Coração de Porcelana escrita por Monique Góes


Capítulo 35
Capítulo 34 - Almishak


Notas iniciais do capítulo

Velho, eu fiquei tãão animada pra esse capítulo, vocês não tem ideia xDD



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Capítulo 34 - Almishak

Near

Eu gostaria de começar esta carta como outra qualquer, com um “Como você vai?” ou “Espero que esteja bem”, mas este infelizmente não é o caso.

Sei que devo muitas respostas a você, o porquê ter lhe posto nesta situação extremamente desagradável, lhe separando de sua família e conhecidos por todos estes anos. Sei que você com certeza já deve ter formulado alguma teoria com base no que me levou a fazer isso, pois certamente já deve ter ouvido falar de mim ou da minha família.

Não posso lhe dizer se a realidade é melhor ou pior do que parece, pois não sei o que pode ter pensado. Não posso dizer também que me orgulho de tê-lo transformado no significado literal de seu nome, mas situações desesperadas pedem por medidas desesperadas.

Eu irei encontra-lo o mais rápido quanto o possível e lhe explica tudo, mesmo que meu status de “desaparecida” se mantém desde 52 e minha situação é ruim de certa maneira. O seu sangue também é perigoso, o que lhe põe em estado de risco, mais do que imagina.

Isso não significa que eu não vá tentar consertar as coisas. Não posso lhe devolver os anos perdidos, mas posso acabar com a sua maldição, já que fui eu que a lancei. Eu já recolhi as três chaves restantes, junto a esta que eu havia deixado com a Mãe d’água. Eu sei onde você está.  Sua maldição terminará antes do que você imagina.

Haydée.

Near não sabia que era possível reler uma coisa tantas vezes em tão pouco tempo como já havia feito com a carta de Haydée. “Não posso lhe dizer se a realidade é melhor ou pior do que parece” e “O seu sangue também é perigoso, o que lhe põe em estado de risco, mais do que imagina”.

O que ela queria dizer com isso? A realidade já era ruim o suficiente sendo um boneco e estando em um mundo seis décadas adiante à sua época, e como seu sangue poderia ser perigoso? Ele era filho de Charles Toy, dono da rede de joalherias Tagas. A joalheria era um negócio de família – e pelo que sabia, no máximo, era que os Toy haviam vindo da Inglaterra, não necessariamente no Mayflower, mas eram puritanos, embora esse fator religioso houvesse sido abandonado mais tarde -, e sua mãe provinha de uma família de médicos e advogados. Como filha única, lhe fora deixada uma extensa herança. O mais perigoso que poderia pensar era alguém querendo pegar o dinheiro da família.

Mas havia o que lhe fora dito em Dhor Faldor.

Claro que a situação poderia ter se revertido nos ditos sessenta e tantos anos. Poderiam ter perdido tudo, poderiam ter ganhado mais. Havia aquele loiro mal encarado que tinha o seu nome, mas não se sentia muito disposto a falar com ele. Via que em algum momento, algum membro da família atraiu a atenção de algum membro da família real bruxa – já que percebera que eles eram primos de Vincent -, e o dito cantor que Claire mencionara.

Mas só o fato desses dois já lhe dava pelo menos uma prova como os tempos e a família em si haviam mudado. Seu pai quase o matara quando descobrira que ele, como filho mais velho, não demonstrava interesse em seguir a joalheria, e sim queria se formar em veterinária. Não se lembrava do baque em si quando fora agarrado pelo cabelo e teve a cabeça arremessada contra o balcão de mármore, só de quando acordara no hospital, e sabia que criaria uma confusão familiar se algum membro da família quisesse seguir em qualquer ramo que não fosse  política, negócios, advocacia ou medicina, no caso dos homens. No caso das garotas, era esperado que se casassem tão logo que saíssem do ensino médio, mas se casassem com alguém que trouxesse algum benefício direto à família, donos de empresas sendo os preteríveis. Como possuía Far na mesma faixa etária – óbvio, por eles serem gêmeos – o assunto sempre era trazido à tona quando havia alguma reunião familiar, e era sempre desagradável. Ela era inclusive desencorajada a tentar entrar na faculdade, dizia que formar família era mais importante para ela, como mulher.

