Impulsiva escrita por Maíra Viana


Capítulo 6
Capítulo 6


Notas iniciais do capítulo

Oba, você veio novamente! Espero que goste desse capítulo e aproveite-o ao máximo, porque o próximo será um pouco menor... De qualquer forma, se houver dicas para o melhor desenvolvimento da história ou errinhos que foram encontrados, pode me dizer nos comentários, viu?!



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Capítulo 6

Hoje, o dia está estupidamente estranho e não sei se gosto dessa mudança. Uma hora faz sol e na outra, os pingos escorrem pela janela do meu apartamento. Nunca estive tão só como estou agora, mesmo com duas amigas falantes e uma multidão lá fora. Sinto-me vazia a cada segundo que se passa e com esse muro de ordens ao meu redor me fazendo ir contra tudo que é dito. Fico o tempo inteiro me sentindo a pior pessoa do mundo, e será que os outros também se sentem assim?

Seria mais fácil se, no fim de cada dia, houvesse alguém segurando um enorme livro embaixo dos braços, apenas para esclarecer nossas dúvidas, aquelas que são cruéis porque não morrem dentro da nossa cabeça. Essas lamentações só irão se emaranhar cada vez mais em meu pescoço como cordas, esperando o meu momento de maior desespero para que façam enormes vergões na minha pele e indicando o fim da minha vida sem graça.

Eu já atuo o suficiente para pedir uma vida chique como a de uma atriz. Num dia estou bem, e, no outro, nem tanto. Basta respirar fundo, olhar dentro desses olhos negros em frente ao espelho e imaginar quem serei amanhã. Sinto que sou movida à base de interpretações; uma busca inacabável do meu eu, que grita incansavelmente por descanso. E se não existir nada mais que isso dentro de mim?

Às vezes, eu gostaria de ter o poder de silenciar minha mente para que eu dê ouvidos apenas ao meu coração. Mas, parece que sua língua é hebraica, porque nunca consigo entender. Terei que arcar com as consequências dos meus erros e essa é a parte mais difícil.

Ah, papai, queria tanto que o senhor estivesse aqui, apertando minhas bochechas e dizendo que sempre serei sua pequena Lis. Arrependo-me, a todo instante, de ter matado aquela criança que fui um dia e apresentar ao senhor esse caos em que me tornei. E sei que se o senhor pudesse falar agora, seriam apenas palavras carinhosas, porque, diferente de mim, você sempre foi um homem bom. Nunca me esquecerei de você, papai, mesmo que um dia as traças façam das minhas lembranças seu alimento preferido.

Dois dias depois resolvi poupar o meu bolso e pegar um metrô. A estação estava mais cheia do que eu me lembrava da última vez em que fui lá. Faz quase quatro anos quando tive que ir até o outro lado da cidade com meu pai, porque era seu aniversário. Quis tirar fotos daquele rosto que sempre achei deslumbrante, com os cabelos grisalhos e a barba escura. Desde sempre, gostei de tirar fotos suas, principalmente quando fazíamos viagens. Acho que foi por isso que segui a profissão de fotógrafa, porque meu pai sempre foi o meu melhor modelo.

Agora só me restam essas imagens na câmera, ele sorrindo, andando pelas ruas de Nova Iorque, comendo hambúrguer e na roda gigante comigo. E, nossa última foto, na viagem de férias para Argentina, ele agasalhado por causa do frio que naquela noite fazia e me abraçando forte, sorrindo. Jogaria todas aquelas fotos no lixo se eu pudesse tê-lo de volta. Um pai é mais importante do que pedaços de papéis inúteis.

O banco do metrô estava gelado e parecia que todos haviam tirado o dia só para colocar o assunto em dia. E, ao meu lado havia dois rapazes altos conversando.

– Eu sei, que loucura! – o da direita respondeu. – Aquela senhora é completamente pirada. Como assim você ia assaltá-la? – os dois gargalharam. – Poderia ao menos ter maneirado na força ao te bater com aquele chinelo.

– Era um tamanco, e só pra constar, aquela senhora é minha avó! – completou aos risos e vi um galo na sua testa. Comecei a rir baixo para que não fosse notada e apontada como intrometida.

Finalmente cheguei ao meu destino! Fui até a boate – não me pergunte o que eu estava indo fazer ali – e ninguém atendeu. Será que eles não queriam que eu fosse e resolveram me ignorar? Do jeito que Karl estava me tratando, era bem provável que sim.

Não decidi esperar para ver se ele lá, dentro da boate, mudaria de ideia em relação a mim. Talvez aquilo fosse um sinal de que eu não deveria me envolver mais com aqueles dois, mas eu queria muito conversar com Track e ser perdoada! Voltei ao metrô e senti um arrepio ao ver um vulto negro passar por mim, rapidamente. Meu coração gelou. Apertei o passo e entrei no vagão, quando vi que não era nada além de um homem com um casaco.

Eu já estava em casa quando meu celular tocou.

– Alô?

– Lisa?

– Quem gostaria de falar com ela?

– Lisa, sou eu, Daniel.

– Não reconheci sua voz.

– Pena que nem minha voz você reconhece mais.

– Pare com isso.

– Tudo bem. Gostei de você ter ido jantar lá em casa aquele dia. Pensei que hoje pudéssemos jantar novamente, como amigos.

– Você passa aqui às sete. Aonde iremos?

– Restaurante Dinner Ring. – respondeu, e logo senti minhas mãos suarem e fiquei sem falar nada. – Ainda está ai?

– Estou. Eu só...

– Você não reconheceu minha voz, mas vou te perdoar, já que se lembra do nosso primeiro almoço juntos. – e comecei a rir um pouco ao lembrar daquela situação. Imagine só, uma menina de 14 anos se achando adulta e saindo com um rapaz mais velho? Era só para rir mesmo. – Eu também não me esqueci de muitas coisas. – e minhas mãos voltaram a suar novamente. Droga, Daniel, por que faz isso comigo?

