O Choro da Baobhan Sìth escrita por Lady Morgana


Capítulo 1
Não tema esta noite...


Notas iniciais do capítulo

Música que me ajudou no quesito inspiração:
https://www.youtube.com/watch?v=hSpe5NLE1qI

Vocabulário (Nenhuma das palavras irá "atrapalhar" a leitura, ainda que estejam em Gaélico Escocês):

Daidean: Papai;
Stubag: Querida, docinho (Comumente usada para jovens meninas);
Samhuinn: Samhain, em Gaélico Escocês (Será explicado ao longo da história);
Daingit: Expressa descontentamento. Algo como "Que inferno!";
Mo mhilseag: Minha querida/Meu querido;
Luaidh mo chèile: Amor da minha vida.

Dedicada às minhas irmãs de coração, Nykks (The Phantom Queen) e Gabii (Sorveti), vulgo bitches. Amo vocês



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Postura impecável, queixo alinhado, vestido imaculado e não afetado pela longa viagem. Moira Sheehy observava — distante — a réstia de luz do crepúsculo. Uma jovem frágil; era a imagem que passava a quem quer que a apreciasse. Contudo, quem a olhasse não saberia o quanto odiava toda aquela formalidade. Sentia-se presa pelos laços e babados, e sufocada pelo tormentoso espartilho.

A única coisa capaz de apaziguá-la era a bela visão que contemplava pela janela da carruagem. As ruínas, do que antes fora o Castelo de Urquhart, adornavam agora o promontório do Loch Ness. Por um instante imaginou aquele castelo em todo seu esplendor; as músicas que cantavam e as histórias que contavam. Tudo resumido a escombros.

Ao fundo, o lago reluzia como que coberto por diamantes. Queria que o cocheiro parasse ali por apenas um momento, para que pudesse respirar o ar puro e reconfortante das Terras Altas. Passava tanto tempo servindo ao modelo da sociedade que ansiava por ser ela mesma — para variar — ainda que breve.

— Belo, não? — Lenox Sheehy coçava o queixo enquanto também observava a paisagem.

— Sim, daidean. — Ela desviou o olhar, voltando-o para sua realidade.

Realidade essa que a guiava em direção a um jantar na casa de seu noivo. Seu pai ficara mais feliz que ela com essa união iminente das famílias. Ambos eram do ramo da metalurgia, e aspiravam por uma fusão benéfica para as empresas. O noivado seria anunciado naquela noite, onde todos dariam suas congratulações, enquanto Moira fingiria que era a mulher mais feliz de toda a Escócia. Teria mais riqueza e status, conforto e... Qual era o elemento que faltava? Onde estava a paixão arrebatadora descrita nos livros que lia? Sentia que esperava demais do que não passava de uma utopia.

Graeme Allaway — o noivo — não era um homem de aparência desleixada, nem de atitude arrogante ou ignorante. Suas palavras eram gentis e seus modos corteses. O que incomodava Moira era sua própria inexperiência. Mas era isso que deveria passar, não era? Uma delicada pintura em movimento; símbolo romanesco de sua época. Em seu âmago desejava que Graeme não fosse o tipo de homem que se divertia em ter uma boneca ao invés de esposa.

Algumas horas se passaram, e logo puderam avistar Schiehallion, também conhecida como Montanhas Caledonianas das Fadas. Para muitos era um lugar místico, para outros não passavam de esplêndidas montanhas. De qualquer maneira, a noite caíra sobre tudo e todos. O véu abobadado parecia possuir as mesmas pedras preciosas que enfeitavam o lago mais cedo. E a maior e mais bela pedra projetava raios luminescentes sobre a carruagem.

Estavam mais próximos de seu destino, e Moira não podia evitar o desassossego.

— Está pálida, stubag. Algo a incomoda? — Seu pai, apesar do jeito turrão, era um bom homem e preocupava-se imensamente com sua única filha.

— Não, daidean, estou apenas um pouco apreensiva.

— Graeme é um homem nobre e cuidará muito bem da minha preciosa filha. — Moira sorriu e voltou seu olhar para a janela. Por um momento pensou ver algumas silhuetas no cume de Schiehallion. — Especialmente depois que eu me for.

