tratamento adequado.

— Demos sorte. Muita sorte. – Ele disse, sorrindo. – Mas não poderemos continuar aqui por muito tempo.

Thalia suspirou. Uma Caçadora ruiva e mal-humorada que se apresentou como Phoebe trocara as bandagens velhas que cobriam seu ferimento por um curativo novo e muito mais bem feito. Antes, havia coberto o corte profundo com uma espécie de unguento feito de ervas trituradas e mescladas. Thalia relutara inicialmente em aceitar aquele remédio caseiro – mas estava desesperada e receberia a ajuda que fosse.

No fim, não se arrependeu nem um pouco. A dor pungente parecia ter evaporado, tudo o que ela sentia em seu braço ferido era uma dormência agradável e... Mágica. Ela podia sentir a cura acelerada. Tinha de reconhecer o quanto aquilo era incrível.

— Não quero ir embora tão cedo. Há quanto tempo não comíamos de verdade? Ou dormíamos? Luke, se não fosse por esse tratamento, eu poderia ter perdido meu braço...

— Eu sei, eu sei. Eu me sinto um pouco ameaçado por essas garotas, mas elas são melhores que monstros. E Annabeth também parece muito feliz.

— Então... Você quer partir porque tem medo de Caçadoras? Zoë te intimida? – Thalia tentou segurar o riso, mas não conseguiu.

Luke fez que não, um rubor adorável se espalhando por suas bochechas.

— Eu acho que ainda não contei a vocês. – Ele disse, em tom melancólico.

— O que? – Thalia replicou, preocupada.

— Há um lugar para onde podemos ir e ficar definitivamente. Um lar próprio para semideuses como nós. Seu nome é Acampamento Meio-Sangue e ele não fica muito longe daqui.

A garota abriu um sorriso tão largo, mostrando todos os dentes, que deixou Luke meio perplexo.

— Não acredito... Conseguiremos chegar até lá?

— Nós passamos por tanta coisa, atravessamos um caminho tão longo. É claro que conseguiremos. E agora, ainda quer ficar parada aqui?

Thalia hesitou. A verdade é que ela gostava dali e não estava ansiosa para ir embora, apesar de não entender ao certo a razão.

— Eu continuo ferida e preciso de repouso. Todos nós precisamos. Acho que mais uns três dias bastam, se as Caçadoras não nos expulsarem até lá.

Luke revirou os olhos.

— O que for melhor para vocês. Pra mim tanto faz. Só acho que quanto mais cedo partirmos, mais cedo chegaremos...

— Ou mais cedo seremos mortos. Parece que você não gosta de segurança. – Thalia resmungou, retomando a aspereza habitual.

— Quando você literalmente atrai perigo, termina se acostumando. - Ele respondeu, mantendo a pose.

Um bocejo ruidoso atraiu a atenção de ambos. Annabeth havia acordado e estivera observando-os com seu olhar cinzento.

— Quero mais chocolate. – Ela disse simplesmente.

— Se você comer mais daquilo, vai entrar em combustão espontânea, fofinha. – Thalia provocou.

— Sou fofa. Não fofinha. – “Inhos” a irritavam. Ela não tinha culpa de ser pequena.

Luke despenteou ainda mais os cabelos de Annabeth antes de sair sem aviso. Thalia não tinha ideia do que ele iria fazer, mas também não se importava. Se fosse trazer comida, ótimo.

— Será que tem livros por aqui? – Annabeth perguntou quando ficaram sozinhas, reclinando-se novamente sobre o travesseiro.

— Acho que as Caçadoras não leem Diana Wynne Jones.

— Que pena. – A menina murmurou e logo adormeceu mais uma vez.

— Molenga. – As palavras de Thalia eram carregadas de carinho. Uma criança tão doce e inteligente quanto Annabeth... Ela não merecia nada daquilo, mas com certeza já era forte o suficiente para superar.

***

O dia era monótono e breve naquele lugar, antes que fosse possível notar, já era madrugada. Todas as Caçadoras haviam saído para... Fazer o que quer que elas fizessem a noite inteira.

