Capítulo 066

A Mais Profunda Escuridão (Parte 4)

— Será que o Kayan realmente deixou Drugstrein? – indagou Nathie.

— A Thays pode ter razão – afirmou Mathen. – Devemos procurar por ele e descobrir para onde ele foi.

— Vamos procurá-lo nas bibliotecas do castelo.

Conforme sugerido por Thays, os quatro passaram a procurar por Kayan nas bibliotecas e descobriram que ele havia passado os últimos dias na biblioteca da torre dos mestres, onde havia os mais avançados livros sobre magia.

— Kayan Atreius, sim, ele esteve nesta biblioteca há alguns dias.

Apenas Thays e Anita podiam acessar aquela biblioteca e elas conversavam com um senhor já de idade avançada. Os poucos fios de cabelo em sua cabeça eram brancos como a neve e ele andava um pouco arcado. Apesar disso, parecia possuir um vigor muito maior que o esperado para sua idade.

— Ele utilizava aquela mesa ali, os livros são sobre história da magia, esfera da destruição e esfera da luz.

Uma mesa repleta de livros foi apontada para as garotas, mas não era sobre o que Kayan estudava que elas estavam interessadas.

— E quando foi a última vez que o senhor o viu? – indagou Thays.

— Há três dias, no final da tarde. Ele estudava ali naquela mesa como de costume. Eu estava terminando de organizar os livros e iria me retirar para meus aposentos. Kayan costumava permanecer até tarde da noite alguns dias. Mas, naquele dia, ele virou a mesa, enfurecido, enquanto gritava algo como algo não ser possível ou algo assim. Ele saiu sem dizer mais nenhuma palavra. Tive uma sensação estranha quando ele passou por mim, como se algo fosse me esmagar. Acho que era o que vocês, magos, chamam de aura.

O senhor relatou o ocorrido de maneira calma e cadenciada e as garotas o ouviram atentamente.

— Ele não voltou mais após isso? – perguntou-lhe Anita.

— Não. Eu organizei a mesa para que quando ele voltasse pudesse retomar seus estudos, mas o mestre Kayan não voltou mais para essa biblioteca.

— Muito obrigada – agradeceu-lhe Thays. – Você foi de grande ajuda.

Já fora da torre dos mestres, as duas relataram o ocorrido para os demais ali presentes.

— O Kayan está muito mais irritado depois que perdemos a Sarah – afirmou Mathen. – Perde a calma por qualquer coisa e vive mal humorado. Acho que deve ter saído do castelo para tentar se acalmar.

— Eu vou procurá-lo – disse Thays.

— Também vamos. Se pedirmos para o Spaak e a Aghata, tenho certeza que nos ajudarão.

Antes mesmo da hora do almoço, uma pequena equipe de busca espalhou-se pela região do castelo de Drugstrein. A ideia era procurarem em Bereth e em qualquer fazenda, taverna ou estalagem que existisse num raio de 50 quilômetros. No final do dia, eles voltariam até Drugstrein para trocar informações.

Thays, entretanto, tinha um palpite de onde ele poderia estar e para tal dispensou seu cavalo, uma vez que poderia percorrer a grande distância com o auxilio de sua aura, embora fosse algo exaustivo.

O castelo para onde ela foi era uma ruína. Suas torres ameaçavam desabar a qualquer momento e da porta frontal restava apenas metade. O confronto que ali fora travado contra Sellene Rovkraz apenas contribuiu para deteriorar ainda mais o castelo.

A Cyren entrou na fortaleza, receosa, não do que poderia encontrar, mas sim do que poderia não encontrar ali dentro. Foi um alivio quando ela o viu sentado sobre o trono de pedra.

Kayan estava descalço e sem sua túnica. Vestia-se com calções de algodão negro e com seu sobretudo de mestre aberto, expondo seu peito e abdômen. Seus olhos permaneciam fechados e seus dedos das mãos unidos na frente do rosto enquanto seus cotovelos se apoiavam no trono. Com a penumbra do ambiente, era uma cena um tanto quanto sinistra de se ver.

— Pode dar meia volta e retornar para Drugstrein. Não há nada para você aqui.

— Só volto para Drugstrein se você voltar comigo.

— Assim como não há nada para você aqui, não há nada para mim em Drugstrein.

As palavras do Atreius irritaram-na profundamente. A vontade que ela tinha era de ir até ele apenas para lhe dar um tapa no rosto. Ela começou a caminhar até ele enquanto proferia as palavras que estavam presas em seu peito.

— Como ousa dizer que não há nada para você em Drugstrein? E todos os amigos que você tem no castelo?

— Eu não preciso de amigos – afirmou enquanto se levantava e abria os olhos. A escuridão daqueles olhos ameaçava engolir Thays, mas a garota não fraquejou nem por um segundo. – Só preciso que você vá embora e me deixe sozinho.

— É aí que você se engana, Kayan. O que você mais precisa agora é de seus amigos ao seu lado.