— Não fale assim, por favor.

— Espera que eu viva cem anos? — Uma risada gutural escapou de seus lábios. — Não, minha querida. Apenas lembre-se de acender uma vela na noite de primeiro de novembro, para que seu pobre pai alcance a Terra da Eterna Juventude.

Moira preferiu manter-se calada. Não gostava do jeito despreocupado com que falava da morte, especialmente pelo fato de que o próximo Samhuinn — o Ano Novo pagão — seria no dia seguinte.

Manteve seu olhar distante, até que notou algo — alguém — correndo por entre as árvores na mesma velocidade em que os cavalos. Tentou fixar seu olhar até que, num forte estampido, a carruagem perdeu a estabilidade e começou a tombar para o lado.

Um grito de surpresa escapou da jovem, que segurou-se onde pode. O cocheiro — felizmente — conseguiu recuperar o equilíbrio e parou logo a frente. A carruagem tombava para o lado de Moira que olhava assustada para seu pai.

Daingit! — exclamou ele, furioso após o choque inicial. — Aiken, pensa estar levando animais aqui dentro?

Eles ouviram as botas pesadas do cocheiro irem de encontro ao solo e, logo depois, este abriu a porta.

— Mil perdões, senhor, senhorita. — O rapaz fez uma vênia tão profunda que Moira acreditou que iria beijar seus pés. — Algo cruzou a minha frente e os cavalos se assustaram. Tentei manter o controle, contudo, acabei guiando-nos em direção a uma pedra, que... — Ele olhou para a roda traseira. — destruiu parcialmente a roda.

Moira, mesmo na escuridão, conseguiu ver o rosto de seu pai tornar-se púrpura de raiva.

— Desate um dos cavalos, pegue-o, e vá até a casa do Sr. Allaway, Aiken. — disse ela, visto que seu pai parecia incapaz de dizer qualquer palavra que não fosse ofensiva. — Explique o que aconteceu e peça auxílio, sim?

O rapaz voltou seu olhar para Lenox e aguardou, fazendo Moira bufar internamente.

— Faça o que a Srta. Sheehy disse, agora. E mande Scottie fazer uma pequena fogueira; não quero que minha filha chegue congelada ao seu jantar de noivado.

— Sim, senhor, agora mesmo, senhor. — Aiken sumiu de vista tão rápido que impressionou.

Fez questão de gritar as ordens de seu senhor para Scottie, para que o primeiro as ouvisse. Lenox murmurava xingamentos e mais xingamentos em gaélico, e sua filha fingia ignorá-los.

Não demorou muito para ouvirem os galopes do cavalo, e o crepitar da fogueira. Scottie, assim que terminou, bateu três vezes na porta e a abriu.

— Senhor, senhorita, a fogueira está pronta.

Numa distância segura e confortável, o calor da fogueira conseguia chegar até eles dentro da carruagem. Ainda assim, Moira ajeitou sua pelerine para que cobrisse seu pescoço. “Finalmente consegui um tempo para apreciar a beleza das Terras Altas. Pena que é noite... E está frio”.

Scottie ficou em pé, perto da fogueira, e de costas para a floresta. Ele esfregava as mãos enluvadas e as assoprava como se isso fosse adiantar de algo para aplacar o frio escocês.

— Espero que Aiken chegue em breve. Esse lugar é perigoso à noite.

Algo dizia à Moira que seu pai não se referia aos ladrões, e isso a assustou. Sabia que ele não era um homem supersticioso, mas não parecia muito confortável em estar aos pés das Montanhas das Fadas.

— Há algo que intencionava entregar-lhe durante o anúncio de noivado, porém... — Lenox tirou do bolso interno do casaco um belo colar de camafeu. — Era de sua mãe, que deixou-o sob os meus cuidados para que, um dia, eu passasse para suas mãos.

O camafeu pendia numa fita de cetim vermelho. Um pouco extravagante, e pesado, mas Moira gostou. Era uma lembrança de sua mãe, que partira quando ela tinha apenas nove anos. A intrincada estrutura ao redor era de ferro, por isso o peso.

— É lindo, daidean. Poderia... ?