– Espero que, pelo menos, as ruins tenham evaporado de sua memória. – eu precisava saber se ele havia me perdoado pela merda que eu havia feito, mesmo que ele estivesse agindo de uma forma tão doce comigo, eu queria ouvir aquilo de sua boca.

– Preciso desligar. Vejo você daqui a exatamente... – deu uma pausa provavelmente para olhar um relógio. – duas horas. – e desligamos.

Tomei uma ducha rápida, lavei os cabelos e, para dar uma boa impressão – mesmo que Daniel já me conhecesse há anos – coloquei um vestido na altura dos joelhos com estampa colorida. Coloquei a sapatilha e quando estava indo para a sacada, tomei um vento gelado no rosto e observei as folhas se debaterem incansavelmente umas contra as outras na grande árvore.

O entregador de jornal passou jogando os embrulhos transparentes nas casas quando avistei a caminhonete e o sorriso de Daniel, lá de longe, que me fez um convite audacioso para que eu fosse ao seu encontro. Foi o que eu fiz. Ao me aproximar, lhe dei um abraço que foi bem retribuído.

– Você de vestido? – ele disse rindo e abriu a porta do carro para mim. – Que mudança!

– Se quiser que eu volte e coloque uma calça, é só pedir.

– Não, está ótimo assim. – nós rimos, seguindo o caminho, enquanto a lua já havia aparecido.

– Você se lembra da pulseira tribal?

– Como esquecer? Você ficou com ela cinco anos e não podia nem tirar para tomar banho! Bendita aposta que você e Léo fizeram.

Ele retirou uma mão do volante e suspendeu a manga longa azul da blusa e revelou a pulseira. – Você ainda usa isso? – perguntei rindo. – Nem sei como não se desfez com o tempo.

Ele diminuiu a velocidade e se virou para mim, fazendo que seus olhos pudessem ter como única atração, os meus.

– Há coisas que nem o tempo pode desfazer. – senti minhas bochechas queimarem como brasa. Por que ele estava dizendo aquilo? Já se passaram três anos! Será que, justo agora, ele iria fazer me lembrar de como fui ruim com ele? Não deu tempo de responder, porque senti um baque forte no braço direito e fui lentamente arremessada pro lado de Daniel, e notei que um carro preto havia batido em nós.

– Você está bem? – ele afirmou com a cabeça. Quando estávamos nos ajeitando no banco, outro forte baque. Passei a mão pela minha testa e senti uma ardência. Estava sangrando. Duas batidas? Eu estava furiosa.

Vi o carro preto deixando a rua e Daniel permanecia mudo. Saí para ver como a caminhonete ficou, e a lateral da porta estava amassada e o farol quebrado. Já estava escuro, mas percebi quando o mesmo carro voltou em nossa direção em alta velocidade. Comecei a correr, tentando fugir e gritar para que Daniel saísse, só que o carro nem sequer passou perto dele. Ele não era o alvo.

A pessoa que conduzia o veículo estava encapuzado, mas ele tinha um colar dourado, bem pequeno, que só consegui ver por causa da luz do poste. Não avançou em minha direção, apenas ficou me olhando nos olhos, enquanto eu permanecia em desespero, mas quieta.

O carro se foi, novamente. Ergui a cabeça de Daniel e lhe dei um tapa estalado no rosto.

– Por que fez isso?

– Se não quiser levar outro, é melhor meter o pé nesse acelerador. – falei com raiva entrando no carro, esperando que ele voltasse logo ao normal.

– Você viu quem estava dirigindo?

– Estava com o rosto coberto. – falei, arrumando a bolsa em meu colo. – Você é uma donzela mesmo, não é mesmo, Daniel? Não ajudou em nada!

– Você sempre soube se defender melhor do que ninguém.

– É verdade – concordei com um sorriso nos lábios e o vi voltar às ruas, chegando no meu apartamento. Não questionei. Se ele achava que era melhor me trazer de volta ao invés de prosseguir com o nosso jantar, eu não iria insistir. – Não se esqueça de levar ao mecânico. E, boa sorte com seu pai, você vai precisar. – disse rindo e lhe lancei um beijo no ar, entrando no prédio. Ele saiu.

Alguém me queria ferida e, se dependesse de mim, isso não aconteceria tão cedo.

Não havia pássaros cantando e nem pessoas andando com pressa nas ruas. Um silêncio opressivo pairou e só se ouvia o som da minha calma respiração, mesmo que por dentro eu estivesse a mil. Sinto-me tão egoísta por desejar mais do que possuo, sendo que existem pessoas que não têm nada para cobrir o próprio corpo.

Como se nada nunca estivesse bom o suficiente e que, em cada momento de ausência das minhas falas e de pessoas ao meu redor, minha mente fosse fazer outra acusação, aumentando minha inúmera lista de defeitos. Em alguns momentos de desespero, a única alternativa é ir ao banheiro, trancar a porta, ligar o chuveiro, sentar no chão... e chorar.

Fui ao mercado, pela manhã, comprar algumas verduras para o almoço. O cheiro era misturado e os temperos confundiam minhas narinas. Fui até a banca de peixes e fiquei encarando aqueles olhos esbugalhados.

– Eu escolheria o Purchase. – uma voz me assustou de repente. Me virei e não contive um sorriso largo.

– Mirela! – dei-lhe um abraço longo e apertado. – Que saudades!

– Eu também sinto sua falta. Não te vejo desde o velório.

Ela foi a melhor madrasta que eu já tive. Paguei o Purchase e fui na sua companhia até a banca de tomates. O sol já estava ficando mais forte e as sacolas penduras nos braços do pessoal, faziam movimentos rápidos indicando a pressa para o tradicional almoço de domingo.

– Nós precisamos marcar de sair algum dia. – peguei os tomates e guardei a carteira na minha bolsa de mão.

– Hoje haverá uma festa lá em casa para comemorar meu aniversário.

– Espere, achei que seu aniversário fosse só daqui a dois dias!