Thalia tinha o sono leve. O ruído suave de passos, um movimento próximo, e ela já havia despertado e sentado na cama. Sua visão estava embaçada e ela esfregou os olhos com impaciência. Podia jurar que havia vislumbrado uma sombra ambulante por perto. Alguém estivera andando por ali e ela descobriria quem. Ela levantou e caminhou lentamente pela escuridão.

— O que você pensa que está fazendo? – Ela perguntou, com o aborrecimento típico de quem acabou de ser acordada. Não havia visto o vulto novamente, mas sabia que ele continuava por ali.

— E-Eu... – Gaguejou uma voz conhecida.

Zoë estivera tentando passar correndo pela porta sem ser percebida, mas claramente falhara. Ela se aproximou com alguma hesitação. Usava um colar cujo pingente em formato de lua crescente brilhava intensamente, como uma lanterna. Na penumbra, parecia uma aparição. O longo cabelo negro, que ela sempre mantinha trançado, estava solto e ocultava parte de seu rosto. Ela tinha a beleza de uma escultura de gelo. Thalia estreitou os olhos.

— Você...? – Ela estava se divertindo com aquilo.

— Vim ver se você... Se vocês estavam bem. – Zoë finalizou, engolindo em seco. Não era bem essa a verdade, mas ela nem tinha certeza da razão pela qual decidira entrar na tenda dos semideuses àquela hora, então a desculpa serviria também para si mesma.

— Claro. Pensei que todas as Caçadoras estivessem fora.

Zoë deu de ombros, tentando parecer natural.

— As outras estão. Eu decidi ficar. Precisava descansar um pouco e, na verdade, elas se viram bem sem mim.

— Ok então. – Thalia a encarou por mais alguns segundos. Um pensamento despontou em sua mente. – Quer dar uma volta? Não voltarei a dormir tão cedo agora que você me acordou.

— Desculpe...

Thalia a interrompeu com um gesto e foi buscar sua jaqueta. Ela estava praticamente de pijama, mas não se importava, pois Zoë estava na mesma. O que mais duas notívagas poderiam fazer além de andar por aí e bater um papo? A líder das Caçadoras de Ártemis parecia uma pessoa interessante com quem se conversar. Se Thalia fosse mais sincera consigo mesma, reconheceria que a garota imortal era interessante em vários aspectos.

Virou-se mais uma vez e percebeu que a outra a olhava, ligeiramente boquiaberta. Mas ela logo retomou a compostura, ou seja, recolocou sua máscara.

— Vamos? – Zoë chamou, saindo na frente antes de ouvir qualquer resposta. Thalia deu uma risadinha, sacudindo a cabeça, e a seguiu, apertando o passo para ficar ao lado dela.

A Caçadora parecia ter alguma obsessão por estrelas. Por duas vezes seguidas, ela tropeçou no cascalho e quase caiu porque não parava de olhar para os milhares de pontinhos luminosos no céu noturno. Aquela era uma área isolada, intocada pela luz artificial, portanto era possível até flagrar uma faixa da Via-Láctea. Mesmo assim, Thalia tinha dificuldade em entender o que tem de demais nessas malditas estrelas? Zoë poderia estar cravando seus olhos escuros em coisas diferentes. Como nela.

— Olhe... – A semideusa murmurou, agarrando o pulso de Zoë e a puxando, em um gesto não muito delicado. – A fogueira está quase apagando.

— Ah, sim. – Respondeu ela, dando um sorriso trêmulo. Estava perdida em pensamentos até um segundo antes. – Posso dar um jeito nisso.

E juntas, elas se encaminharam até o local onde um fogo azulado, quase extinto, consumia os restos de um tronco. Havia uma pilha de toras de madeira ali do lado, mas ninguém se dera ao trabalho de alimentar as chamas com elas, e em uma noite fria e úmida como aquela, quase calor nenhum resistia. Sem o mínimo esforço, Zoë ergueu uma tora de aparência particularmente pesada e a lançou sobre a fogueira. As labaredas subiram imediatamente, brilhando em amarelo avermelhado como se Héstia as abençoasse.

