Quem Somos Agora escrita por JunoAlBoo


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Inspirada na música "As Dores do Mundo" de Fágner.



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Ela deu uma última olhada para a janela de seu antigo apartamento e depois seguiu o homem que terminava de colocar suas coisas no carro. Deu uma rápida conferida no número de malas que havia no porta-malas: seis, a mês quantidade que contara em seu quarto. Em cima da maior, colocou um envelope amarelo-escuro e perguntou:

– Vamos?

– Vamos – confirmou o homem colocando os óculos de aviador – Quero chegar ao aeródromo antes de alguém se lembrar da nossa existência.

Quando o carro começou a andar, Sandra ainda olhava para trás na intenção de ver se não havia nenhum conhecido espionando-os. Não podia permitir que mais nada nem ninguém estragasse sua felicidade. Ela e Rafael já haviam adiado seus planos de felicidade por tempo demais, sempre resolvendo os estragos de familiares que, por mais queridos que fossem, não eram fortes o suficiente para arrumarem a própria vida. A própria Sandra já havia chorado por problemas que não eram seus, e que mesmo assim, ela não conseguia ignorar, mesmo que seu amor próprio e muitas vezes, seu amor, lhe dissessem para fazer o contrário.

Quando o carro saiu do bairro, a enfermeira finalmente deixou de olhar para trás.

– Não vi nenhum conhecido nosso. Graças a Deus. – disse suspirando.

– A ideia de partir durante o feriado deu certo – concluiu o piloto sorrindo – Até o Elísio tá ocupado pulando Carnaval com a Leonor.

– Nem me fala, amor. E enquanto isso a minha mãe alterna entre viver de luto e ensaiar um revival com o Paulo, e a Diana na cola dos dois, fazendo com eles o mesmo que a Vit...

– Amor, lembra que a gente combinou de não pronunciar mais esse nome? – lembrou Rafa.

– Desculpa, esqueci isso. Mas também, não consigo pensar nessa perseguição e não se lembrar de nós dois. Toda a desgraça que a gente enfrentou porque alguém não conseguia seguir em frente e fez de tudo pra nos separar. Eu me sinto enjoada ao lembrar todos que eu conheço sendo cordiais com aquela pessoa. Quando eu lembro aqueles rostos descrentes de que ela tentou me matar... – desabafou Sandra.

– Me sinto da mesma forma. – disse Rafael – mas eu também tenho nojo. Nojo dela e de mim mesmo, por tê-la deixado ficar na minha vida mesmo quando não tínhamos mais nada a ver um com o outro. Mas também, penso no estado atual dela e fico triste, porque se não fosse a obsessão por mim, ela poderia ter aproveitado melhor a vida.

A enfermeira se afligiu com o tom de auto repulsa e tristeza presente naquelas palavras. A patricinha era uma sortuda por ter todas as suas mentiras e loucuras perdoadas por todos ao seu redor, inclusive aqueles que Sandra chamou de família durante toda a vida. Um perdão que a enfermeira, por mais altruísta que fosse, não conseguia aceitar, pois ninguém parecia enxergar o quanto a absolvição destruía ainda mais o caráter já tênue de Vitória.

Porém, a obsessão em separá-la de Rafael cobrou seu preço, e ele saiu mais caro que todo o guarda-roupa da patricinha. A parceria com Pedro já era uma tragédia anunciada para Rafael e a amada, mas a tragédia que ocorrera no mês anterior o fez arranjar uma briga feia com o então presidente da Vip Turismo, Beto, que quase arruinou sua carreira na aviação, sabotando seus voos e difamando sua vida pessoal para companhias aéreas nacionais e estrangeiras. Contudo, o próprio Beto foi quem perdera credibilidade pública na semana anterior, ao ser flagrado pela polícia contrabandeando diamantes, e mesmo que a família tivesse certeza de que Carlota era a verdadeira traficante, o rapaz assumira a culpa para todos, inclusive a polícia. “Um verdadeiro filho da mãe”, foi o que Sandra e Rafael concluíram, na única vez que se ocuparam pensando nesse assunto. A dita cuja, por sinal, sumira após a prisão do filho e não dera as caras desde então.

No caminho até o aeródromo, enquanto o rádio tocava “Your Song”, Sandra observava o rosto do noivo, totalmente concentrado na direção. Rafael parecia estar sereno, porém a enfermeira tinha conhecimento de que por dentro, o piloto estava dominado pela ansiedade. Ansiedade para irem embora do país e viverem longe de todos aqueles vampiros emocionais. Compartilhavam do desejo de nunca mais enxergarem os rostos de seus perturbados ex-namorados, da angústia de deixarem pra trás seus irmãos menores e amigos queridos. Estavam indo embora sem se despedir de absolutamente ninguém, nem mesmo Tadeu, Vicente e Madalena.