— É claro. — O pai pegou o colar de sua filha, e esta se virou para que ele o pousasse em seu pescoço.

Moira o pegou em sua mão, sentindo a frieza do metal. Voltou a sentar-se confortavelmente e ficou observando as chamas dançarem num ritmo fascinante, traçando os mais diversos padrões de sombras ao redor. Moira aconchegou-se ainda com o camafeu em mão, adormecendo embalada pela ária obscura da noite, e sonhou.

Em seu sonho estava em frente à fogueira. O calor emanado não era suficiente para aquecê-la. O vento sussurrava em seu ouvido uma melodia distante de outrora, quando aquelas terras eram povoadas pelos Sìth; fadas e elfos que tinham seu lar naquelas montanhas. Criaturas que faziam parte das lendas que sua mãe costumava contar.

Moira observava as chamas até ouvir alguém se aproximar, trazido pelo vento. Despreocupada, ela levantou seu olhar e viu uma bela mulher parada do outro lado da fogueira. Seus cabelos dançavam como flamas, e a luz da lua formava uma auréola no topo de suas madeixas castanhas. Era tão bela que não podia ser humana. “Não mais”. Seu vestido verde não condizia com a época em que estavam, e mostrava mais do que uma dama de respeito deveria.

Sua tez diáfana possuía a essência lunar luminescente. Poderia ser um anjo, se não fosse pelo sorriso malicioso que surgia em seu rosto e o líquido escarlate que escorria pelos cantos de sua boca. Suas unhas cresceram gradativamente até parecerem garras, e sua beleza mostrara-se efêmera ao ser substituída pela expressão de um predador.

A fogueira apagou-se, entretanto, Moira não estava com medo. Aproximou-se da mulher, erguendo sua mão para tocar seu rosto. Pensou, por um momento, que passaria direto por ela, mas a criatura também levantou sua mão indo ao seu encontro. Foi então que sentiu o toque enregelado da água do Loch Ness. A imagem da mulher tremeluziu, indicando que não passava de um reflexo seu.

Um grito escapou de sua garganta, fazendo-a despertar do terrível pesadelo. Sua respiração pesada era o único som dentro da carruagem... Vazia.

Daidean? — Moira olhou pela janela, dando falta da luz da fogueira, agora apagada. - Daidean?!

Nem seu pai, nem Scottie estavam presentes. O primeiro pensamento, por mais estapafúrdio que fosse, foi o de ter sido abandonada. Depois pensou na possibilidade deles terem ido procurar ajuda. Ainda assim sabia que o pai a teria avisado.

Num estalo, lembrou-se de uma das lendas que sua mãe contara certa vez. Mulheres vestidas de verde, que habitavam as Terras Altas da Escócia e atraiam andarilhos com sua beleza para uma dança fatal. Elas abriam talhos na carne dos pobres coitados e sorviam o sumo de suas veias. Eram conhecidas como Baobhan Sìth; fadas que alimentavam-se de sangue humano.

Temerosa, Moira abriu a porta e cambaleou para fora, ainda sobre o efeito entorpecedor do sono, e sentiu o frio beijar sua pele. Estava perdida, sozinha, sob o olhar impassível da lua e das estrelas. A fumaça da fogueira ainda subia e emanava uma sensação morna.

O único ser vivo que compartilhava de sua presença era um dos cavalos.

Quanto tempo dormira? Não sabia dizer. Tentou procurar a resposta na posição da lua, até ouvir um farfalhar de folhas bem atrás de si. Seu coração batia tão forte que poderia jurar que qualquer um por perto poderia ouvir.

Ela caminhou até o outro lado, perto do lago, e viu seu reflexo. Ainda tinha a mesma aparência de antes. Inspirou profundamente, pedindo que seus pensamentos desanuviassem, quando algo a arremessou para o outro lado, desviando por pouco da carruagem.

Arfando em busca de oxigênio, virou para o lado e deparou-se com o rosto deformado e ensanguentado de Scottie que, há poucos minutos, não estava ali. Haviam cortes por todo o seu rosto jovem, e seus olhos estavam esbugalhados e boca escancarada, com um reflexo do fantasma que o assombrara. O grito que pretendia dar não saiu; começou a balbuciar coisas que nem mesmo ela conseguia compreender.