Mas com toda a situação em casa, com o pai violento e a sua mãe não podendo fazer nada para sair do casamento, pois as divorciadas eram mal vistas, ele, Mihael e Carol, os quatro mais velhos, além da mãe deles, apoiavam a decisão dela, pois Far teria a oportunidade de tocar sua vida sozinha, embora no fundo não duvidasse que quando percebessem que a sua irmã falava sério, arranjassem um casamento para ela e lhe imporiam a imagem do que achavam que deveria ser seguida.

E quanto à James... Algo lhe dizia que ele não tinha muito contato com a família em si, mas mesmo assim, no seu tempo provavelmente arrancariam aquelas argolas de seu rosto com uma faca.

Uma águia pousou na beirada do navio, e o encarou com seus olhos amarelados. Era um animal segredo, dadas as suas formas inconstantes. Estava sozinho do lado de fora, mas ainda não sabia o que poderia acontecer caso tocasse algo que não lhe convinha. Assim, foi para o interior do navio.

Estava amanhecendo. Com a nova chave poderia passar seis horas sem entrar em contato com a chave, mas fora ativado com a nova relativamente há pouco tempo, portanto não havia necessidade.

Ele era a única pessoa acordada no navio no momento. Sentia-se um tanto solitário, mas isto já virara um fator constante. Claire até fazia um esforço para lhe dar as cordas necessárias e tudo mais, só que tão logo chegaram ao Brasil, ela passava mais e mais tempo com Vincent. Não que sentisse ciúmes da garota. Gostava dela, mas não em vias românticas, só que o tempo que ela passava com Vincent a fazia esquecer-se dele de vez em quando, então ficava congelado como um boneco até que ela se lembrasse de sua existência, tanto que mal sabia sobre as coisas em geral do mundo bruxo. Mesmo que ela lhe repassasse as informações que recebia, eram muito resumidas.

Agora ele passava mais tempo como uma pessoa, mas... Claire passava a maior parte do tempo com seu irmão ou treinando a sua recém-descoberta magia. O que ele poderia falar com Joshua? Assim como Claire, ele era alguém do século 21. E quanto a Markus, Lilith e James, eles eram um grupo em si. Uma família à sua maneira, o que não o fazia se sentir muito impelido a conversar com eles. Assim, Near havia se tornado literalmente o cara que não se encaixava em lugar nenhum.

No momento havia Gitmak. Mas o anão tinha uma propensão a só dormir em comas alcoólicos, pelo que percebera. E... O que poderia conversar com ele, também?

Na mesa havia tecido e o que parecia muito a esparadrapo. Haviam arranjado aquilo para o anjo depois de terem reparado em sua asa quebrada, mas infelizmente o ser acordara.

Nunca em sua vida Near pensara que um dia viria um anjo, e tudo o que sabia era o que lhe fora apresentado em sua vida religiosa. Os três arcanjos, algumas aparições ocasionais de anjos na bíblia, e claro, Lúcifer, o mais belo dos anjos que por fim foi banido. Tirando por ele e o terço de anjos do céu que levara consigo, as aparições eram descritas como “belas e benevolentes” em sua maioria. Claro, pois eles eram os servos de Deus.

Bom, o anjo em questão era belo e não tinha como não admitir. A questão era que ele era muito mais “arisco” do que “benevolente”. Quando despertara, literalmente pulara da mesa num salto e ninguém conseguiu por as mãos nele, que escapuliu mais além, descendo para a casa de máquinas. Foram ainda pelo menos umas duas horas de tentativas de tirarem-no de lá, mas depois dele quase quebrar algo que Near não sabia o que era, mas que fizera Gitmak quase ter um ataque nervoso, decidiram que iam descansar e deixar o anjo se acalmar para então irem ajuda-lo.

