Monocromo escrita por RedHead


Capítulo 1
Morpho


Notas iniciais do capítulo

"Sweetie Little Jean where did you go?
Everyone's been searching high and low
And your mother's worried sick
Dearest daddy lost his grip"

— Sweetie Little Jean, Cage The Elephant.

Boa leitura. ♥



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“Diga-me, menino, quem foi que tingiu teu mundo em tons monocromo?
Quem roubara de ti toda a vivacidade de uma jovem vida?
Diga-me, não te deixes sufocar.”

 

O céu dava indícios de que logo cairia, mas para si, a quem a vitalidade já não fazia visitas, nada jamais importava. Cambaleante, não podia evitar escorar-se nas paredes que o rodeavam, sinal de que a adocicada bebida, pouco a pouco, lhe proporcionava o tão desejado efeito. Incessantes vozes lhe sussurravam à mente o tamanho de sua frivolidade, assim como de costume, levando-o a uma realidade tão fastidiosa que já não parecia mais haver esperanças.

E como se aquilo não fosse rotina, novamente pegara-se a refletir sobre suas infelizes lembranças, estas que assim como num filme, faziam-se capazes de repetir-se e repetir-se, sem brechas para respirar, sem brechas para esquecer, trazendo-lhe consciência de sua melancólica realidade, perturbando-o através de suas mais belas vivências. É bem verdade que nunca se fascinara pelos da tais mistérios vida, mas aquele garoto, ah... aquele garoto era capaz de milagres ao fazê-lo desejar levantar-se todos os dias. O que ele diria se o visse em tamanha miséria?

Agora observava converter a si num casulo vazio e sem vida, sentia como se fosse um fardo, aquele que estava destinado, destinado a pesar em costas alheias, aquele que como um andarilho, vagaria sem rumo por entre as vielas, vítima eterna de olhares piedosos.

Hoje arrastara-se até a ducha, amanhã talvez não fosse capaz de fazer isso.

Remontavam-se aos poucos memoráveis dias os quais jamais retornariam, e em sua mente, focada como na lente de uma câmera, apenas a face juvenil daquela que um dia fora tão importante para si, sua amada Amélia, a única amiga que mesmo com um contato escasso fora capaz de perdurar eternidades ao seu lado, sentia falta dos cartões postais enviados de tão longe apenas para fazer nascer um sorriso em sua face, lastimava por ela, não a veria como fora de seu combinado.

O olhar tristonho da menina pairara sobre si por um breve momento; aquela de fato era a vaga amostra de uma angústia conservada em si durante décadas. Mantinha uma profunda saudade dos anos que passaram a muito menos tempo do que o mesmo sentia. A face risonha a divulgar a novidade, que para a mesma, parecia de estupenda alegria. Mudar-se-ia em pouco tempo, não seria a um lugar ruim, de fato, mas seria para longe de si, justo de quem sempre fora tão egoísta.

Passara um tempo a olhar fixamente para a garota enquanto a pequena despedia-se dos outros colegas. Vê-la partir era definitivamente algo terrível, sua única companhia estava finalmente indo para longe de sua vista.

— Ei, não faz essa cara! — Vinha em direção ao garoto, o mesmo que mantinha uma face emburrada desde que soubera sobre as “boas novas” —Você sabe que eu venho te visitar, eu vou voltar, Jean, então não faz essa cara. — Disse em seu usual tom autoritário.

— Me promete? — Seu olhar convertera-se em desconfiança.

— Claro que sim! Eu só conto verdades, se lembra?

— Amélia, nós temos de ir! — Exclamara uma jovem e aveludada voz, sentira-a bater em seu peito como um alarde de que seus dias não seriam mais os mesmos.

— Eu preciso ir... — Dissera em um tom ligeiramente melancólico — Eu vou sentir sua falta, Jean. — Dera-lhe um último e afável abraço antes de finalmente partir.

Filme antigo que de tempos em tempos pegava-se assistindo mais uma ou duas vezes, era incrível como este era capaz de transportá-lo de volta à infância, podia até recordar-se do aroma primaveril que o rodeava, assim como todas as palavras, de todas as frases ditas em acompanhamento a gestos dos quais lembrava todos também, e doíam assim como na primeira vez em que os sentira. Tão vívidos, tão fortes.

O céu acinzentado da pacata cidade agora respingava gotas as quais mansamente camuflavam-se às próprias cálidas gotas do garoto. Lamuriava aos cantos da cidadezinha, rodeado de olhares tristes por si, mas que lamentosamente não lhe remetiam menos dor.

Uma risada gostosa ao pé do ouvido lhe fizera estremecer até às pontas dos pés, fora seguida pela imagem frágil de um sorriso que só veria em fotografias. Os traços sutis que decoravam a face de um prematuro adulto, os lábios que estavam sempre a estampar uma ingênua amostra de felicidade. Os mesmos que sob nenhum pretexto iniciaram uma conversa banal. “— Tem uma borracha?”. Tais singelas palavras, hoje, o faziam pensar sobre como tudo lhe acontecera tão subitamente, sem preparativos, sem avisos, tal como as teorias que aquele adorava mencionar, ainda recordava-se de ouvi-lo palestrar durante longos minutos sobre como cada pequena coisa é capaz de alterar o curso de uma vida, e talvez sim, estivesse certo sobre isso.

E lhe fascinava refletir cada pequeno detalhe sobre o “garoto da borracha”, lhe distraía às noites, todas elas, sem exceção, os dias também, mas estes eram mais gastos a observar.

Assim como o mirava bem ali, tão estranhamente distante de si, fazendo-o desejar aquele corpo mais do que qualquer outra coisa. Se punha a admirar a sutileza daqueles lábios cálidos a tragar seu costumeiro tabaco, o cheiro forte, a fumaça, de alguma forma pareciam adequar-se tão bem a ele. Impecável harmonia que constituía aos poucos algo que estava além da compreensão, levando-o a um pedestal tão alto quanto o mesmo sequer imaginara, e estava ali, sem ao menos tomar consciência que bem ao seu lado estava alguém que morreria para ter o privilégio de consumi-lo.

— Jean... A gente pode conversar? — Introduzira enquanto prensava o cigarro contra o metal daquela cerca à qual apoiavam-se.

— É claro... — Sentia suave a brisa amena que percorria seus cabelos alourados, manter-se-ia firme qualquer fosse o assunto.

— Como eu posso dizer isso?! ... — Questionara baixo como se a si mesmo — Pode parecer meio tolo falar sobre isso tão de repente, mas... Eu não sei ao certo, mas... — Não podia evitar sentir a ansiedade daquelas palavras que saiam tão dificultosamente. A copa das árvores balançavam como se estivessem todas elas a bailar ao som de uma bela melodia, e por um breve momento fora capaz de esquecer aquela angústia que personificara-se ao seu lado como forma daquele que mais almejava, daquele que em questão de meses transmutara-se no mais importante ser.

— Eu penso que gosto de você, sabe? De verdade... — Completara sem ousar fitar o rosto do outro, que por coincidência mantinha o olhar fixo a ele, paralisado. Que só após bons segundos pudera digerir tamanha informação.

Levara os dedos aos ralos fios negros do outro, trazendo-o para mais perto abruptamente. Sentia-se quente, poderia explodir a qualquer momento, mesmo as antes gélidas extremidades de seus dedos agora ardiam em fogo.

Engolira seco, pressionara firmemente as pálpebras e como no sopro de um vento, lançara:

— Eu sinto o mesmo.

Alguém lhe havia dito uma vez, fora Amélia. “Não importa o quê, tu tens de perseguir aquilo que amas”.

Lembrava-se vividamente dos lábios finos do outro a tocar-lhe diversas as partes do corpo, fitava-lhe a cara, as maçãs do rosto salpicadas por diversos pontinhos sutis lhe davam toda uma charmosa inocência. Veja, menina Amélia, de tanto perseguir, finalmente alcançara, e nos braços daquele, estava em casa.

Tais pintinhas tornaram-se suas preferidas, cada uma, como belas constelações estampadas em uma alva superfície. Encarava-o enquanto este, por sua vez, encarava o nada.

— Vê? — Indagara repentinamente — É uma Morpho Anaxibia, são tão belas as Morphos, não? — Seus olhos miravam fixos um par de asas azuis que despreocupadamente bailavam no ar — São tão incondicionalmente admiradas, todas elas, mas mesmo o maior fascínio não é o bastante para que vivam mais.

Sem proferir sequer um único murmúrio, ouvia-o a poetizar, calmamente graciosas palavras emanavam por entre seus lábios, cada singela sílaba a lamuriar os porquês de algo que por inconveniência nunca haveria de ter uma explicação. Tocara-lhe sutilmente os dedos. — Por sorte, não somos como Morphos.

[...]

Sentia crescer em seu peito uma dor em tom breu, o repúdio estagnado em olhos alheios lhe era sentido à milhas de distância, olhares voltados a um simples gesto, um singelo entrelaçar de mãos, um toque qualquer, lentamente perfuravam a si. Tais relações mundanas não deveriam de ser cultuadas, estavam errados, era profano, nojento!

Nojento...

“— Alô? Ainda está na linha? Senhor-” — Inconvenientes, as lágrimas brotavam em sua mira, uma após a outra, cercando-o por um imenso borrão que lhe negava findar-se. Seus dedos trêmulos tornaram-se incapazes de sustentar o aparelho, fazendo-o pendurar-se ao chão.

Um imensurável aperto tomara-lhe o corpo. Num ato, empurrara brusco a passagem recusando-se a aguardar. Palavras percorriam soltas sua mente, mensagens inacabadas, sem quaisquer sentidos. Precisa vê-lo imediatamente, contemplar novamente aquele olhar risonho e assegurar-se de que tudo ocorreria bem. Precisava, precisava...

Lá estava através de uma vidraça espessa, uma multidão agitada à sua volta a burburinhar coisas das quais não se era possível distinguir, apenas o soar incessante das máquinas.

Paredes tingidas de branco sufocavam-no em desespero, o odor clínico o enjoava. Detestava a forma mórbida como aquele ambiente lhe fazia sentir.

Por vezes lhe vinham às orelhas falsas expectativas, tornando-o absorvido em descrença. Já não lhe parecia possível que aqueles andares viessem acalmar sua angústia, quando estes, inesperadamente, estabilizaram-se à sua frente.

Encarava agora a face de um homem esguio envolto a um alvejado jaleco. Encarava-lhe, lhe encarava, e por longos segundos não lhe tomara coragem o bastante para iniciar uma conversação. Aquele homem mantinha consigo uma face desesperadamente inexpressiva, e uma voz rouca que mesmo hesitante, exclamara: “— Nós o perdemos.”

Tal afirmação, naquele momento, caíra sobre si como uma densa bigorna decai sobre algo dez vezes menor, não era capaz de crer em tamanha calúnia, ele jamais lhe teria deixado, jamais!

Despencara duro sobre o assento em que antes estava, fitara fixamente um vasto monte de nada, não havia mais nada. Levara os gélidos dedos à face, na falha tentativa de conter as lágrimas que teimosamente pintavam seu rosto de forma a estampar ao mundo o tamanho de sua fraqueza.

Desta vez levantara o rosto a observar o céu, ainda que lúgubre, era capaz de ostentar uma ligeira vivacidade. Estava perto, não mais haveria de preocupar-se, seria enfim tão luminoso quanto aqueles feixes; Suas memórias não mais incomodariam e tudo tenderia a ficar plenamente bem.

Descansara aos pés de uma pacata lápide, a doce fragrância das orquídeas espalhava-se através dos ventos tornando o local leve, porém, não menos mórbido. Com um olhar marejado dedilhara calmamente as linhas que percorriam a extensão daquele nome: “Hector...”. Suspirara.

— Quem sabe sejamos mesmo como Morphos... — Com olhos blindados, sua mente aprofundava-se no palpitar de seu peito. Levara aos lábios mais um gole, e como o bêbedo a que se convertera, passara a admirar a gélida e estática rocha, de maneira que esta pudesse encarnar aquele que ali não estava.

— ... Eu alguma vez já disse o quanto te amo, cara? — Questionara em meio a balbucios – Não? Pois vou te dizer... — Pausara — ... Na verdade há muita coisa que nunca te disse, mas se ainda me permite, preciso deixar claro que tu é a pessoa que eu mais amo, mesmo agora, mesmo depois de tanto tempo... Se sente feliz? Porque a culpa é toda sua. — Soltara um riso fraquejado — E agora... — Sua garganta travara em um gole seco, a mesma velha angústia voltara a meter-se entre ambos, assim como a fina garoa. — ... E agora... eu não sei pra onde devo ir, ou o que devo fazer, mas sabe... Lembro de ter ouvido uma vez que devemos sempre ir atrás de quem é importante pra gente, e bem... Cê é a pessoa mais importante pra mim. Ainda espero que possamos nos ver outra vez... — Cedera novamente às lágrimas, aquele agora o fizera tão fraco...

Fitava firme o epitáfio num singelo silêncio, memorando mais uma, duas, ou três vezes sobre todos com quem um dia convivera, seus pais, Amélia. Ah... A menina Amélia não o fora visitar, agora não haveria mais tempo, mas gostava de imaginar como estaria sua vida. Suplicara a todos o perdão do qual sabia não merecer. Até mesmo às pessoas que apenas fizeram passar por si, afinal, estas jamais teriam a oportunidade de conhecê-lo.

Seu olhar vago voltara-se agora a um pequeno frasco preenchido pelas pílulas que ele um dia tanto alegara odiar, desta vez, por uma primeira e única vez, estas lhe pareceram de extrema atração.

Levara uma a uma calmamente à boca, não haveria mais razões para se arrepender. Libertara seu corpo de instruções, deixando-o guiar por si, escorando-se tranquilamente sobre sólida rocha.

Sentia cada rastro percorrido pelas gélidas gotas em sua face, enquanto um súbito mal estar tomava conta de seu corpo, limitando-o a poucas, porém suficientes palavras:

— Logo estarei ao teu lado, Hector... Então, por favor, aguarde por mim...


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Notas finais do capítulo

Espero de verdade que tenham gostado, doei boa parte de mim nessas palavras, e boa parte do meu tempo também. Enfim... opiniões serão sempre bem vindas aqui.



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