— Saía daqui, Thays – gritou. – Ou eu irei matá-la!

Apesar da ameaça de Kayan, a garota não parou. Continuou avançando lentamente em direção a ele. O Atreius ergueu sua mão e conjurou um durhan crisis. As chamas negras passaram a menos de dez centímetros de Thays e, ao contrario do calor que era esperado das chamas, a garota pode sentir o frio intenso que elas emanavam.

Ela parou por um momento. Sentir o poder daquele feitiço passando ao seu lado daquela maneira fez com que Thays sentisse medo. Apesar disso, a garota engoliu aquela sensação ruim e forçou-se a continuar em frente. Era algo que apenas ela poderia fazer.

— Eu já disse que não vou embora sem você!

Outra rajada das chamas negras passou do outro lado de seu corpo. Thays sequer elevou sua aura para se defender. Sabia que aquilo não era necessário. Estava convicta de que Kayan nunca a machucaria.

— Por acaso perdeu o amor à sua vida?

— Não. Apenas tenho certeza de que você não irá me ferir. Eu sei que o Kayan que eu conheço esta aí dentro de você, aprisionado por este Kayan amargurado que você expõe nesse momento.

As ameaças se cessaram assim que ela ficou frente a frente com o Atreius. Restava menos de meio metro para que eles se tocassem e tudo o que fizeram foi se encarar por algum momento.

— Eu sei o quanto a amava, Kayan, e posso imaginar a dor que está sentindo. Você não pode se deixar consumir por esta dor. Você é uma boa pessoa e tem amigos que te amam. Se você continuar desta maneira, tudo o que te restará é se tornar igual a Zeffirs, um mago negro ensandecido que apenas se importa com a sua visão do mundo.

Sem reação, Kayan deixou que seus braços caíssem ao lado de seu corpo, inertes. Ele limitava-se a olhar para Thays enquanto ela dizia-lhe aquelas palavras.

— Eu... eu a deixei morrer, Thays! – gritou por fim. – Foi por minha culpa!

Ao externar aquilo que sentia dentro de si por tanto tempo as lágrimas finalmente vieram. Ele ainda não havia chorado por Sarah. Não havia feito isto nem mesmo no dia em que teve o corpo da mulher que amava em seus braços. Mas ali, admitindo a culpa que sentia e apenas com uma de suas mais preciosas amigas em sua presença, elas vieram com força total, escorrendo por seu rosto enquanto ele gritava aquelas palavras.

— Kayan...

Ver o amigo naquela situação fez com que os olhos de Thays se enchessem de lágrimas e com que ela também chorasse. Sem pensar mais, ela se aproximou de Kayan e abraçou-o com força. O Atreius apenas retribuiu o gesto enquanto deslizavam para o chão. Ele sentou-se enquanto Thays sentava-se entre suas pernas de maneira com que os dois permanecessem abraçados.

— Foi tudo por minha culpa, Thays. Se eu não a tivesse arrastado para a minha luta contra o Mikael ela... se eu tão tivesse ido até lá para lutar...

— Você não teve culpa, Kayan – disse ela enquanto acariciava o rosto do amigo. – Você fez a decisão certa em enfrentá-lo. O mestre Arthuro não teria conseguido sozinho e todos os outros mestres mais poderosos estavam enfrentando seus próprios oponentes. Só você tinha poder suficiente para parar Mikael.

— Mesmo assim... eu devia ter previsto que ele poderia atacá-la. Devia tê-la protegido.

— Não foi sua culpa, Kayan. Você sabe que teria feito de tudo para salvá-la se fosse possível. Não havia nada que você pudesse fazer. Nós somos magos, sabemos que um dia nossa vida pode terminar de uma forma abrupta e aceitamos esse risco pelo bem da raça humana.

— Eu sinto tanto a falta dela.

— Eu sei.

Ouvir aquelas palavras era doloroso para Thays. Estar ali, abraçando o homem que ela amava, sabendo que apenas servia para consolá-lo pela perda de outra garota era doloroso para ela, mas Thays sabia que tinha que suportar aquilo pelo bem de Kayan.

— Eu sei que você sente muito a falta dela, mas você não está sozinho, Kayan. O Mathen, a Anita e a Nathie. Spaak e Aghata. Todos estão procurando por você. Todos estão preocupados com você. Quando meu primo Arthuro voltar para Drugstrein ele não vai querer rever um Kayan amargurado, vai querer rever o Kayan alegre e animado que você sempre foi. Que você ainda é.

— Eu... eu tenho magoado todos vocês, não é mesmo?

Ela não precisou responder àquela pergunta.

— Thays, me desculpe. Tudo o que eu queria... eu só queria tê-la de volta comigo. Eu...

— É impossível, Kayan. Os mortos não voltam à vida. Sei que você tem procurado uma maneira, mas nem mesmo a magia tem esse poder. Todos já perderam pessoas que amavam. Você é mais forte que isso, pode superar. A Sarah não iria querer ver você desse jeito. Eu não quero vê-lo mais desse jeito.