– Estou aproveitando o final de semana para que todos possam ir.

– Ah, compreendo. Mas, não sei se poderei ir.

– Você não fará uma desfeita dessas, não é mesmo? – perguntou, sorrindo, e deu uma piscadinha. – E o mais divertido é que será com o tema indiano, porque você sabe da origem dos meus pais, e como eles estarão lá, não quero que eles se sintam desconfortáveis. – era perceptível como ela ficava feliz em falar sobre os seus pais e em me fazer algum convite. – Espero você lá. – me deu um beijo no rosto e saiu.

A beleza em seus cabelos pretos era tão notável quando a verdade em sua fala. Fui embora preparar o almoço porque seria um longo dia. Antes de tudo, pesquisei as roupas que as indianas usam e saí, rapidamente, para ir ao centro.

Droga! Todas as lojas fechadas.

– Mirela, sou eu, Lisa.

– Oi meu bem, o que aconteceu?

Mesmo ela sendo vinte e seis anos mais velha que eu, sempre me senti confortável para expor meus pensamentos e angústias. Parecia aquela mãe que você não sente vergonha de nada e quer sempre por perto.

– Não tem como ir hoje à noite, está tudo fechado! – dessa vez eu realmente não estava fingindo; eu queria ir à festa.

– Vem aqui para casa e nos arrumamos juntas! – um sorriso se abriu no meu rosto. Chamei um táxi e logo disse o endereço.

O caminho inteiro fiquei ansiosa, imaginando qual roupa ela iria me emprestar. Estava muito empolgada! Talvez fosse pelo fato de ela ter preenchido aquele espaço que por um longo tempo, gritou loucamente por carinho e compreensão.

O portão se abriu e fui ao seu encontro.

– Venha! – suspendeu a saia para não arrastar no chão, me serviu um copo de suco e fomos para o seu quarto, já que o restante da casa estava de pernas pro ar por causa dos preparativos. Uma moça bateu na porta e entrou puxando uma enorme arara coberta e a deixou perto do closet.

– Ainda temos muito tempo para escolher, por que não se senta? – e me acomodei em sua cama.

– Você está bem? – eu sei, talvez o melhor a ter feito fosse ficar calada, mas sempre esteve óbvio pra mim que ela amava o meu pai.

– Estou me conformando ainda. – ela disse, sorrindo com uma expressão triste. Por que as pessoas sorriem quando querem chorar? Eu sei que minto sobre meus sentimentos, às vezes, mas qual o problema de dizer a verdade sobre o que você sente? – E você, como está? – e fiquei mais tempo em silêncio do que achei que tinha ficado.

– Bom, não sei te responder. – ela pegou uma bandeja de biscoitos que estava no criado-mudo e me ofereceu. Recusei alegando estar cheia e ela mordeu um pedaço, fazendo os farelos caírem no branco do lençol.

A tarde passou rápida com as novidades de Mirela ecoando naquela casa vazia, apesar de muito movimentada. Depois daquela festa, seria só ela e as empregadas.

– Você não sente falta de uma companhia?

– Quer saber se estou namorando? – nós rimos, mas aquela não foi a minha pergunta. – Quem namoraria uma velha como eu? – ela deu um sorriso e fechei a cara. Que absurdo!

– Vem aqui! – peguei em seu braço e seguimos até o banheiro. Coloquei seus cabelos para trás da orelha e ficamos lado a lado. – O que você vê? – perguntei cautelosamente e ela apoiou os braços na pia.

– Uma mulher sem graça e feia.

Eu amava Mirela, mas quase empurrei seu rosto contra aquele espelho. É isso que me dá vontade de fazer quando pessoas como Mirela se descrevem desse jeito. "Enxergue o que há de mais belo em você!" Eu queria gritar.

Uma mulher baixinha chegou avisando:

– Os convidados estão chegando! – e saiu nos deixando eufóricas.

Ela me entregou uma toalha, pegou outra pra si e fomos cada uma para um banheiro, tomar um banho rápido. Ao chegarmos em seu quarto, a mesma moça veio até nós e abriu o zíper da arara relevando lindos salwar kameez.

– Não há muito tempo, então escolha. – ela me alertou e peguei um azul, cravejado com pedras delicadas e deslumbrantes. Mirela se trocou e colocou um maravilhoso salwar kameez vermelho.

– E isso é assim – pegou uma parte do tecido e cobriu meu rosto, deixando apenas meus olhos à mostra e prendeu o pano atrás do meu cabelo.

– Estou me sentindo como uma assaltante. – nós duas rimos. – Não irá colocar também?

– Como eles vão saber quem sou eu? – ela sorriu e foi ao banheiro se maquiar. – Kiara vai te ajudar. – e a mulher veio até mim, acendeu a luz para que ficasse mais iluminado e passou uma sombra que deixou meu olhar marcante. Eu estava bonita e não sei se gostava dessa sensação. Mirela veio até mim e me entregou pulseiras e colares.

– Sabe o que eu vejo? – perguntei quase sussurrando. – Uma mulher maravilhosa, que acima de tudo, é forte e determinada. – ela apertou minha mão e considerei aquilo como um agradecimento.

– Você me acompanha? – me perguntou, com os olhos brilhando e fomos até o jardim, onde a festa estava acontecendo. Um forte holofote mirou em nós e, todos nos encaravam. E depois vieram aplausos.

Só conseguia ver uma aglomeração de mulheres com rostos cobertos iguais ao meu, usando colares coloridos e, pelo movimento do pano, muitas sorriam para nós. A música parou e o som do microfone foi ligado. Mirela deu um passo à frente e o pegou.

– Obrigada a todos que vieram, e curtam a festa! – todos novamente aplaudiram e descemos do pequeno palco. Os homens estavam no fundo, usando um panjabi cor padrão roxo, combinando com o tecido que envolvia as luminárias.