As criaturas que o fizeram formaram um círculo ao seu redor. Todas elas eram jovens, lindas e traiçoeiras. Os vestidos verdes esvoaçavam ao seu redor, e os cabelos caiam em cascata por suas costas. Porém, o que mais chamou a atenção da jovem, naquele momento, fora os olhos negros como breu ausentes de qualquer sentimento bom e justo das criaturas.

Uma delas ajoelhou-se ao lado de Moira, chegando o rosto bem perto de seu pescoço e inspirou profundamente. Deu um singelo sorriso antes de olhar para as companheiras. As outras também sorriram, e Moira viu a mulher erguer sua mão direita enquanto as garras expandiam como as de uma ave de rapina.

Num movimento rápido, fez um longo corte no pulso da jovem. Mais uma vez a fada chegou bem perto, pegando seu antebraço, e passou a língua pelo sangue que escorria, saboreando o néctar puro; livre de máculas, para então cravar os dentes na tenra carne.

Moira reencontrou seu fôlego e o grito ecoou para o deleite das Baobhan Sìth. Sua visão embaçada pelas lágrimas transformava tudo num grande borrão, assim como seus pensamentos confusos a impediam de raciocinar. Um jorro de lembranças a tomou, e uma delas poderia ajudá-la a sair dali. Sua mãe dissera que apenas o sol e o fogo poderiam destruir uma Baobhan Sìth, contudo, havia uma maneira de feri-las e outra de afastá-las.

Lentamente, Moira levou sua mão até o decote de seu vestido, afastando a pelerine, e sentiu o camafeu.

— Elas temem os cavalos. Um cavaleiro nunca seria atacado por uma Baobhan Sìth, e sabes por quê? — Moira poderia jurar que sua mãe estava ao seu lado, sussurrando a resposta em seu ouvido. — Do que é feito a ferradura? Ferro, mo mhilseag. Ferro é o que pode detê-las.

Juntando suas forças, Moira puxou o colar e, com o camafeu na mão, deu um tapa no rosto da Sìth. Esta urrou de dor graças ao ferro, que queimou sua pele, e afastou-se às pressas. “O cavalo” Pensou ela. Com muito esforço conseguiu se levantar, brandindo o camafeu como uma arma. As criaturas estavam furiosas e mostravam seus dentes pontiagudos tentando intimidá-la.

Enquanto — quase — arrastava-se em direção ao cavalo, notou que a atenção das Sìth voltara-se para a estrada, e estas logo bateram em retirada em direção às montanhas. Foi então que Moira ouviu ao longe o som de galopes indo na sua direção. Ainda com o camafeu na mão, sentiu-se desabar ao lado do cavalo; seus olhos chegaram a contemplar a aproximação de uma carruagem.

Moira não fazia ideia do que estava acontecendo. Primeiro sentiu seu corpo ser soerguido por alguém, ouvindo sua voz, mas não conseguiu reconhecê-la. Seu corpo inteiro doía de uma maneira que nunca sentira antes, e manter os olhos abertos era difícil.

— Ficará tudo bem, luaidh mo chèile, estou aqui. — Graeme Allaway a segurou em seu colo, ignorando o corpo dilacerado de Scottie.

Precisava achar seu sogro, vivo ou morto, mas Moira era sua prioridade naquele momento.


— Notícias? — perguntou Graeme, em frente à porta do quarto onde Moira estava.

— As piores.

Barclay, um dos melhores amigos de Graeme, saíra em busca de Lenox Sheehy e o encontrara em pior estado que o pobre Scottie. Ou melhor, encontrara a maior parte dele, já que faltavam alguns membros.

Alguém dera com a língua nos dentes e espalhara diversos rumores pela cidade, que disseminaram-se como fogo numa floresta. Quase todos estavam relacionados às superstições locais, e alguns diziam que fora um grupo de ladrões que assassinara – barbaramente – dois nobres homens.

— E tem algo mais, Allaway. — Graeme, que já estava voltando para o quarto, parou. — Lenox foi encontrado perto de um anel de fadas.

— Não posso acreditar que você concorda com os disparates que andam dizendo por aí, Barclay.