De repente, a rádio interrompeu a música e logo eles ouviram o radialista anunciando:

“Acabamos de receber a notícia urgente de que o presidente da Vip Turismo, Roberto Azevedo e Fraga, que havia saído da prisão no início dessa manhã, uma semana após ser flagrado contrabandeando diamantes numa igreja da zona sul do Rio, foi atropelado há cerca de meia hora em frente à um bar em Copacabana. Testemunhas descreveram que o empresário saía do estabelecimento quando foi atingido por um Cadillac vermelho, cuja número da placa foi anotado e está sendo procurado pela polícia. O motorista fugiu sem prestar socorro. Roberto Fraga foi levado para a Casa São Vicente e ainda não temos informações sobre seu estado de saúde.”

O mesmo hospital em que Vitória foi levada quando ela e Pedro sofreram o acidente de avião.

Sandra desligou o rádio assim que o locutor terminou. Rafael parou o carro bruscamente, assustando a noiva. Eles se entreolharam.

– Não está pensando em voltar agora, não é? – o piloto perguntou, preocupado. Ele fitava o rosto apreensivo da enfermeira.

Sandra pensou um pouco no que ia dizer. Logo agora que ela e Rafa estavam prestes a se livrar dos grilhões provocados por suas famílias, acontecia mais uma tragédia. A notícia falara em atropelamento, mas não falara que Beto estava morto. Era possível que ele sobrevivesse. Mesmo assim, a jovem imaginou a avó fazendo daquele hospital uma segunda casa, vendo dois netos a jazer naqueles leitos deprimentes.

– Amor, isso que a gente acabou de ouvir é terrível – disse a jovem – A minha vó, o Ricardo, a Luísa, o Felipinho... Se a gente voltar agora... – ela balançou a cabeça, desnorteada.

O piloto pôs as mãos nos ombros dela.

– Fica calma, Sandra. Pensa direito, por favor. A gente ainda pode voltar, mas pra isso eu preciso saber: você quer realmente voltar? – Rafael quase silabou a pergunta. Claro que ele entendia a preocupação da companheira, mas droga! Estavam tão perto de ir embora da cidade e começarem uma nova vida longe dali.

Sandra continuou pensando. Independente do que o futuro reservasse para Beto, as chances de Vitória acordar eram nulas, a centena de especialistas consultados pela família garantiu isso.

“Se o jato estivesse voando metros mais alto quando sofreu a pane e caiu no bosque, ela teria um fim mais digno”, pensou Rafael quando soube do veredicto do acidente. Pedro morrera e Vitória sofrera uma lesão cerebral que a manteria como um vegetal pelo resto da vida.

– Amor, isso é tão terrível. – a enfermeira abraçou o noivo, chocada. O mundo de sua família desabava mais uma vez, e ela estava ali, a caminho do aeródromo, com planos de deixar todos para trás a fim de viver em paz com o amado.

Seria certo seguir em frente? Ela balançou a cabeça. Não, não era. Precisavam dela novamente. E era uma enfermeira, tinha o dever moral de ajudar as pessoas.

Sandra afastou-se de Rafael e olhou em seus olhos, sentindo-se estapeada pela verdade explícita naquelas íris esverdeadas.

– O que estão fazendo aqui? Vieram rir da desgraça da minha irmã?! Isso tudo é culpa de vocês. FORA!!!!! – gritara o irmão mais velho de Sandra, arregalando ainda mais os olhos ao avistar os dois no hospital, minutos depois da equipe médica comunicar que o estado de Vitória era irreversível. A enfermeira reviu aquela cena nos olhos do namorado.

Eles jamais poderiam ser felizes ali. A realidade que enfrentavam ao lado de suas famílias era totalmente distorcida. Já era ruim com Vitória e Pedro vivos e aprontando todas, os pecados de Beatriz, a ganância de Cristina, as loucuras de Carlota e Fernando, a passividade de Madalena e o mau-caratismo de Beto. E foi essa lembrança que fez Sandra se decidir.

– Eu tô chocada, Rafael. Chocada pra caramba. Logo agora que a gente estava se livrando desse furacão, ele adquire mais força. – falou resignada. Rafael já ia lamentar a decisão dela, quando Sandra continuou:

– Mas por outro lado, eu não quero voltar. Não quero mais adiar a nossa felicidade. A gente vive preso num ciclo de desgraça desde que se conheceu e se apaixonou. Eu não quero mais viver isso. – ela concluiu, surpreendendo positivamente o piloto.

– Tem certeza, amor? – ele indagou.

– Se você estivesse no meu lugar, o que acha que mais valeria a pena: se preocupar com o irmão que não presta, que nunca gostou de você, ou ser feliz com a pessoa que você ama? – a jovem indagou de volta.

Rafael deu um pequeno sorriso, afinal, eles estavam falando de uma tragédia. Mas a amada tinha chegado à mesma conclusão que ele. Por mais egoísta e desumano que fosse seguir em frente, aquele fato só serviria para prendê-los ainda mais àquela atmosfera hostil.