Estava tão cheio que mal conseguia andar sem esbarrar em alguém. Mirela segurava meu braço enquanto cumprimentava uns senhores. O garçom passou por mim, servindo um doce com formato de bolinho, mas eu não sabia o que era. Peguei um e mordi. Mas, logo que o caldo escuro chegou à minha boca, eu tive vontade de cuspi-lo, mas fui obrigada a engolir tudo e fingir que estava uma delícia. Era complicado suspender o pano para comer, mas, já que todas estavam fazendo daquela forma, eu não seria o patinho feio.

Com todos cumprimentando Mirela, acabei me soltando de sua mão e até achei melhor ficar longe de tanta gente. Perto da piscina havia algumas poltronas e, como ali a quantidade de pessoas era menor, eu acabei me sentando. Fiquei observando a lua cheia com as mãos no colo, até que Mirela veio até mim, sorrindo e afobada.

– Meus pais querem te conhecer. – falou. Eu a segui até uma mesa cheia de salgadinhos variados. Seus pais estavam olhando para o lado, desatentos, como se procurassem por algo. Talvez fosse por mim.

– Olá senhor e senhora Stragold. – disse, sorrindo, e eles me olharam. A mulher estava com o rosto descoberto, revelando seus dentes brancos e grandes.

– Então você é a famosa Lisa? – perguntou, rindo, estendeu a mão e a apertei.

– Famosa eu não sei, mas eu sou a Lisa. – e cumprimentei seu marido também. Estiquei minha mão e alcancei um doce, também desconhecido, com uma camada colorida em volta. Quando mordi, percebi que não era um doce, e sim, um salgado com recheio de camarão.

– Ouvimos falar muito de você, pequenina. – seu marido disse.

– Espero que apenas coisas boas.

– De acordo com Mirela, você é um verdadeiro anjo.

– Ela exagerou muito nessa parte. – disse rindo e me virei para olhar Mirela, mas ela não estava mais lá e, todos iam numa direção oposta, formando um formigueiro.

Eu, o senhor e a senhora Stragold, fomos também para saber o que estava acontecendo. No palco havia um bolo decorado e, ao lado dele, Mirela, toda contente. No telão, apareciam várias fotos dela com um rapaz mais novo que eu. Na caixa de som, saía o barulho de sua voz contando como Mirela era importante. Já que estavam fazendo uma homenagem, eu também queria dizer algumas palavras. Quando ele terminou, subi no palco, dei um abraço nela e peguei o microfone.

– Não trouxe fotos para colocar no telão e nem terei palavras tão lindas quanto às de seu primo, para te falar, mas gostaria de pedir a todos vocês, que estão presentes aqui, que incluam essa mulher de fibra em suas orações. Desejem tudo o que gostariam que fosse desejado a vocês, porque ela não é só mais uma guerreira: ela é minha mãe. – disse, com lágrimas nos olhos, e recebi aplausos e assovios, além do abraço acolhedor de Mirela. Chamar Mirela de mãe foi incrível, como se eu, realmente, estivesse fazendo uma revelação. Quem dera se fosse verdade...

As luzes foram apagadas, as velas acesas e segurei em sua mão, enquanto todos cantavam parabéns. Depois de muito tempo, finalmente percebi que estar ao lado de quem você ama é a melhor forma de valorizar a vida e eternizar os momentos.

Ela partiu o bolo e os garçons foram distribuindo os pedaços, de mesa em mesa. O DJ colocou uma música eletrônica que fez com que todos começassem a se mexer na pista de dança. Eu estava em uma festa, rodeada de felicidade e de pessoas alegres, então por que não aproveitar também? Tirei os sapatos e fui com Mirela dançar. As luzes faziam com que ficássemos todos pintados e era divertido. Resolvi me retirar, embora eu pudesse ficar minha vida inteira dançando.

Estava voltando para o lugar calmo de antes, quando acabei trombando com um rapaz distraído e o joguei na piscina.

– Vai me ajudar ou ficar olhando para as árvores? – ele perguntou e voltei meu olhar para a água. De novo era ele! Só podia ser perseguição. Estendi minha mão e ele a segurou, subindo na borda da piscina e ficando ao meu lado.

– Me desculpe. – falei, sem graça, e me recuperei rapidamente, porque lembrei de que, com aquela roupa, não daria pra ver quem eu era. Ele passou os dedos nos cabelos molhados e ficou olhando para sua roupa. – Vou arranjar algo pra você se secar. – disse, e fomos para os fundos da casa, entrando por uma porta de madeira, que dava para a cozinha.

Ele foi tocar em uma boneca de porcelana e a deixou cair e quebrar.

– Você parece uma criança! – disse, brava. Fui ajudá-lo a catar os cacos no chão, mas ele estava rindo. Qual o problema desse cara? Subimos as escadas e fomos até o quarto de hóspedes, onde abri um armário e lhe entreguei uma toalha.

– Tem como arranjar uma roupa pra mim? – ele perguntou. – Pode ser qualquer uma, porque não dá mais pra voltar para a festa, desse jeito e, não posso pegar um resfriado.

Ele bufou e comecei a procurar nas gavetas, só que todas estavam vazias. Fui até o quarto de Mirela e revirei as gavetas, procurando por alguma calça, até achar um moletom. Voltei para o quarto de hóspedes e, quando abri a porta, ele estava sem camisa secando seus braços.

– Eu não vou usar uma calça de sapinhos! – ele começou a gargalhar. Naquele momento, toda a atmosfera de raiva que eu estava sentindo foi quebrada pelo som de sua risada. Droga, Karl, você é um idiota.

– Você disse que podia ser qualquer roupa! E, além de molhar o piso inteiro, ainda quer decidir o que vestir?

– É que eu me esqueci que eu fui parar na piscina, por vontade própria. – ele disse irônico e fiz uma cara feia. Pegou a calça, entrou no banheiro e foi se trocar. Quando saiu, comecei a rir. – Não estou lindo? – ele disse, rindo, e as cordinhas rosas se balançaram. Fui em direção à porta, quando ele me repreendeu: – Onde pensa que vai?

