Complexo de Napoleão escrita por SatineHarmony


Capítulo 1
Capítulo Único




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"Artigo 5o: o comércio de mercadorias inglesas é proibido, e qualquer mercadoria pertencente à Inglaterra, ou proveniente de suas fábricas e de suas colônias é declarada boa presa." — Napoleão Bonaparte; Decreto de Berlim (21 de novembro de 1806)

— 1808 —

— Nós precisamos conversar. — França foi recebido por estas palavras ao abrir a porta de entrada da sua casa.

À sua frente estava um Inglaterra sério, trajando roupas que nada combinavam com seu semblante sombrio — aquela fora claramente uma tentativa de disfarce, porém falhara ao ponto do anfitrião perguntar-se como sua visita não havia sido linchada pelo seu povo ao longo do caminho. Um britânico pôr os pés sobre território francês durante o governo de Napoleão era o mesmo que cometer suicídio. França tombou a cabeça para o lado de forma interrogativa, tentando entender a razão da vinda de Inglaterra — pôr-se em risco desnecessariamente não era seu feitio, portanto o que ele tanto queria, para vir de tão longe até aqui?

Ele podia até prever as próximas falas de Inglaterra — alguns comentários sobre a guerra, reclamações sobre a economia e um longo e entediante sermão sobre política, recheado de críticas negativas da atual atitude do Estado francês. França escutaria tudo com uma paciência imensurável, e apenas após o final do monólogo inglês que ele manifestaria sua opinião. Eles dois brigariam pela enésima vez — quando será que Inglaterra finalmente entenderia que a monarquia tornara-se algo ultrapassado, ineficiente? —, e voltariam para seus próprios problemas, frustrados e estressados com a discussão que tiveram. Tempos de guerra são assim — estressantes, frustrantes, e principalmente cansativos. As olheiras presentes no rosto de ambos denunciavam as noites que passaram em claro, tentando descobrir o rumo que suas nações deveriam seguir em meio às batalhas intermináveis.

Portanto, quando Inglaterra puxa a gola da camisa de França com o intuito de beijá-lo, o loiro não contesta nem um pouco, rendendo-se sem pensar duas vezes.

— Isso é novo. — observou França com suspeita, quando se afastaram. — Eu sou a favor do amor, mas eu sei que esse não foi o motivo do beijo. — disse, afagando delicadamente uma das maçãs do rosto de Inglaterra. Este teve de controlar o impulso de dar um tapa na mão alheia.

— Considere essa uma compensação. — enunciou as sílabas de tal jeito que França não foi capaz de notar se aquela fora uma resposta franca ou irônica.

— Compensação por o quê? — ergueu as sobrancelhas, descrente. Seus passos já estavam recuando para o hall de sua casa, e Inglaterra o seguia sem romper aquele olhar determinado que França considerava irresistível. — Compensação pelas mercadorias e pelos navios franceses que sua marinha derrubou?

Inglaterra abriu um sorriso presunçoso, fechando a porta através de si.

Pronto. Ele estava dentro da casa de França.

— Eu não acredito que você vai espernear feito uma criança, França. — bufou de desprezo, erguendo a mão para acariciar os dedos que ainda tocavam-lhe o rosto. Então as duas mãos de Inglaterra pousaram sobre ambos os ombros de França, num gesto que emanava superioridade. — Foi você quem começou tudo com aquele maldito bloqueio continental, eu apenas respondi na mesma moeda. Não entre numa luta que você sabe que vai perder.

A resposta veio acompanhada por um revirar de olhos:

— Você veio aqui apenas para se gabar dos seus feitos? Que coisa feia, Angleterre. — ele não parecia ter se abalado com as palavras de Inglaterra. — Mas, agora... — uma das mãos de França se moveu rapidamente, prendendo os pulsos do outro em um aperto de ferro. — Eu quero mais dessa compensação.

E foi assim que eles dois terminaram em uma confusão de braços e pernas sobre o piso da sala de estar — não, eles não foram capazes de chegar ao quarto.

A atenção de França estava focada em Inglaterra, e em Inglaterra somente. Este há tempos desistira de reprimir os sons que escapavam de seus lábios, arrebatado pela dedicação do francês quando no papel de amante — era como se Inglaterra fosse uma obra de arte da qual França desejava captar até o menor dos detalhes. Mordidas foram trocadas de forma amistosa entre eles, no entanto Inglaterra não podia negar que sentira uma pontada de dever cumprido quando França exclamou de dor devido a uma marca impressa em sua pele com mais força do que ideal. O inglês nunca admitiria que sentiu ainda mais prazer ao ouvir o suspiro solto por França, após passar a língua sobre a mordida recém-feita.