Em seguida, a garota acomodou-se ali perto, para ouvir o crepitar da madeira que se convertia em cinzas, observar a dança do fogo e por fim, aquecer as mãos. Thalia logo se sentou ao lado dela. Queria puxar assunto, mas não sabia como. Na verdade, havia milhares de perguntas na ponta de sua língua, forçando seu caminho para fora, mas ela tinha a impressão de que seria um tanto... Insensível pronuncia-las. Resolveu aproveitar o sono e o momento de proximidade.

— Você nunca... Voltou atrás? – Thalia perguntou, em tom baixo e, esperava ela, gentil.

Zoë imediatamente direcionou o olhar para ela.

— Está perguntando se eu me arrependo. Não é a primeira a fazê-lo. – Ela disse, com o mesmo jeito antiquado e um tanto charmoso de sempre.

— Posso imaginar... É que eu sempre achei que as pessoas mudassem de ideia com o tempo.

— Quantos anos você tem? 15? Você não entende nada de tempo. – Agora sim, ela parecia estar ficando irritada, mas não com Thalia. – Na verdade as pessoas se conformam.

Thalia apenas assentiu, em parte porque não conseguia pensar em nada para balbuciar em resposta, e também porque achava que estava quase entendendo. Além de que Zoë continuou falando, parecendo alheia a ela.

— Houve uma época em que eu pensava que abrir mão de algo poderia me recompensar com outra coisa muito melhor, mais significativa, mais duradoura, desde que eu mantivesse a paciência e a determinação para alcançar esta tal coisa. Resumindo, eu queria dar um propósito à minha vida, no tempo em que ela ainda parecia finita. Ártemis me ofereceu a imortalidade como quem oferece um copo d’água. Ela não me contou como seria. Como eu me sentiria. Às vezes eu só... – E a frase foi interrompida por um soluço.

Thalia ficou alarmada.

— Não comece a chorar, por favor... Sério, eu nunca sei o que fazer.

— Chorar é coisa de criança. Como você. – Ela respondeu com uma risada amarga e forçada.

Thalia não se deu ao trabalho de se ofender. Tinha a impressão de que Zoë estava mesmo precisando hostilizar alguém, ou o extremo contrário, ou algo assim. A semideusa deixou que o olhar se perdesse nas labaredas dançantes da fogueira, até não enxergar nada além da luz irradiante e alaranjada. Foi quando sentiu o toque hesitante e frio, mas sem dúvida proposital, da mão de Zoë em seu joelho. Ela encarou a outra intensamente, fazendo com que esta se afastasse sobressaltada.

— Desculpe... Minha mão escorregou. - Zoë disse após um segundo de puro constrangimento, sua voz parecia suave e vulnerável.

— Tudo bem. – Thalia murmurou e voltou a desviar o olhar, determinada a ignorar aquilo. Mas sentia o coração ardendo mais do que aquelas toras de madeira. – Não, na verdade não está nada bem.

Zoë não parara de observa-la através da meia-luz, seus olhos brilhavam como brasas ainda acesas, perdidas na escuridão.

— Não?

Thalia fez que não em silêncio. Qualquer coisa dita por ela naquele momento iria se perder no segundo seguinte. Ela segurou a mão da Caçadora, a qual nem fez menção de se desvencilhar, e a levou para mais perto, possibilitando que seus lábios se encontrassem. Então olhou fundo em seus olhos, querendo capturar cada detalhe de sua reação.

Zoë não pôde conter o sorriso que se espalhou por seu rosto. É indescritível a sensação de realmente sentir algo pela primeira vez em mais de um milênio. Por mais que isso fosse inaceitável em múltiplos aspectos e a vozinha de sua racionalidade ainda gritasse abafada no fundo de sua consciência, ela envolveu Thalia em seus braços, ansiosa por um beijo de verdade.