– Voltar pra festa?! – ele pegou no meu braço e me puxou fazendo com que me sentasse na cama.

– Eu não vou voltar para a festa, por sua culpa. Então, acho justo você me fazer companhia. – se sentou numa cadeira e foi minha vez de bufar.

– Pelo menos me livrei desses velhos dançando.

– Me agradeça por isso. – ele deu uma piscadinha e riu. Também ri. – Mas, já que você vai ficar super magoada por não vê-los dançando, sem problemas, agora você tem um dançarino particular.

Ele se levantou, ficou de costas para mim, levantou a mão esquerda e começou a rebolar. Não me segurei e comecei a rir.

– O que está fazendo?

– Essa é a introdução do espetáculo. – e do nada se virou pra mim e começou a imitar os passos do Michael Jackson, só que em uma versão pior. Ele jogava os cabelos e fazia caras e bocas, me arrancando altas gargalhadas.

– Você chama isso de dançar? – perguntei desafiando-o. – Conheça a mestre em sedução.

Eu me levantei e tentei imitar os mesmos passos que ele havia feito, só que como o pano da minha roupa era longo, eu acabei tropeçando e caindo.

– Se não fosse pelo meu tombo, eu ganharia da sua dança facilmente. – zombei, e continuamos rindo. Nós os recompomos e liguei a TV, mas quase não dava para ouvir, por causa da música alta, lá fora.

– Foi bom você ter me jogado na piscina.

– Por quê?

– Aquela roupa fazia tanto calor que, por um momento, achei que fosse desmaiar.

– Ah, e você acha que estou confortável, vestindo isso? Deve ter uns três panos por cima do outro, além do meu nariz e minha boca estarem cobertos!

– Por que não tira isso do rosto?

– Vai que você grava meu rosto e começa a me perseguir? – brinquei, rindo, e ele colocou a mão no peito, fingindo estar magoado.

– Está achando que sou um maníaco, é?

– Nunca se sabe.

– Tudo bem, não precisa tirar o pano. – e pegou na baleia de prata que eu não havia tirado. – Colar legal.

– Legal? – fiz uma cara de decepcionada. – As baleias são mais que isso, ok, senhor sapinho?

– Senhor sapinho? Cuidado como me dirige a palavra, senhorita baleia! – e nós voltamos a gargalhar. Um tanto quanto infantil, mas se as crianças são as criaturas mais felizes da terra, é uma honra poder parecer com elas.

– Se um dia eu te encontrar na rua, vou gritar para todos que você é o senhor sapinho e até postarei no YouTube! – estalei os dedos e mexi a cabeça, como se eu fosse incrível. – Diga adeus à sua reputação.

Ele colocou a mão no queixo, pensando.

– E se eu quiser acabar com a sua reputação, como farei? – ele perguntou, olhando para o tecido no meu rosto e logo eu tive uma ideia.

– Lembra do colar. – falei sorrindo. – Se alguém estiver usando ele, sou eu, ou então fui roubada. – nós rimos e ele fingiu anotar em um caderninho invisível a minha dica. A música parou e olhei pela janela. Dali, percebi que os convidados se retiravam.

– Bom, senhorita baleia, acho que já está na minha hora. – então o ajudei a pegar sua roupa molhada e fomos até os fundos da casa para que ele seguisse seu caminho.

– Se você, por um acaso, me ver na rua e não me der nem um olá, eu irei socar essa carinha bonitinha. – disse, brincando e quando eu olhava dentro de seus olhos por muito tempo, eu me sentia desconfortável, quase como se ele estivesse descobrindo meus segredos. Mostrei meu braço e fiz uma pose de durona, como uma lutadora.

– Pode deixar, não quero ficar arrebentado.

Ele riu, puxou meu braço e pegou uma pulseira.

– Se eu ficar igual um idiota, sem saber o que dizer quando te encontrar, arranjarei um pretexto, dizendo que era pra te entregar isso. – falou e foi caminhando até o portão.

– Você já é um idiota. O senhor sapinho idiota! – eu gritei e nós dois gargalhamos. Deu um aceno, se despediu de Mirela e depois o perdi de vista. Nem eu estava acreditando que eu o havia chamado de sapo!

Mirela fechou o portão e veio até mim com uma expressão confusa e engraçada.

– É impressão minha ou aquela era a calça do meu pijama? – e comecei a rir ao lembrar-me da sua dança.

– Eu acabei por derrubá-lo na piscina e emprestei seu pijama. Espero que não se importe.

– Tudo bem, eu ia doá-lo mesmo. Estava muito infantil. – ela riu e fomos para a sala onde os empregados guardavam seus uniformes em mochilas.

Tudo estava silencioso, exceto o barulho do DJ, arrumando a caixa de som. Eu e Mirela fomos nos deitar.

O vento mal educado entrou pela janela, sem pedir permissão, ultrapassando as cortinas brancas como asas de borboletas sem lar, que vagam por entre as árvores procurando um lugar para chamar de seu. Os fios dos meus cabelos eram balançados, ferozmente, e sem aviso algum, como nossos problemas inusitados. Aperto o lençol azul com força, criando coragem para me levantar dessa cama que abriga meu corpo desajeitado.

Vou até o banheiro, abro a torneira e deixo que a água transparente passe por entre meus dedos que tanto já sentiram e maltrataram. Molho meu rosto e deixo que aos poucos, as gotículas decidam, por conta própria, evaporar.

Minha sobrancelha está por fazer e com alguns fios querendo ter a atenção só para si. Aproximo-me ainda mais do espelho, com os cotovelos apoiados na pia, e as costas inclinadas, vendo meu reflexo. Enormes cílios curvados e olheiras profundas. Desacelero minha respiração, de modo que somente os sons dos grilos possam ser ouvidos. Olho dentro dos meus próprios olhos e nada vejo, como se a janela da minha alma tivesse sido devorada por lobos famintos, em plena madrugada de lua cheia. Só dois círculos negros como um abismo, abismo em que até Alice caiu. Ah, doce Alice, por que não me empresta as maravilhas do seu mundo por um breve instante?