Kayan abraçou Thays com força enquanto ela retribui-a lhe o abraço. As lágrimas já não se precipitavam mais por seus olhos e eles apenas permaneceram daquela maneira por um longo tempo. Encontrando algum consolo nos braços de Thays, Kayan finalmente deu vazão ao cansaço das noites mal dormidas e das horas a fio gastas estudando e acabou por adormecer. Para Thays tudo o que restou foi observá-lo adormecido antes que tivesse que acordá-lo para voltarem ao castelo. Em seu rosto havia um sorriso entristecido. Ela sabia que agora ele voltaria a ser o Kayan que sempre fora e também sabia que nunca conseguiria competir pelo amor que ele sentia por Sarah.

* * *

O véu da noite já havia encoberto o castelo de Drugstrein há várias horas. Preocupados, alguns magos reuniam-se em frente à porta levadiça do castelo.

— O que será que aconteceu com a Thays? Não encontrarmos nada sobre o Kayan era uma possibilidade, mas termos outro mago desaparecido é demais – sem conseguir mais conter sua preocupação, Nathie passou a falar para tentar distrair sua mente da situação.

— Pode se acalmar aí que eles já estão vindo!

Mathen havia conjurado uma torre de pedras e estava sentado sobre ela quando avistou o casal caminhando lentamente na direção do castelo.

— É sério? – indagou a garota.

— Sim – respondeu Mathen enquanto saltava de sua estrutura e a desfazia com um feitiço clayn. – Eles estarão aqui em alguns minutos.

Foram momento de ansiedade aqueles que eles tiveram que aguardar, mas Mathen estava certo e o casal chegou dentro do tempo previsto.

— O que vocês fazem aqui? – indagou o Atreius.

— Estamos esperando por você. E da próxima vez que você decidir sumir, vê se avisa antes pra eu poder chutar o seu traseiro pra você sumir com ele doendo.

Apesar da repreensão, Mathen foi o primeiro a se aproximar de Kayan e, inesperadamente, receber um abraço.

Sem que ninguém esperasse, Kayan seguiu de um a um de seus amigos e os abraçou. Mesmo sem entender nada, seu gesto de afeição foi retribuído por todos de muito bom grado.

— Eu devo um pedido de desculpas a todos vocês – disse ele. – Nos últimos dias eu tenho agido muito mal com vocês. Espero que possam me perdoar por isso e continuar a me apoiar como os bons amigos que são.

— O que posso dizer, Kayan – disse-lhe Spaak. – Tem sido meio chato estar perto de você ultimamente. Seu mau humor tem sido difícil de aguentar, mas nós temos nos esforçado por sabermos pelo que você tem passado e esperamos ansiosamente para ter o Kayan que conhecemos e gostamos de volta. Não há nada a ser perdoado aqui.

— Só pela sua mudança de atitude parece que você já percebeu que o que você fazia não te levaria a nada. Nós gostamos de ter você por perto, Kayan, e só por você parar de agir feito um idiota já é um pedido de desculpas o suficiente.

As palavras de Nathie fizeram com que um tímido sorriso curvasse os lábios do Atreius. Em seguida, ele olhou para Thays, que acenou para ele de maneira afirmativa com a cabeça.

— Vou confessar-lhes que ainda estou um tanto quanto triste sem a Sarah e sentindo-me só. Mas prometo que não irei mais agir daquela maneira e nem afastar nenhum de vocês de mim. A Thays me fez perceber a maneira errada como eu estava agindo e agora podem esperar um pouco do antigo Kayan de volta.

— Nós também sentimos falta dela, Kayan, talvez não tanto quanto você, mas sentimos. A Sarah era uma garota muito especial e todos gostávamos dela. Foi uma das perdas mais tristes e dolorosas para esta ordem, mas precisamos nos levantar e seguir em frente. Pode ser doloroso agora, mas, no futuro, tudo o que restará serão todas as lembranças felizes dos momentos em que vocês estiveram juntos.

— Obrigado Aghata, sei que o que me fala é a verdade, por mais difícil que seja acreditar nisso neste momento.

— Já que o Kayan superou esse momento sombrio, que tal se fossemos todos para a taverna. Não precisa ser algo animado, apenas para conversarmos e tomarmos alguma coisa.

Enquanto fazia a sugestão, Mathen empurrou Kayan para frente conduzindo-o em direção à taverna.

— Tudo bem, tudo bem, eu irei, não precisa me empurrar.

— É apenas para garantir que você não fuja. Alias você deve um pedido de desculpas para o Karzus também, não se esqueça.

— Serio? Não podemos simplesmente fingir que nada daquilo aconteceu durante a missão?

— Nada disso, não permitirei.

— Como você é chato, Mathen...

E foi com um clima completamente diferente do que o dos últimos dias que o grupo seguiu para a taverna. Poderia não ser a noite mais animada, mas foi o suficiente para que vários laços de amizade se fortalecessem ainda mais.