Era uma descoberta, o desabrochar de um amor, a quebra de uma castidade que até então parecia impermeável e o romper de um juramento, tudo ao mesmo tempo, em meio a suspiros entrecortados e carícias cada vez mais intensas. Não deveria haver nada de errado naquilo. Afinal, o fato era que Zoë preferiria ser exilada da Caçada, perder sua imortalidade e por fim morrer, se tivesse de passar a eternidade reprimindo a si mesma.

Nada disso teria de acontecer. Aquele momento poderia ser interpretado como um sonho vergonhoso dali para frente. Se não fosse pela silhueta, bem real e sólida, que assistia a toda a cena, parcialmente oculta pela penumbra atrás delas.

Ártemis havia retornado mais cedo do que o esperado e suas feições contorciam-se de nojo e descrença. Nojo, não por ser entre duas garotas, mas apenas por ser aquilo. Aquele sentimento em particular, que ela sempre evitou, por temer o efeito que poderia causar, e ensinava suas Caçadoras a fazerem o mesmo. E descrença, pois ela esperaria uma falha daquelas da parte de qualquer outra, menos de Zoë.

Porém, enfim, diante de seus olhos, sua primeira tenente demonstrava como não era tão forte quanto parecia e havia sido orientada para ser. A deusa virou a cabeça de maneira brusca, tentando impedir a única lágrima que ousava percorrer sua face. Zoë a decepcionara gravemente – mas tudo bem. Era somente um desvio de conduta, o primeiro e último. Não seria necessária nenhuma medida drástica, apenas uma conversa sincera, dura e efetiva, para a qual Ártemis não sabia se estava preparada enquanto se afastava daquele local com passos silenciosos.

***

Não era o fato de ter sido convocada inesperadamente para uma reunião na tenda da Senhora que deixava Zoë nervosa. Afinal, aquilo acontecia com certa frequência. Ártemis sempre discutia decisões com ela ou apenas conversavam. Eram quase amigas. O problema era que, dessa vez, ela suspeitava ser por uma razão diferente, se bem que... Quem poderia ter visto aquilo? Mesmo se alguém flagrasse, não ousaria denunciar. Devia ser apenas paranoia da parte dela. Embora a Caçadora não sentisse isso, sabia que suas ações eram dignas de punição severa, e era impossível não ficar nervosa enquanto entrava na grande tenda.

Encontrou Ártemis sentada confortavelmente em seu trono de prata, enrolando a longa trança ruiva entre os dedos, o semblante distraído. Precisou se ajoelhar diante de sua Senhora e pigarrear para que esta percebesse sua presença e se endireitasse. A deusa havia tomado a forma de uma mulher adulta, de cerca de 30 anos, como sempre fazia ao repreender suas discípulas. Ela de fato parecia mais intimidante daquele jeito, encarando a Caçadora com seriedade imperturbável em seus olhos metálicos. Zoë baixou a cabeça e sentiu que todo o seu corpo começava a tremer.

— Olhe para mim, Zoë. – Ártemis pronunciou-se com a voz impassível. Eram raras as vezes em que ela chamava a Tenente Doce-Amarga por seu primeiro nome, e isso deixava tudo mais pessoal.

Sempre obediente, Zoë ergueu os olhos cor de carvão. Já sentia um nó se formando em sua garganta. Seja forte dessa vez.

— Estou ciente de sua infração. Mas não se desespere. – Ártemis continuou, erguendo a mão num gesto tranquilizador. – Quero apenas relembrar algumas coisas. Alguns ensinamentos que você, pelo visto, esqueceu. Está me ouvindo?

Zoë assentiu lentamente. Sem punições, então. Apenas palavras que com certeza iriam feri-la mais do que mil açoites.

— Há muito tempo eu te elegi como líder das Caçadoras. Sabe por quê? Porque você é a única digna de meu reconhecimento. Sua força, determinação e persistência são o que a destaca entre as outras. Eu nunca desconfiei de você, mesmo conhecendo o seu passado.