Fui até a cozinha e encontrei Mirela sentada em uma banqueta preta perto do balcão de mármore. Dei-lhe um beijo e me sentei ao seu lado, pegando uns biscoitos caseiros.

– Bom dia. – falou, bebericando o suco de laranja.

– Bom dia. – e peguei um pedaço de queijo. As empregadas já haviam chegado e estavam terminando de arrumar a pia.

Subi as escadas e troquei de roupa, colocando uma regata branca e um short jeans. Peguei as vassouras enquanto elas pegavam os rodos e, Mirela, molhava o gramado. Primeiro, fomos ao jardim catar as embalagens espalhadas pelo chão e as colocamos numa sacola de plástico. Depois, jogamos um produto no porcelanato, onde um senhor deixara o vinho cair. Mirela jogou água no meu rosto com a mangueira.

– Você não devia ter feito isso.

Comecei a correr atrás dela e soltávamos altas gargalhadas. Ela entrou na casa, me deixando ensopada do lado de fora. Deitamo-nos no chão, e ficamos rindo até que uma dúvida me veio à cabeça.

– De onde você conhece Karl Bonnie?

– Ele era um conhecido de seu pai. Por quê? Ele te fez algo? – perguntou, já preocupada, e um flashback do que nós passamos veio à tona, me deixando perturbada.

– É que eu não sabia que vocês se conheciam.

– Ah, quando eu ia ver seu pai, às vezes Karl aparecia lá. Mas sempre conversamos pouco porque seu pai preferia que eu fosse embora quando ele chegava.

– E você sabe sobre o quê eles conversavam?

– Eu não sei, meu bem. Eles já discutiram umas três vezes quando eu estava lá, e conseguia ouvir do corredor. Mas, independente disso, eu o convidei por educação. – respondeu, com sinceridade, e tentei deixar esse assunto pra lá.

Fiquei para o almoço onde foi servida uma macarronada com molho português. Despedi-me de Mirela com um forte abraço. Agradeci por tudo e disse que já era segunda-feira e que eu precisava trabalhar. Ela me levou até o portão de grades onde seu motorista de cabelos grisalhos e quepe me esperava com a porta do carro aberta. Entrei, dei um sorriso de despedida e, aos poucos, nos distanciávamos.

Distraída, só percebi que chegamos ao meu apartamento quando o motorista tossiu e entrei no prédio.

– Boa tarde, senhorita Lisa! – Fausto disse sorridente.

– Boa tarde.

E continuei andando, quando senti o segurar de leve o meu braço e me entregar uma caixa.

– Chegou hoje de manhã.

A caixa não estava pesada, o que me causou um pouco de curiosidade. Afinal, o que de tão leve haveria ali?

Tomei um banho demorado porque precisava esfriar a cabeça. Aquela mesma sensação ruim tomou conta de mim, fazendo meus olhos arderem como se houvesse uma bola de fogo no meu peito, pedindo pra ser liberta. Ali perto estava uma janela pequena, dando vista para uma enorme árvore. Estava ventando muito e as folhas guerreavam umas com as outras, tais como se lutassem pela sua própria sobrevivência.

Comecei a chorar de soluçar, me perguntando o motivo de sempre ter pensamentos ruins quando estou sozinha. Eu sei que peço demais quando deveria estar com a cabeça abaixada, agradecendo pela saúde que tenho e pela vida que me foi concedida. Me culpava a cada minuto que permaneci embaixo daquele chuveiro, com uma voz incansável, dentro da minha cabeça, gritando pro vento “me leva com você”, mas minha boca permanecia tão imóvel quanto meu corpo, enquanto minha mente rodava como saia de bailarina, em pleno espetáculo. Eu não sirvo para ser platéia.

Saí do banho e me enrolei numa toalha florida, fiz um rabo de cavalo frouxo e coloquei um dos poucos vestidos que eu tinha e gostava. Quando cheguei até a cozinha, me deparei com aquela caixa esperando para ser aberta. Levantei a tampa e vi um envelope com um pequeno volume, e quando eu fui puxar para ver o que tinha, várias fotos caíram. Em todas elas, lá estava eu, dando abraços em Amanda; agachada, procurando o melhor ângulo da foto em uma praça, saindo do cinema e, até mesmo da noite anterior, sentada na poltrona no jardim de Mirela enquanto os outros festejavam. Junto veio um bilhete.

“Talvez você esteja errada e eu realmente seja um maníaco,

mas louco por você.

Restaurante Fast Dinner às 20:00”

As clientes Marta e Lúcia chegaram com seus piercings e tatuagens à mostra. Quando recebi o pagamento, coloquei no pote junto com os outros bolos de dinheiro.

Coloquei uma bata branca e um short preto de cintura alta quando os movimentos contínuos dos meus cabelos pararam rapidamente e uma borboleta pousou em meu braço. Fascinada pelas cores vibrantes, também observei a delicadeza das linhas negras. A parte escura a bordava de ponta a ponta, servindo de exemplo para nós como se fossem os males do dia-a-dia. O alaranjado cintilante e o amarelo fosco, formavam uma espécie de risadas e sonhos, porque não existe felicidade sem esses dois componentes. Um leve esbarrão me desprendeu dos meus pensamentos e, como não se pode prender aquilo que nos encanta, deixei o rascunho da minha vida voar por entre os prédios altos da cidade.

Cheguei ao Fast Dinner, que era muito arejado e com as paredes pintadas de verde. Havia muitas pessoas, algumas comendo e outros, com a atenção voltada para o celular com seus dedos ágeis, digitando. Ele estava lá no fundo, sentado em um banco de couro vermelho, com seus olhos vidrados em mim.