E agora estava ouvindo alguns estrondos no andar de baixo. Não eram muito altos, mas lhe davam a certeza de que o anjo estava ativo. Olhou para as coisas deixadas na mesa, e então para as cabines. Com um suspiro, dobrou a carta, pondo-a na sacola que lhe fora dada por Dhonugret, presa em seu cinto, antes de pegá-las e descer.

Não que soubesse como consertar asas de anjos, mas já cuidara de asas de pássaros quebrados. Não deveria ser lá tão diferente. Era só uma pessoa com asas, apenas isso...

Tentava não pensar no que a velha anã dissera. “Você não é bem vindo, reconheço esse cheiro do seu sangue”. Tudo fora complementado com Kisaiya o encarando em silêncio como se não soubesse o que deveria dizer para ele, antes de comentar sobre ler o seu futuro sem muita vontade. Aquilo tudo era por causa da maldição ou por causa de “problemas com sangue”?

Nunca fora muito supersticioso, nem mesmo tão religioso, mesmo com todos os esforços de sua mãe. Mas simplesmente ficara com uma sensação ruim com aquelas três cartas de tarô tiradas para si. A Roda da Fortuna no passado, a Torre no presente, a Morte no futuro. Sem contar os significados em si.

Era melhor não pensar nos fatos no momento. Talvez...

Abriu a porta lentamente, embora tenha sido no momento em que o anjo caíra. Não logo em frente a si, porém viu claramente que ele estava tentando se manter na parte superior, fora dos alcances de qualquer um. A asa direita estava numa posição não muito natural, curvada para frente como já vira nos pássaros com o membro fraturado.

A armadura dele havia sumido, e sabe-se lá como, ele estava com roupas diferentes. Parecidas com a do garoto de mais cedo, Brynjar, porém as calças eram bem mais largas, criando um efeito quase bufante ao serem abafadas pelas faixas. O cabelo preto estava grudado pelo suor e ele ofegava, era claro que estava com dor. Além da queda, da fratura, tinha que se levar em conta que o anjo havia despencado do céu. Com certeza deveria estar com mais coisas quebradas do que apenas uma asa.

Perguntava-se se ele não poderia se curar sozinho, já que tecnicamente era um dos anjos dos bruxos, mas tudo levava a crer que não, ele não podia.

Deslizou para dentro, fechando a porta silenciosamente. Não poderia assustá-lo, mas mesmo com todo o cuidado, o anjo virou-se imediatamente para ele. Aquele bicho deveria ter uma audição de cachorro, não era possível...

Ele se pôs numa posição defensiva, mas Near não sabia que ameaça ele poderia representar com um tecido e um rolo de esparadrapo. Depois, recordou-se de algumas coisas.

A “Lady Múmia” dissera que era devota à Lady Ailith, a anja da noite, da memória e sorte, e que essa anja era de certa forma considerada um demônio. Os seguidores de Enguerrand – não fazia a mínima ideia do que essa anja era – a acusavam de terem-na envenenado quando eram mortais e enfeitiçado o marido da mesma para que se tornasse rainha, assim, mesmo que ela estivesse mais popular nos últimos anos, houvera até uma perseguição – não oficial - aos seus cultistas no passado.

De certa forma, isso lhe recordava o que a Igreja Católica fizera aos povos pagãos e, ironicamente, às bruxas. Parando para pensar... E se o anjo possuísse tanta aversão às pessoas devido ao fato de os mais... Supersticiosos terem feito alguma coisa a ele no passado? Gitmak o chamara de “anjo da noite”, então ele era um anjo de Ailith, o que o fazia se encaixar no caso.

— Eu... Não vou fazer nada. – começou, embora o anjo não tenha demonstrado qualquer sinal de confiança. Seus olhos eram extremamente verdes e profundos, como duas esmeraldas. – Hã... Não sei se você percebeu, mas eu não tenho nada que dê para te machucar.

O ser realmente não parecia ter tanta certeza daquilo. Uma parte de sua mente o obrigou a perceber que ele estava o olhando da mesma forma que Dhonugret e Kisaiya o encararam. Como se fosse podre ou algo do tipo. Seria a maldição de Haydée?