— Então explique o que está acontecendo com a sua noiva. Por que ela grita de dor? Como as unhas dela ficaram tão pontiagudas em poucas horas? Céus, Graeme, a Srta. Sheehy está quase translúcida. — Graeme tinha os punhos cerrados e respirava fundo para não perder as estribeiras. — Toda a Escócia já ouviu lendas sobre essas criaturas sanguinolentas, e não se esqueça que apenas mulheres podem ser transformadas.

— Está dizendo a minha Moira é uma delas?

— Não ainda, mas em breve. — Barclay via a raiva nos olhos do amigo, mas precisava dizer o que pensava.

— Devo matá-la, então? É isso o que quer? Devo decepar a cabeça, ou prendê-la com correntes de ferro e deixar que contemple a aurora?

— Talvez, se a criatura que a mordeu for morta, eu não sei, é provável que ela volte ao normal. E do jeito que as coisas caminham diria que deve apressar-se. — Barclay mostrou as horas em seu relógio de bolso. Passava do meio-dia. — Sabe que dia é hoje, não sabe?

— Samhuinn. — Graeme sentia que estava perdendo o juízo.

— Sim, e essas criaturas estarão ainda mais fortes com o véu entre os dois mundos tão fino. Reuniremos a maior quantidade de homens possível, e ficaremos à espera do crepúsculo. — O silêncio do amigo não era animador. — Graeme?

— Precisaremos de ferro. — disse, antes de voltar para o quarto.



Um breve momento de lucidez em meio a infernal agonia. Moira recebera o beijo da morte para renascer em uma nova vida. As lembranças da noite anterior eram horrendas. O rosto das criaturas de beleza feérica, e coração tão frio quanto o Loch Ness, a atormentavam. Sabia que, mesmo sobrevivendo, nunca conseguiria olvidar o que presenciara.

E seu pobre pai... Tinha certeza do que acontecera com ele, mas não queria admitir. Isso era ainda mais doloroso.

Ainda de olhos fechados, sentiu Graeme sentando ao seu lado. Ele velara o seu sono e se saíra mais que duas vezes do quarto era muito. No começo Moira mal sabia onde estava, agora conseguia ouvir as batidas do coração de seu noivo, e sua respiração cansada, de longe. Entretanto, o que mais a incomodava era o cheiro metálico que parecia impregnar o quarto, e que ficava ainda mais intenso quando Graeme se aproximava.

Seu corpo estava sendo destruído de dentro para fora, e não sabia quanto tempo mais conseguiria aguentar aquela batalha interna.

— Tudo ficará bem. — murmurava Graeme, enquanto acariciava seus cabelos. — Darei um jeito nisso.

— Acho que é um pouco tarde para isso. — Quando Moira abriu os olhos, ele sentiu um grande alívio. — Poderia fechar as cortinas, por favor? A luz incomoda-me bastante.

Graeme levantou-se rapidamente e fez o que fora-lhe pedido. O quarto caiu na escuridão, e ele acabou tropeçando em uma cadeira enquanto procurava por uma vela. Moira conseguia enxergá-lo sem dificuldade; as entradas em seu cabelo, as sobrancelhas espessas que pesavam sobre os seus olhos amendoados, e a barba por fazer que quase encobria seus lábios finos.

Uma forte queimação em seu peito a fez fechar os olhos por um instante, e sentiu o colchão deformar-se ao peso de seu noivo, quando ele voltou a sentar ao seu lado tomando as mãos delicadas nas suas.

— Estão congelando. — disse ele esfregando-as.

Como poderia quando sinto que labaredas beijam a minha carne?” Moira manteve-se calada na esperança de que a queimação em seu peito diminuísse, mas só piorava. Levou então a mão ao local e sentiu o cordão em volta do seu pescoço.

— Eu o coloquei de volta. — Graeme beijou o topo de sua cabeça. — Estava na sua mão quando o encontrei.

Com algum esforço ela o retirou. Em seu peito estava o formato exato do camafeu. “Ferro...” Pensou, entregando-o ao seu noivo.

— Tome conta dele por mim. — Sua voz saía como um sussurro.

Os dois ficaram ali por um longo tempo. Algumas horas antes do entardecer, Moira pediu que ele voltasse a abrir as cortinas. Do lado de fora, o céu estava pintado com matizes do entardecer, e Graeme sabia que — em breve — teria uma viagem a fazer.

— Preciso acender uma vela para meu pai. — disse ela, sonolenta. — Ele pediu que eu o fizesse para que pudesse encontrar a Terra da Eterna Juventude.

Moira ouvia as batidas de seu coração diminuindo num ritmo penoso. Sentia sua alma esvaindo-se, pondo-se com o sol. O sono e o frio eram seus companheiros, ao passo que sua visão começava a turvar. A última coisa que pensara ter visto fora seu pai, parado ao seu lado com a expressão mais desolada de todas. Foi então que o ar deixou de soprar em seus pulmões, e as batidas de seu coração cessaram.

Graeme viu a cabeça de sua noiva tombar para o lado, lábios entreabertos, e sua mão soltou-se da dele.

— Moira? — Ele chegou a mão perto de sua boca e nariz apenas para constatar o que já era claro.

Sem acreditar no que estava acontecendo, levantou-se ainda olhando para o corpo inerte que ocupava a cama. “Poderia estar dormindo” Pensou, passando as mãos pelos cabelos.

Batidas na porta desviaram sua atenção. Ele a entreabriu e deparou-se com o médico que mandara chamar, e uma criada.

— Ela está dormindo, e não quero que ninguém a incomode. — disse secamente — Chame Barclay aqui.

Minutos depois o seu grande amigo estava parado no meio do quarto, observando o corpo de Moira ainda na mesma posição.

— O que faço agora? Com ela morta, como unirei minha empresa à empresa de Lenox?! Aquele velho maldito poderia morrer, mas Moira não!

— Acalme-se, homem. Primeiro temos que lidar com a “limpeza da honra” de seu sogro. Se não o fizer todos irão comentar sobre sua covardia. — Graeme estava prestes a rebater, mas Barclay continuou. — Diga que a Srta. Sheehy está descansando e que ninguém deve entrar em seus aposentos. Assim poderemos lidar com uma coisa de cada vez.

— Não acredito que terei que lidar com todo esse perigo por causa de uma morta. — Graeme suspirou pesarosamente. — Vamos antes que eu desista de tudo isso.

— Espere, você irá deixá-la aqui assim? E se ela...

— Acordar? Por favor, Barclay, Moira está morta.

— Pensei que acreditasse no que disse.

— Você acredita, as pessoas acreditam... Eu não. Vamos encenar o nosso ato, e partirmos. Tenho mais o que pensar.

Os dois saíram do quarto e Graeme o trancou, levando a chave consigo. Não queria mais ninguém entrando ali. Iria dar um jeito de conseguir a empresa de Lenox de um jeito ou de outro.

Do lado de fora, vários rapazes e homens — montados em seus cavalos — aguardavam-no. Uns carregavam pistolas, outros carregavam sabres, mas todos levavam, pelo menos, uma corrente de ferro e um archote. Graeme tentou evitar o desprezo em seu olhar e foi o mais polido possível ao agradecer a presença de todos.

Eles partiram a toda velocidade em direção à Schiehallion. A maioria tinha certeza de que avistaria as belas Baobhan Sìth, outros estavam ali pela diversão da caçada do que quer que fosse, criatura ou homem.

Ao chegarem ao local, foram obrigados a descerem dos cavalos e armarem uma fogueira. Segundo as lendas, essas criaturas eram atraídas por homens e boa música. Era isso que elas teriam, então.

Tudo estava preparado, só faltava a chegada das tais fadas. E assim eles esperaram, e esperaram na noite Samhuinn enquanto as horas passavam. Eram poucos que ainda consideravam aquela uma data sagrada, mas isso não importava. Para os Sìth, aquele sempre seria o dia de Ano Novo. A noite em que poderiam andar livremente pela Terra.

E eles sabiam... Sabiam da presença dos homens, de suas intenções e estavam dispostos a saberem como aquilo acabaria. Das sombras, as Baobhan os espreitavam, aguardando o momento certo para atacarem. Elas teriam a noite toda para fazerem isso, mas os homens estavam apreensivos demais e não iriam descansar até conseguirem matar uma delas.

— Quando elas aparecerão? — perguntava a maioria.

Eram tão sanguinários quanto as criaturas que desejavam destruir. No meio de tanta música, e o calor da fogueira, alguns homens — como bons escoceses — começaram a beber. Não demorou muito até que muitas bochechas ficassem rosadas e risadas estridentes repercutissem pela noite adentro.

Graeme manteve-se perto de seu cavalo, apenas por precaução, enquanto observava a floresta. Ruminava sobre Moira e sobre a empresa que desejava tomar posse. Quando a oportunidade de aumentar sua riqueza surgira, agarrou-a com unhas e dentes. O casamento seria a melhor maneira de concretizar o que tanto desejava. “E ela era tão bela... Que desperdício”.

Foi então que uma ventania, vinda diretamente da floresta, pegou a todos de surpresa. Além de apagar a fogueira, trouxe o odor fétido de sangue.

— Acendam os archotes! — exclamou Graeme, sacando sua pistola.

Perto de onde a fogueira antes ardia, um dos homens acendeu o seu apenas a tempo de iluminar o rosto pálido que o observava com um sorriso perverso no rosto, deixando seus caninos pontiagudos à mostra. Antes que o grito sequer reverberasse, a Baobhan, numa velocidade inumana, rasgou a garganta do pobre coitado com suas garras.

Os outros empunharam suas armas, pouco se preocupando com uma das poucas formas de matar a criatura: Fogo.

Barclay segurava seu sabre com pouca convicção de que sairia daquela empreitada vivo. Ainda assim ele avançou em direção às Baobhan, que estavam num grupo de cinco e já haviam destroçado mais de dez homens. Eram rápidas e silenciosas e, sem o auxílio do fogo, quase invencíveis.

Os gritos, os tiros, o som úmido das lâminas em contato com a carne; tudo isso em conjunto compunha uma música tenebrosa.

De longe, Graeme observava ao redor com espanto, constatando que aquilo em que acreditava estava errado. Criaturas saídas de dentro das lendas que só crianças e supersticiosos temiam. Decidido a não se tornar mais uma vítima, deu as costas para todos de modo a subir no cavalo e partir dali o mais rápido possível. Contudo, antes que o fizesse, uma mão o puxou com força em direção ao chão. Só o que pode fazer na posição em que se encontrava foi jogar o pé na direção do que o segurava, e acabou acertando a barriga de uma das Baobhan.

Com a pistola na mão, virou-se na direção dela e atirou. A bala acertou em cheio seu peito, o que só a deixou com mais raiva. A Baobhan o puxou pelos pés, afastando-o do cavalo. Estava prestes a rasgar sua garganta quando o sabre de Barclay decepou sua cabeça.

Ao redor dos dois, a morte pairava aguardando que o último ser vivo caísse. Do grande grupo que partiu em direção à Schiehallion, apenas três homens permaneciam de pé e duas Baobhan Sìth. Os corpos no chão estavam quase irreconhecíveis, despedaçados e o ar estava empesteado com o odor do sangue e destruição.

Barclay e Graeme mantiveram-se perto dos cavalos, enquanto o outro pobre coitado cambaleava com o sabre em punho, mal aguentando-se em pé. As duas Baobhan o rodeavam, brincando com a comida. Quando ele tentava atingi-las, a lâmina cortava apenas o vazio.

— Temos que ajudá-lo. — murmurou Barclay, mas Graeme apenas negou com a cabeça.

O amigo arrancou a arma da mão do outro e correu na direção das criaturas com a arma apontada. O primeiro tiro atingiu o ombro de uma delas, e ambas voltaram sua atenção para o agressor. Num piscar de olhos, as duas fundiram-se às sombras e desapareceram. Barclay, no mesmo instante, arrependeu-se de ter saído de perto dos cavalos. Atacava o nada na esperança de encontrá-las, até que uma delas apareceu. Suas garras cravaram-se na garganta do outro e arrancou-a fazendo o sangue jorrar em seu rosto.

Num rompante, Graeme correu na sua direção, coletando uma das correntes de ferro do chão e a jogou ao redor do pescoço da fada. Esta caiu no chão, e Barclay cortou sua cabeça.

Eles nem tiveram tempo de comemora. A última Baobhan apareceu do nada e — num movimento limpo — quebrou o pescoço de Barclay. Graeme nem teve tempo e possibilidade de defender-se. A Baobhan o pegou pelo pescoço e arremessou-o longe. Ao cair no chão, a fada já estava ao seu lado.

Incapaz de se mexer, fechou os olhos e esperou pela morte, mas tudo o que ouviu foi o som de algo sendo cortado. Rapidamente, voltou a olhar e encontrou o corpo da Baobhan ao seu lado e a cabeça a alguns centímetros de distância. Em pé, estava Moira. Ela ainda usava a mesma camisola de antes, e seus cabelos — soltos — chegavam até sua cintura.

Luaidh mo chèile... — Moira aproximou-se dele com um olhar de puro desprezo. — olhos negros como a noite — e ajoelhou-se.

— “O que faço agora? Com ela morta, como unirei minha empresa à empresa de Lenox?! Aquele velho maldito poderia morrer, mas Moira não!” — Ela repetiu com perfeição as palavras que Graeme dissera quando achava que estava morta. — Não deveria preocupar-se com isso. Não mais, Luaidh mo chèile.

— Moira...

Essa fora sua última palavra antes que ela cravasse os dentes em seu pescoço. Os gemidos gorgolejantes dele não a pararam nem por um segundo. Sentia-se revigorada, invencível e vingada. As criaturas que mataram seu pai estavam mortas, assim como o interesseiro que tentara conspurcar sua empresa. O sangue inflamava suas veias com vida.

Quando terminou, começou a procurar pelo colar de sua mãe em seus bolsos e o achou. Nunca mais poderia usá-lo, mas serviria para alimentar suas boas memórias.

Moira coletou todos os pedaços das Baobhan Sìth e os despôs na beirada do Loch Ness. A imagem lúgubre não a assustava mais e o odor do sangue não feria seu sensível olfato. Lembrou-se então da promessa que fizera ao pai: Acender a vela. Como não tinha nenhuma ao redor teria que aproveitar-se de um dos archotes.

Gerando fricção entre um graveto e a madeira, o fogo surgiu. Fora mais fácil do que quando era criança e seu pai a ensinara. Suas mãos, muito mais ágeis, e a velocidade sobre-humana contribuíram - e muito - para isso. Com o archote aceso, Moira incendiou os corpos das fadas – com todo o cuidado - e observou enquanto queimavam, sentada na grama. Sentia que deveria se jogar nas chamas, mas tinha medo. Medo do que encontraria do outro lado. De ser condenada pelo o que tornara-se, um monstro, mesmo que contra sua vontade.

— Não é a sua hora. — Moira virou-se assustada e deparou-se com seu pai, sentado ao seu lado. — Ainda é Samhuinn, mas o amanhecer está a apenas um batimento de distância. — Moira assentiu, sentindo as lágrimas escorrerem pelo seu rosto. — Nenhum monstro é capaz de chorar, stubag. — disse ele, sorrindo. — Vá para a floresta e aguarde o entardecer. Uma nova vida a espera.

Lenox ergueu a mão, como se fosse acariciar o rosto da filha, mas a deixou cair tristemente. Moira queria falar que o amava, mas não conseguia. Desejava partir com ele, mas ainda não era sua hora.

Quando os primeiros raios de sol começaram a iluminar as Terras Altas, Moira abrigou-se na floresta, que de tão densa não deixava a luz adentrar. Ela observou seu pai, aos poucos, começar a evanescer. Ele tinha um sorriso no rosto e acenou algumas vezes antes de sumir por completo.

Moira caiu de joelhos, deixando que o pranto e o luto a tomassem até que todas as lágrimas secassem. Estava sozinha e o futuro incerto era aterrador. Lembrou-se do próprio reflexo em seu pesadelo, e estava decidida a não tornar-se aquilo. Perdida para o seu antigo mundo, finalmente, encontrou-se.


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Notas finais do capítulo

Oh, você por aqui! Que bom vê-lo(a) -q Obrigada por ter lido, e espero seu review *-*