Zoë percebeu que a Senhora estava apenas desapontada com ela. Talvez algumas palavras suas pudessem amenizar a situação. Mas de repente parecia difícil formar frases completas.

— M-mas o juramento... Como eu poderia saber... Foi apenas...

— Eu sei bem o que foi aquilo, menina, e o que poderá ser. – Ártemis retrucou, interrompendo-a. – Você esqueceu a razão do celibato. Eu preciso de guerreiras jovens e fortes para me acompanharem. E o amor enfraquece. O amor é para as fracas. Você tem seus momentos de fraqueza. Nunca pensei que... – Ela apoiou a cabeça nas mãos e bufou pesarosamente.

Zoë tomou coragem para se levantar. Enxugou os olhos com as costas da mão e pegou seu arco. Se ela entregasse a arma para Ártemis, seria um ato de desistência, e ela não fazia ideia do que poderia acontecer em seguida, apenas sabia que estaria deixando a única vida que conhecia para trás. Valeria a pena? Como ela saberia?

— Não... – Ártemis soluçou, afastando o arco. – Você saberá como superar isso. Você terá que superar isso. Eu preciso de você. Não pode abandonar tudo por causa de...

— Eu sei, minha Senhora. – Zoë respondeu, quase inaudível, e voltou a guardar seu objeto mais precioso. Ártemis jamais havia reconhecido sua importância com tanta aflição.

Num gesto quase maternal, a deusa apoiou as mãos em seus ombros e pressionou levemente, transmitindo um pouco da força que ela precisaria.

— Aqueles semideuses não passarão mais um dia sequer entre nós. E então você irá esquecer, Caçadora. Não é tão difícil quanto parece.

— Se assim dizes... – Zoë murmurou e se virou; parecia insuportável permanecer por mais um segundo naquele lugar.

Ártemis a observou até que ela sumisse de vista, pensamentos estranhos e antigos martelavam em sua mente.

***

Thalia baixou os olhos, aqueles olhos lindos e que pareciam ser inesquecíveis. A inexpressividade gélida em seu tom de voz doía mais do que o corte de uma adaga.

— Você já decidiu isso há muito tempo, não é? Se está feliz assim, quem sou eu para mudar algo? – Apesar da ausência de sentimentos, a ironia permanecia.

— Tem coisas que são determinadas...

— Não preciso das suas explicações. Poupe a si mesma. Você fez sua escolha e assim será. – Era como se ela talhasse cada palavra na pele da Caçadora, e as cicatrizes permaneceriam.

Os dedos de Zoë tentaram alcançar os dela, mas ela prontamente desviou como se sentisse nojo.

— Não sei mais para que serve a imortalidade. – A Caçadora admitiu, com a voz reduzida a um sussurro.

— Para ver a mim e a todos envelhecerem enquanto você fica aí. Para assistir as histórias se repetindo inevitavelmente. Para adquirir sabedoria, ou talvez não.

— Definitivamente não.

— Eu ia te abraçar, mas acho que não mereço essa tristeza. Estaremos partindo ao amanhecer. Já estou me despedindo agora, então fique longe.

Zoë assentia de olhos bem fechados. Sabia o que aconteceria caso ousasse encarar Thalia. Fraqueza. Podia ouvir cada passo esmagando o cascalho à medida que a outra se afastava.

— Pra falar a verdade, eu espero nunca mais te ver! – Ela gritou, torcendo que sua voz fragilizada ainda fosse capaz de alcançar os ouvidos da semideusa, que apenas apertou o passo.

Zoë finalmente abriu os olhos, e, com sua visão embaçada, buscou as estrelas. Não encontrou nenhuma. Era lua nova, mas na noite seguinte elas com certeza estariam de volta.


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Notas finais do capítulo

Essa foi minha primeira one-shot e eu quase chorei enquanto escrevia. Tive medo de deixar comprida e cansativa demais, mas acho que se você chegou até o final, é sinal de que não ficou tão ruim. Enfim, obrigada! Ficaria imensamente feliz com uma review (elogios, críticas, xingamentos, qualquer coisa).



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