Caminhei pelo restaurante e me sentei em sua frente, esperando um “seu cabelo está muito bonito”, ou até mesmo “você está atrasada dois minutos.” Qualquer coisa. Eu apenas queria que aquele silêncio não existisse mais.

Fiquei passando as unhas pela minha coxa descoberta enquanto o nervosismo tomava conta. Ergui a xícara de café que ele havia pedido pra mim e bebi, fixando meu olhar em um ponto preto no quadro pendurado.

– Como sabia que era eu? – decidi perguntar e ele apoiou os braços na mesa.

– Alguém me jogou na piscina e disse que iria me arrebentar. Como não ser você? – ele disse, rindo, e abaixou a cabeça. – E, além de tudo, é impossível não reconhecer seus olhos.

– Existem outros olhos pretos por aí.

– Não iguais aos seus.

Minhas malditas bochechas denunciavam tamanha vergonha que senti ao escutar aquilo.

– Por que não disse que sabia quem eu era?

– Você não queria que eu soubesse.

– Por que tirou aquelas fotos? – eu sei, eram muitas perguntas que eu estava fazendo, mas eu não via sentido em fazer voltas em um assunto que, certamente, só existia uma resposta.

– Sabia que iria me perguntar isso. – ele riu e abaixou a cabeça. É, vejo que também sou previsível. – Você vive ocupada, tirando fotos dos outros que só querem parecer sexy ou ganhar elogios nas redes sociais. Embora eu não seja tão bom quanto você na câmera, resolvi tirar fotos suas, espontâneas, porque, além de ser um pedido de desculpas, você fica mais bonita quando não finge ser quem não é.

Droga, droga, droga! Eu não sabia o que pensar depois de tudo aquilo que ele me disse. Primeiro, pede desculpas e depois diz que finjo?

– Está dizendo que sou atriz nas horas vagas?

– Eu só estou dizendo que... – entrelaçou suas mãos no meio das pernas e me olhou com o maxilar travado. – Francamente, você é muito difícil de lidar.

– Talvez você que seja.

– Sabe, – olhou para o chão e depois para mim, como se estivesse captando as palavras certas para me dizer. – não entendo porque você é desse jeito.

– Cada um se defende da sua maneira. – ele riu e puxou meus ombros para que eu o olhasse.

– Eu não estou te machucando, então por que se defende? – revirei os olhos. Foi a única coisa que consegui fazer, quando minha maior vontade era de responder “estou me defendendo de mim mesma, seu panaca”, mas apenas voltei a beber o café. – Track disse que você me visitou no hospital.

– É, seu irmão ficou muito mal por você.

Queria lhe dizer muito mais do que eu conseguia expressar, mas era como se houvesse uma âncora dentro do meu peito, puxando meus sentimentos para o lugar mais distante de todos e não conseguisse retornar.

– E você também foi me ver na boate.

– Eu sei, eu estava lá. – encontrei uma brecha pra trazer de volta um pouco de humor entre nós, porque era horrível ficar com aquela tensão pairando. Não sei se o que penso faz sentido, mas, em algum lugar, deve fazer.

– E a enfermeira pediu pra você sair, só que eu não retruquei.

– Está tudo bem. – disse, sorrindo. Só que, esse era o problema: não estava tudo bem! Na verdade, não estava nada bem. Eu queria pegar uma borracha para apagar meu passado e deixar que apenas as lembranças boas ficassem. Mas, se eu conseguisse fazer isso, Karl seria apagado também, e tenho medo disso.

– Eu deveria ter dito pra você ficar.

– Era o que você queria?

– Não. – e pela primeira vez ele se arriscou a pegar na minha mão e dar um sorriso indiscreto, sem aquela neura de “será que ela vai recuar?” Ele, simplesmente, fez, e queria que sempre fosse assim. – É o que eu quero.

– Acho que esse seria um bom momento para eu começar a usar a pulseira como pretexto, porque eu é que não sei o que dizer agora.

– Podemos falar sobre como essa batata está gostosa.

– Ah, e crocante! – e mastiguei uma só para ele ouvir o barulho, e começou a rir.

– Ou então podemos falar sobre como você é gulosa.

– Talvez eu faça jus ao meu apelido de senhorita baleia. – nós dois rimos novamente e ele olhou para o colar, por alguns instantes.

– Posso ver? – e concordei, ficando de costas para que ele o retirasse. Coloquei meu cabelo pra frente e senti seus dedos tocarem em minha pele, assim como Daniel fizera, só que era diferente, porque, com Daniel, eu queria dizer que seus dedos me faziam cócegas, e com Karl eu queria dizer que ele nunca parasse de me tocar.

– É muito bonito, não é? – só que ele não respondeu, porque estava concentrado demais na corrente. Ficava girando ela pra lá e pra cá, passando o indicador pelo colar tentando sentir sabe-se lá o quê!

– Eu tenho uma prima que adora baleias, posso levar comigo e depois mandar fazer outro igual?

– Sem problemas. – sorri e chamei o garçom que anotou o meu pedido de Coca-Cola num bloquinho. – Mirela disse que a calça é muito infantil e que você pode ficar com ela.

– Diga a ela que eu estou muito agradecido, porque minhas noites ficarão ainda mais quentes.

– Até porque é super excitante dormir com alguém que usa calça de sapinhos.

– Eu não me referi a isso. – e ele voltou a gargalhar. – Você é muito pervertida, alguém já lhe disse isso?

– Sim, o seu irmão. – começamos a rir, olhei ao redor e não havia mais ninguém no restaurante, somente Karl e eu. – Nossa, já são 23:57! – disse, surpresa, ao olhar para o relógio redondo de parede.

Karl pediu a conta, peguei minha jaqueta e me levantei da mesa. O vento jogou o guardanapo para longe, e, quando fui pegá-lo, um barulho de metal banhou nossos ouvidos.

Ele agachou e o segurou, erguendo o medalhão na altura dos meus olhos.

– O que significa isso? – não sei qual o motivo para conseguir mudar de humor tão rápido. Ah! Minha culpa, sempre minha culpa.