... Ou algo a ver com o seu sangue?

Deu um passo em frente, mas o anjo saltou a trás com uma batida de asas. Infelizmente a quebrada o traiu e ele caiu por cima dela, o que o causou uma careta de dor que atingiu até Near.

— Ei! Caramba, você está bem?

Com dificuldade, o anjo conseguiu se virar. Ele num todo não estava bem. Dava para ver os hematomas na pele branca do rosto. Aproximou-se devagar, e o outro não parecia em muitas condições de fugir rápido dessa vez. Estava claramente enfraquecido pela luta e queda e cansado pela dor e resistência, então pôs as coisas no chão.

 - Você consegue me entender?

O outro estava mortalmente quieto. Near não o via armado, mas algo lhe dizia que ele era plenamente capaz de lhe dar um chute ou quebrar sua cabeça se fosse preciso. E era tudo o que não queria passar, pois já sofrera fratura craniana uma vez.

— Eu vou... Por a sua asa no lugar, está bem?

Não houve resposta, mas agiu do mesmo jeito. Pegou cuidadosamente o membro, que era no mínimo algumas centenas de vezes maior do que a asa de qualquer passarinho, e olhou para a asa boa como referência. Tentou não se constranger quando teve de apalpar a área para perceber a extensão da fratura, se era múltipla ou não – algo lhe dizia vagamente que tocar nas asas de um anjo era quase o mesmo que você estar andando na rua e tentar tocar as virilhas de alguém -, e com algum esforço pôs os ossos no lugar. O anjo não emitiu um gemido de dor sequer, mas seu corpo se tencionou todo, alarmando o rapaz. Por sorte, ele decidiu não quebrar a sua cabeça.

Fazer o resto do curativo foi difícil. Near sabia como tratar a asa em si e o seu tratamento individual, mas imobilizá-la... Sabia que no caso dos pássaros, elas permaneciam próximas aos seus corpos, grudadas a eles com tecidos. Só que pássaros não possuíam braços além das asas, ao contrário do anjo.

No fim, o outro juntou o braço contra o tronco como se esperasse que ele o imobilizasse junto à asa. Talvez estivesse correto, e aquela não era a primeira vez que o anjo tinha sua asa fraturada, então o fez da maneira que considerou correta. Esperava que não estivesse errando tudo e deixasse o pobre coitado sem voar para o resto da vida.

E quando terminou tudo, o anjo ficou quieto. Nem parecia que antes ninguém conseguira chegar perto dele, o que alarmava à Near de certa forma.

E quando ele se mexeu, pegou uma das penas que haviam caído ao chão enquanto arrumava a asa, e ela se tornou branca. E então o anjo tocou o loiro com a pena.

Foi como se pulasse dentro de um redemoinho, e quando deu por si, estava... Na biblioteca de sua casa?

Só pelo modo que a via, sabia que estava próximo à janela. O recinto era todo revestido com placas de madeira, e havia alguns retratos de membros mais velhos de sua família ali. As estantes eram relativamente cheias, havia o tapete persa no chão com a escrivaninha de madeira entalhada sobre ele, as cadeiras totalmente arrumadas.

Aquilo lhe deu uma nostalgia que não pode descrever. Mas o que lhe chocou mesmo foi ao olhar pelo vidro e ver a si mesmo correndo no jardim, com Far e Mihael tentando acompanha-los. O mais novo deveria ter uns quatro anos, enquanto ele mesmo e sua irmã, seis.

Foi como um soco no estômago. Aquela então era a época da Guerra. Como se ela não fosse o bastante, fora também a época em que seu pai começara a se formar no homem violento que se tornara depois. Era ruim lembrar-se disso já era obrigado a recordar o quão carinhoso ele era antes.

— Eu disse não.

Deu um pulo quando ouviu aquela voz. Girou, e acabou vendo seu pai, em pé no meio da sala, sem seu terno, mas ainda com todo o resto de suas roupas de trabalho: camisa social, gravata, colete... Odiava ter que admitir, mas era a cara de Charles James quando ela mais novo, principalmente se ele estava o vendo com os seus... Vinte quatro, vinte e cinco anos. O cabelo de seu pai era mais curto e mais bem arrumado do que usava – e essa era a questão de Near usar o cabelo daquele modo -, e os olhos eram bem mais escuros dos que o do filho.

Viu sua mãe numa das poltronas próximas à lareira. Ela estava com seus vinte e um anos então, já que tivera ele e Far aos dezesseis – já casada -, e parecia nervosa, mas ainda assim conseguia parecer totalmente elegante e ela era magra com uma cintura o suficiente que nem parecia que já havia saído de duas gravidezes. O que chamou a sua atenção era que Margaret não usava suas roupas de casa, mas sim um vestido azul, pérolas, saltos e luvas pretas, e o chapéu no topo de sua cabeça com um pequeno véu caindo sobre o rosto perfeitamente maquiado. Deveria ser alguma visita importante...

... O que o levou até a terceira figura.

Era um homem até baixo. Deveria ter 1,70 de altura, forçando ao máximo, com um terno azul escuro, contrastando com as roupas cinzentas de seu pai. Ele tinha o cabelo preto cacheado e uma pele cor de oliva, além de uma barba bem cuidada e um tanto comprida.

Ele girava um charuto entre os dedos.

— É mesmo? – o desconhecido disse. Em sua voz, Near sentiu a ameaça velada, a irritação disfarçada e uma raiva profunda.

— O meu avô decidiu fazer aquela maldita rebelião. Nossa família quase não escapou viva e teve que fugir para a América. Os Rockstones já selaram o poder deles Morgane. É hora de seguir em frente.

A mãe de Near empalideceu ao ouvir aquilo, olhando então para o outro homem, Morgane. Este olhou então para a estátua pregada sobre a lareira. Era uma grande águia romana dourada, com as asas bem estendidas cujo apoio era grosso, comprido e largo, retangular, recordava-se bem daquela coisa, embora ela tenha sumido exatamente naquela época. A sua família em geral era muito atraída pelo império Romano, em como ele provavelmente fora o mais influente que já existira.

... Rockstones? Seu pai estava falando dos Rockstones, a família real bruxa? Mas aquilo era...

— Então você está me dizendo – o mais baixou começou a falar. Sua voz era fria e cortante como uma faca, mas ao mesmo tempo, era como se fosse uma névoa entorpecente sendo lançada ao vento. Sentiu-se nervoso. Muito nervoso. – que você está jogando fora todos os milênios de esforço de uma dinastia? Todo o trabalho que seus antecessores ainda tiveram de escolher cuidadosamente um sangue que poderia deixar a linhagem a mais pura o possível para quando retornássemos ao poder?

O quê?

— Eu não estou jogando fora todos os milênios. – Charles respondeu. – Eles já foram quando aquele plano estúpido foi criado, e Alphonsus liderou aquela rebelião. Nós não temos mais nada a ver com isso.

Near sentia o sangue fugindo de seu rosto. “O seu sangue também é perigoso”, “Você não é bem vindo, reconheço esse cheiro do seu sangue”. “Escolher cuidadosamente um sangue que poderia deixar a linhagem a mais pura o possível”.

Queria respostas, mas algo lhe dizia que elas não poderiam ser bem vindas.

— Você acabou de legitimar os atos de Alphonsus Rockstone?

A voz de Morgane soava como um milhão de facas.

— Charles... – a sua mãe soara tão nervosa que ela parecia prestes a cair no choro, mas então, por um momento, ela se enrijeceu, levando as mãos até pescoço, antes de amolecer e desfalecer sobre o estofado.

— Marg... – seu pai começou, e então Near sentiu um tremor. Uma das placas de madeira da parede caiu e seus olhos se arregalaram ao ver uma espada voando na direção de seu pai. Charles também a percebeu e viu claramente quando os olhos se tornaram claros como os de uma águia, e com um movimento de seu dedo, outras três placas caíram com igual número de espadas voando. Uma interceptou a que iria atingi-lo, outra foi como um míssil na direção de Morgane, que desviou, e a terceira foi direto para a sombra do homem, acertando-lhe o ombro.

Imediatamente uma mancha de sangue começou a se formar no ombro do próprio, obrigando-o a se curvar momentaneamente de dor. O loiro correu até a esposa, mas com um movimento do moreno, ele foi arremessado, indo parar na parede do outro lado da sala e se mantendo prensado a pelo menos trinta centímetros do chão.

Near sentiu seus joelhos ficando fracos.

Charles parecia lutar contra um estrangulador invisível, e Morgane foi até a lareira, pegando a águia e a jogando no chão, o som dela indicava que seu peso chegava a quilos.

— A partir de hoje, o a linhagem do Príncipe Almishak não será mais considerada dentre os Grandes Príncipes. – A voz de Morgane transbordava ódio. – Quando nosso poder retornar ao mundo, apenas o príncipe Amabosar e o príncipe Ashirikas irão reinar. E você, “Charles Toy” – ele foi numa velocidade inumana até seu pai, apontando-lhe direto para o rosto com o dedo. – você é o responsável disso. Farei questão de ir atrás de cada membro de sua família, farei questão de retirar de cada um deles o valoroso e precioso presente da magia dos Príncipes dos Espíritos. Está ouvindo?

Foi como se por um momento, o aperto no pescoço de seu pai se afrouxasse.

— Morgane Amabosar, sempre se achando o senhor da razão e juiz do mundo. – cuspiu. – Foi por sua causa que os Grandes Príncipes foram destronados, e foi por isso que todas as suas tentativas de insurgência foram massacradas. Eu posso não sobreviver, mas saiba... Saiba que um dos descendentes de Almishak estará lá quando você cair. E esta queda será a derradeira queda, Amabosar.

Se estivesse em um estado normal, Near poderia ter batido palmas a seu pai por ter tido coragem de falar aquilo naquela situação, só que Amabosar olhou diretamente para si. Por um segundo se sentiu tão intimidado que quase pensou em desmaiar como a sua mãe – o que era totalmente humilhante – mas ao invés, Morgane foi até a janela, olhando para ele, Far e Mihael brincando.

Aquilo piorava ainda mais as coisas.

— Mas que crianças adoráveis, não? – falou, e Near sentiu o frio passando por todo o seu corpo. – Você sequer passou o Véu à sua descendência. O que eu poderia fazer com eles...?

Charles engasgou onde era preso, e Morgane retornou a ele.

— Mesmo com a destituição, não poderei matar nenhum de vocês... Pelo menos não diretamente. – os olhos dele brilharam de maneira sinistra antes de começar a retornar lentamente até onde seu pai estava. – Sua esposa, seus irmãos, seus tios... Ninguém se lembrará do presente além de você. Mas você? Ah, você vai se lembrar, farei questão de que lembrarás pelo resto dessa sua vida miserável. E eu posso destruir essa vida perfeita que você leva, não posso? Isso seria pior do que a morte para alguém que preza tanto a família quanto você...

Near sentiu a sua visão ficando embaçada. Aquilo significava que...

Não, não era possível. Aquilo não podia ser verdade...

— Um bom marido, um bom pai... Você é o herói dos seus filhos não é mesmo? – Ele ergueu a mão até o rosto de Charles, e os olhos de águia se arregalaram antes que veios prateados começassem a aparecer. Um som quase inumano escapou do fundo de seu peito, e ele se debatia como se estivessem lhe jorrando ferro quente sobre a cabeça. – Que tal eu transformá-lo no pior monstro deles?

Near voltou a si como se estivesse se afogando.

Caiu e por um bom tempo não conseguiu se localizar. Passado, presente, até mesmo o futuro, não sabia nem onde estava, só respirava como um desesperado e tremia como um louco, coberto de suor. Demorou até perceber que estava chorando e que estava de volta à casa de máquinas do barco, o anjo lhe encarando de maneira quase inexpressiva.

— A águia o espera. - foi tudo o que falou.

 


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