Em um lugar de sua mente, França questionou a forma como Inglaterra cedera tão facilmente aos seus encantos — sim, França tinha consciência do quão irresistível seu charme era, porém... A tensão entre eles se tornara tangível ao longo dos anos, com o desenvolvimento do seu relacionamento inconstante, no entanto Inglaterra sempre lutara contra suas investidas com impressionável veemência, por mais que seu corpo dissesse o contrário — oh, Franças às vezes tinha de conter uma risada diante da forma como Inglatera ficava ofegante e estranhamente entusiasmado com suas discussões. Portanto... Por que ceder agora?

Um puxão forte em seus longos cabelos loiros o fez despertar de seu transe. França passou a ponta da língua em seus lábios, ao apreciar a bela visão disposta à sua frente:

— Quantas pessoas já devem ter visto você assim, nessa posição tão... — França não concluiu seu pensamento, preferindo acariciar as pernas nuas de Inglaterra, fechando os olhos ao sentir tal maciez sob seu tato.

— Prefiro não comentar. — rebateu o outro, usando o antebraço direito para esconder parte do seu rosto, rubro de vergonha. — Mas posso garantir que é um número bem menor do que o seu. — seus olhos arregalaram quase no mesmo instante, e sua mão livre cravou as unhas num dos ombros de França. — Espanha está aqui. — disse, apavorado com a realização que tivera. — Por favor, me diga que você está mantendo-o numa espécie de prisão. — Inglaterra arquejou ao ser invadido sem aviso prévio. — Holy fuck, França, eu vou te matar.

Este apenas riu de sua preocupação:

— Só porque nós mudamos o chefe de Espanha, não quer dizer que iremos prendê-lo. Nós, franceses, não somos cruéis que nem certa nação que obteve sua riqueza através da pirataria. — notando que o olhar antipático não deixara Inglaterra, França continuou: — Pour l'amour de Dieu, ele está aqui em casa, são e salvo. — ao sentir o corpo de Inglaterra ficar tenso contra o seu, logo acrescentou: — Mas não se preocupe, com você gemendo alto assim, é impossível que Espanha não tenha captado a mensagem. Ele com certeza evitará essa parte da casa enquanto estivermos aqui.

O rubor no rosto de Inglaterra intensificou-se, e ele trincou os dentes, exibindo uma expressão irritada:

— França, seu...! Prick!... Git!... Wanker! — cada insulto foi acompanhado de um tapa no torso de França. O último golpe resultou neste com as costas contra o chão, e deixou Inglaterra em tal posição que ele estava sentado sobre a cintura de França. O movimento súbito lembrou-o do que eles estavam fazendo, e Inglaterra deu um gemido que fez um calafrio percorrer pela espinha do seu companheiro.

França assobiou de aprovação quando Inglaterra começou a movimentar-se, tomando a iniciativa. Sua vontade era de apoiar a cabeça sobre os braços e simplesmente admirar aquela magnífica criatura deleitando-se em seu ser — Inglaterra não estava muito errado quando assumira que França já dormira com muitas pessoas, porém, sem dúvidas, ele se lembraria dessa vez.

— O que você vai fazer, França? — perguntou Inglaterra algumas horas depois. Ele aparentava estar mais confortável com os arredores, não se importando em estar completamente nu, sentado sobre o chão da sala de estar de França.

— Como assim? — franziu o cenho com o questionamento alheio. Ele estava deitado próximo de Inglaterra, entretanto, seus olhos estavam fixos no teto branco do cômodo. — Eu vou seguir em frente, ora. Ainda não é hora de nos rendermos.

Inglaterra soltou um som indignado, porém controlou a sua voz ao dizer:

— França, se tudo seguir o ritmo no qual estamos, você vai para o fundo do poço em breve. Você tem noção de quantos navios seus eu já afundei? Está claro para todos que esse seu bloqueio continental não está funcionando. Quanto tempo você tem até alguma nação — Rússia, por exemplo — perder a paciência e te enfrentar? Saia enquanto você ainda está por cima.

França estalou a língua, aparentando impaciência:

— É fácil para você falar isso. — simplesmente rebateu.

Fácil? — Inglaterra repetiu o termo com um tom incrédulo. França suspirou, virando seu rosto minimamente para observar a expressão facial do outro.

— Pessoas que praticamente adoram Hobbes nunca compreenderão o pensamento de Montesquieu. — declarou, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Pôs-se de pé subitamente, estendendo uma mão para ajudar Inglaterra a levantar do chão. — O absolutismo chegará ao fim em breve, sinto muito por informá-lo isso. Napoleão cumprirá seu objetivo, você verá. — seus olhos estavam tão sonhadores que Inglaterra temeu contradizê-lo, portanto, pela primeira vez em sua vida, preferiu manter-se calado e oferecer a mão que lhe fora estendida.

França ergueu uma sobrancelha interrogativamente, estranhando o silêncio alheio, e no segundo seguinte ele havia pressionado Inglaterra contra a parede. Este lutou para manter-se indiferente diante de tal ação inesperada:

— Sinto muito, porém não haverá um segundo round. Eu tenho de voltar logo, o comércio ultramarino tem me deixado muito ocupado. — Inglaterra não sabia de onde tirara forças para ser tão sarcástico; ele só conseguia pensar na sensação do corpo nu de França contra o seu. O outro nem pestanejou ao receber a alfinetada, observando cada mudança na expressão do britânico:

— Inglaterra, qual foi a razão disso tudo? Essa sua compensação não faz seu feitio. — questionou, mostrando que não tinha intenção de ceder. Diante dessa pergunta, o inglês mordeu o lábio inferior, hesitante. — Não minta para mim. — avisou França, sério.

— Meu chefe foi informado de que o exército francês planejava uma investida à coroa portuguesa em breve. — as palavras escaparam apressadamente de seus lábios.

— Oh. — foi a única que França foi capaz de dizer, compreendendo o que acontecera. Surpreso e desanimado, afastou-se de Inglaterra, parecendo lutar contra o impulso de suspirar pesadamente.

— Enquanto nós estávamos aqui... Meu pessoal se certificou de que Portugal fugisse. — Inglaterra finalmente teve coragem de retornar o olhar de França. — Ele agora está a caminho de sua colônia na América, e você nunca sequer o tocará, pois eu não irei permitir. O mar é meu. — declarou. Autoridade praticamente pingava de cada uma das palavras que proferia, e eles dois notaram que aquela conversa não iria a lugar nenhum. Crenças diferentes, egos grandes, sentimentos conflitantes. Seria melhor largar tudo antes que destruíssem um ao outro.

Daqui a alguns séculos eles conversariam novamente, e, se Deus quiser, eles seriam maduros suficiente para não deixarem a política atrapalharem-nos.

Com esse pensamento em mente, França não expressou nenhuma espécie de arrependimento ou mágoa — ele apenas sorriu, e abriu a porta de sua casa para que Inglaterra fosse embora:

Merci beaucoup, Angleterre, você me proporcionou uma tarde muito divertida.

E então França fechou a porta.

* * *

No Congresso de Viena, França permanece firme e forte, em silêncio, enquanto recebe sua punição.

E Inglaterra não consegue tirar de sua mente a imagem dos olhos sonhadores do francês ao falar sobre Napoleão.

A vitória nunca foi tão amarga.


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Notas finais do capítulo

* Em 1806, determinou-se o bloqueio continental francês, que impedia outras nações europeias de realizarem trocas comerciais com a Inglaterra. Em resposta, ela declarou um bloqueio marítimo no início de 1807, dificultando o comércio entre as metrópoles e suas respectivas colônias. O bloqueio francês mostrou-se defeituoso, e, lançando mão de sua poderosa marinha, Inglaterra afundou várias embarcações francesas, piorando a situação econômica de seu inimigo.
* Espanha está na casa de França para ilustrar que Napoleão roubou a Coroa espanhola, e colocou seu irmão, José Bonaparte, no trono espanhol.
* A previsão de Inglaterra de que, em breve, as nações europeias lutariam contra o bloqueio continental, é uma referência ao fato de que quatro anos depois, em 1812, a Rússia resistiria ao bloqueio. Tal episódio teve como uma de suas principais consequências a decadência do exército francês.
* Thomas Hobbes é um filósofo famoso por defender o absolutismo (a frase "o homem é lobo do próprio homem" é da autoria dele, se lembra?). Já Montesquieu ficou mais conhecido por pregar a divisão do poder em três: legislativo, executivo e judiciário.
* Yep, o final foi uma clara referência à fuga da monarquia portuguesa para o Brasil.
* O Congresso de Viena foi realizado com o intuito de desfazer todas as mudanças realizadas por Napoleão durante seu governo. França voltou a ser uma monarquia absolutista, e todos os territórios que conquistara foram devolvidos. Enquanto isso, Inglaterra apresentava uma ótima condição financeira, decorrente da expansão de seu mercado consumidor para outras colônias, que começavam seu movimento de independência.



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