– E-eu ia olhar com mais calma, acabei esquecendo no bolso. – o que dizer? Como me explicar? Não havia feito nada de tão grave, então por que parecia haver setas apontando pra mim como acusada?

– E desde quando te dei permissão pra tocar em algo meu?

– Me desculpe! – disse, me rendendo. – Eu só gostaria de saber o que significava esse tigre.

– E não era mais fácil perguntar ao invés de roubá-lo de mim? – ele estava cuspindo ódio. Qual o problema? Era apenas um medalhão!

– Está me chamando de ladra? – e vi um garçom correndo em nossa direção. Quer saber? Chame-me como quiser, Karl, você sempre continuará sendo um idiota independentemente do que disser.

– Sem brigas, por favor.

– Não se preocupe comigo, meu amigo. – falei virada pro garçom. – Nunca mais voltarei com esse sujeito aqui. – e puxei a porta de correr sentindo o vento gelado no meu rosto.

A rua deserta é um cenário maravilhoso com as estrelas decorando o céu. Ouvi passos contra a brita no chão e logo Karl estava ao meu lado. Ficamos andando juntos por um longo tempo; ele com as mãos no bolso e eu, abraçando meus próprios braços.

– Não entendo porque tanta raiva. – próximo de nós havia uma fonte, então fomos até ela e nos sentamos na sua borda fria.

– O medalhão, é importante pra mim. – respondeu, olhando para os seus pés que balançavam num ritmo calmo.

– Deve ser mesmo, pra você ter ficado daquele jeito.

– Eu fiquei nervoso. – dava pra ver de longe o pequeno restaurante com suas luzes amarelas como vagalumes naquela escuridão.

– Estou cansada disso, Karl. – minhas orelhas gelavam cada vez mais; Karl ficou em silêncio e meu coração estava acelerado porque seu perfume me desconcentrava.

– Disso o quê?

– Você. – ele se virou pra mim, todo sério, com os cabelos desajeitados ao vento.

– Cansada de mim?

– Das suas atitudes. – e cruzei minhas pernas fazendo desenhos imaginários na beirada da fonte. Gostava daquele clima frio porque lembrava minha infância.

– Você está certa, eu realmente sou um idiota. – ele disse com um sorriso fraco nos lábios. Sorri também.

– Você apenas age como um. – ele se levantou e ficou de costas pra mim, olhando para o nada. Não entendia porque, às vezes, queria esmurrar Karl e outras, abraçá-lo e dizer frases que amansassem seu coração sofrido.

– Você é feliz, Lisa? – perguntou, devagar, fazendo que as letras dançassem em sua boca. Não respondi de imediato, porque ninguém nunca havia me feito uma pergunta assim.

– Nunca ouviu dizer que felicidade não é questão de ser, e sim, de estar?!

– E você está feliz agora? – eu não sabia o que estava se passando naquela mente e isso me deixava cada vez mais angustiada.

– Estou. – levantei seu queixo fazendo que ele olhasse pra mim, quase como um “se você está aqui, então como não ficar bem?” – E você, está?

– Sinto falta de ser criança.

– Eu também.

– Quando eu era menor, essa fonte costumava ficar cheia de moedas.

– Por quê?

– Diziam que se você jogasse alguma moeda, um marujo sairia dessa água e realizaria nossos desejos. Mas, todos pararam de acreditar quando descobriram que era a mais pura mentira.

– Você já jogou alguma moeda?

– Já. – ele disse, sorrindo, fitando o chão e depois me olhou. A mesma mania de sempre.

– Faz quanto tempo?

– Dois dias.

– Você acredita que irá aparecer um marujo e realizar seus sonhos? – e abaixei um pouco minha cabeça pra enxergar as moedas no fundo.

– Não.

– Então por que jogou?

– Sabia que muitas pessoas que jogaram as moedas tinham consciência de que nada seria realizado? Mas elas jogam porque precisam voltar a acreditar.

– Acreditar em quê? – na certa, minha expressão era de confusão, então ele pegou sua carteira marrom do bolso, colocou a moeda na palma da minha mão e disse:

– Faça um pedido. – fechei meus olhos, respirei fundo e ouvi o barulho da moeda batendo na água.

O caminho inteiro fomos rindo das bobagens que Karl contava e, de como ele achava The Strokes ruim. Eu contestei, embora gostasse realmente apenas de duas músicas. Ele também me contou que, de uns tempos para cá, passou a gostar de The Kooks e a música que eu mais escutava deles era Seaside.

– Chegamos. – ele disse ajeitando sua jaqueta.

– Eu sei.

– O que você desejou?

– Se eu te contar o desejo, ele não irá se realizar.

– E depois vem dizer que a mágica não está na fonte! – disse, brincando, e comecei a rir. De fato, eu não acreditava.

– Me fale primeiro o que você pediu. – ele coçou a cabeça e depois riu. Deu as costas, abaixou a cabeça e continuou rindo.

– Por que está rindo de tudo?

– É melhor rir agora, que estou inteiro, do que chorar depois que você massacrar comigo.

– E por que eu faria isso?

– Por isso. – sorriu, respirou fundo e largou a jaqueta no chão. Colocou uma mão na minha nuca e a outra na minha cintura, e me beijou. Entrelacei meus dedos em volta de seu pescoço aproveitando o gosto de sua boca. Ele me puxou mais pra si, fazendo nossos corpos se chocarem e nossas respirações se confundirem. Quando interrompeu o beijo, ele sussurrou na ponta do meu ouvido:

– Desejei que você fosse minha. – e saiu andando com aquele jeito engraçado, enquanto a luz do poste iluminava seus cabelos castanhos. Minha boca queria gritar “seu pedido está se realizando, idiota”. E entrei com um sorriso escancarado, no meu prédio.


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Notas finais do capítulo

Não revisei muito esse capítulo, então peço que me avisem qualquer coisa! Obrigada por ler e te vejo amanhã :D



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