Eles precisavam de ar puro, precisavam se desligar daquela vida sacana que parecia gostar de tortura-los. Uma hora, suas consciências e entes queridos cobrariam o peso daquela atitude, mas que se danassem. Eles haviam cansado de serem vitimados pelos problemas dos outros.

Sandra religou o rádio e Rafael deu partida no carro. Não eram mais um casal plenamente decente, mas o futuro que construiriam minimizaria esse detalhe.

Chegaram ao aeródromo, acertaram os últimos detalhes do voo e partiram para o Sul, em total sigilo. De lá, voariam para os Estados Unidos, ao encontro da amiga e Inês. Àquela altura, Mário ou Elísio já tinham mencionado seus nomes, mas era tarde para que pudessem localizá-los.

Se antes de partir, Sandra tivesse consultado a cartomante que atendeu Inês uma vez, ela teria ficado mais tranquila em ter tomado sua decisão de não voltar. Pois aquela mulher teria previsto o quanto ela e Rafael seriam felizes no exterior, ele consolidando sua carreira de piloto, ela estudando inglês e cursando Medicina numa das melhores universidades americanas. E depois de formada, o pequeno Alex iluminou a vida do casal.

Contudo, antes disso, Beto veio a óbito dois dias depois do atropelamento, Carlota reapareceu perante os Fraga, surtada com a morte do filho, e foi internada num manicômio, sendo assassinada por um dos pacientes meses depois. A razão do homicídio nunca foi descoberta.

Elísio se aposentara do exército e passara a viver com Augusta e Vicente, pois Leonor sumira após a queda da melhor amiga e os filhos foram viver com a mãe. Beatriz nunca chegou a se acertar com Paulo, tendo optado por viver sem homem nenhum e dedicada apenas aos filhos que ainda possuía. Fernando reassumiu a presidência da Vip Turismo, tendo que aguentar suas ex-amantes Suzana e Cristina o perseguindo durante seu tempo livre. Os demais amigos e familiares continuaram com a mesma vida que tinham antes de Sandra e Rafael irem embora. Todos ficaram chocados com a partida do casal. Passariam meses sem vê-los, até que os dois retornaram no aniversário de Madalena para anunciar que estavam casados.

Oito anos depois...

– E agora o Batman chega para ajudar o Homem-Aranha e...

– Já chega, Alex. – a mulher gritou da cozinha – Vá guardar seus brinquedos e se arrume para jantar, que seu pai já deve estar chegando.

– Mas mamãe, deixa eu brincar só mais um pou...

– Vá guardar seus brinquedos. – a mãe repetiu – AGORA.

Emburrado, o guri pegou as miniaturas de super-heróis e rumou ao quarto. O cabelo moreno, única herança da mãe além do sinal nas costas, balançava com o vento que entrava pela janela da sala. Estava grande demais, pensou a mulher. Logo o marido levaria o filho à barbearia pela primeira vez, como um típico pai americano, ela constatou com um sorriso.

Alternando as rotinas de médica residente, esposa e mãe, Sandra terminava de preparar o jantar enquanto esperava o barulho da porta da sala ser aberta. Ela continuaria na cozinha, fingindo que não percebera a chegada de Rafael, até ele abraça-la por trás, seu cheiro tomando conta do apartamento duplex localizado em pelo coração nova-iorquino. Os gêmeos chutaram pela primeira vez, e ela abriu um sorriso ao acariciar o ventre. Possivelmente, nada daquilo estaria ocorrendo se eles tivessem decidido ficar no Rio de Janeiro em virtude do acidente de Beto.

Na vida, às vezes, é preciso abrir mão de algo para conseguir algo melhor. É preciso deixar de ser um determinado tipo de pessoa, de abandonar certos pensamentos e atitudes limitantes, a fim de alcançar algo mais pleno.

Sandra e Rafael haviam sido o casal mais decente que os Fraga e os Araújo haviam conhecido. E durante muito tempo, aceitaram servilmente abrir mão de seus próprios sonhos de felicidade, a fim de ajudarem seus entes queridos a arrumarem suas vidas. Até o dia em que eles se cansaram disso e escolheram outro caminho, por mais egoísta e maculado que ele fosse. Abriram mão de suas posturas 100% corretas e de donos da moral, para controlarem suas vidas. Esse fora o preço para enfim serem livres e felizes.

Agora eles eram marido e mulher, pai e mãe, profissionais bem-sucedidos. Eram uma família de verdade, que em breve ganharia mais dois membros. Diante das conquistas que surgiram em suas vidas, da plenitude que os rodeava todos os dias, o passado ficara para trás. Eles eram outras pessoas agora.

E foram com essas novas identidades que eles validaram sua existência. Eram essas identidades que ficariam na memória daqueles que os conheceram. Aquelas novas identidades eram quem eles eram de verdade.

FIM.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem!