Além das Dunas Brancas escrita por Shalashaska


Capítulo 19
Garoa


Notas iniciais do capítulo

E então, como foram no Enem? Hahah esse ano foi pra lacrar XD
Enfim, mais um capítulo meio parado porque sim - preciso preparar o terreno lentamente para o XABLAU. O próximo vai ter coisas mais legais, fiquem todos tranquilos.
Espero que gostem!



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Somente quando finas gotas borrifaram seu rosto, Raed percebeu que chovia e ventava lá fora. De onde vinha a água? Descobrir foi o que quebrou a hipnose das palavras de Auri, seus relatos sobre o que vira e o que sentira aqui no Além. Retirou seus olhos cansados sobre o papel e mirou o céu escuro através da janela, que em sua parte superior de mosaico jazia estilhaçada. A brisa passava por ali, trazendo o choro das nuvens, mas não lembrava-se do tempo tão cinzento à tarde. Choveria todos dias? Ou somente à esta hora, no meio da noite?

Tamborilou os dedos na escrivaninha, e a sombra de sua mão mais parecia o espectro de aranha, bruxuleante e impaciente, fazendo um som morto na madeira. Sentia um vazio em seu estômago, sentia uma inquietação sobre sua pele. Levantou-se.

Caminhar sozinho na Catedral, sem a gênio ou suas armas, deveria ter um efeito agonizante sobre si, aquela sensação de vulnerabilidade que por vezes fingia que não sentia. Deveria. Porém seus passos eram folgados no pó, sua postura relaxada pelo corredor. Não importava a tempestade lá fora, a canção das goteiras dentro. Com o peso do livro em uma das mãos e a lamparina acesa na outra, o ladrão ignorou a maioria das portas e entrou na penúltima à direita, uma que já entrara antes com Alethia e não vira absolutamente nada de especial.

Como tudo, estava abandonado e apenas a luz da lamparina revelava primeiramente os contornos dos objetos. Lençóis cobriam o jogo de móveis, as poltronas e cadeiras, os vasos e os quadros, e uma cama de casal grande demais lhe deixou consciente do quanto sentia dor nas costas. Atravessou o quarto inteiro e com um suspiro largou a lamparina em cima do criado-mudo, para então largar-se sobre o colchão. Não queria ter deitado, nem se espreguiçado e muito menos fechado os olhos em cima daquela cama, não era por tudo aquilo que estava ali... Mas, por aqueles três deuses sem nome no andar abaixo, como era bom! O tempo havia rapinado do colchão a boa e limpa fragância, a textura e maciez perfeita, no entanto, ainda conservava o doce embalo do sono.

Teria logo dormido caso um trovão não o ameaçasse.

Abriu as pálpebras, encarando o mesmo teto que Auri tinha encarado há tempos atrás. Ao contrário de Raed, parecia reconhecer algumas coisas daquele lugar, a função de alguns quartos e de algumas ferramentas estranhas; por exemplo, sabia que haveria quartos nos templos desta esquecida cultura para seus sacerdotes e aprendizes. Dormira aqui, comera aqui e depois enlouquecera também.

Escreveu os sonhos terríveis que invadiam sua cabeça repousada neste mesmo travesseiro, detalhou cada fantasia que aos poucos devorava sua razão. Demônios de pedras. Corvos. Canções.

Bobagens.

O caçador de recompensas decidiu que seria uma ideia melhor resgatar as frases lúcidas do diário, trechos que de fato lhe seriam úteis. Auri dissera que demorou a acreditar que o Além era um limbo de tão vazio, mas assim que convenceu-se disto mudou-se para este quarto e passou a usar o escritório ao final do corredor como armazém. Talvez neste cômodo houvesse mais respostas, mais rastros do que Auri fora. Ao pular do colchão e alcançar o lampião com seus dedos doloridos, Raed soltou um suspiro que reverberou pelos quatro cantos do cômodo.

O rasgo em seu braço, feito na hora em que precisava libertar-se de Tamir, já cicatrizava à despeito de todas as precárias condições que vivera desde então. Nada infeccionado, embora sofrível junto ao ardor da marca de ave na palma. O aperto das boleadeiras também parecia estar ali, a cada passo que rumava a qualquer lugar, e a fome crescia. Amanhã mesmo teriam que procurar comida, talvez aquelas aves que Auri comentara caçar nos arredores da Catedral, em meio à floresta.

Sua silhueta vagarosa inspecionou as gavetas e as prateleiras, ato silencioso e deveras comum para ele. Não amava as cidadelas, mas sabia sobreviver bem à elas com breves furtos e arrombamentos; Um bom ladrão é aquele que ninguém conhece e Raed era o próprio ninguém. Encontrou um vaso de flores secas e um pequeno tinteiro esgotado, porém não havia nada valioso ou que lhe apresentasse mais respostas do que a agora óbvia confirmação de que se passara um bom tempo desde que Auri estivera ali.

De onde viera? Por quê viera? Não lembrava-se de ter visto sua assinatura na parede ou em letras brilhantes antes da travessia, por mais que carregasse a pesada certeza que lá estava seu nome. Também não ainda contara a razão de sua viagem no diário, assim como o pequeno filho do harém escondera a fundo até mesmo de pessoas próximas. Seu coração palpitou de súbito quando estava próximo ao armário, seus ouvidos latejaram com a voz rouca de Aziz.

Não sobreviverá.”

Ele engoliu em seco e esticou sua mão para abrir a porta de madeira esculpida, depois decorada com pó de ouro. Seus olhos pareciam ver as íris negras da velha mesclando-se com a escuridão real, a luz da lamparina estava fraca.
Não havia tranca, não existiam chaves. Simplesmente pousou seus dedos no puxo e trouxe-a para si.

Ali estava, ao menos uma resposta. Um rastro de Auri.

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Não acendeu mais luzes e mal viu o caminho que fez na volta. Não havia tempo e seus braços estavam ocupados carregando camadas e camadas de tecido, todos mal dobrados, além da alça da lamparina que ameaçava cair e se espatifar no chão. Em apenas alguns minutos já estava no escritório, na porta da saleta escura e chamando sua serva. Seu tom era calmo, porém impulsionado por certa dose elétrica de empolgação à contragosto. “Grasnar igual uma ave” lembrou com desprezo e um nó na garganta, mas não resistia à tentação de falar com a gênio.

– Alethia, - Deu um passo adentro. – Veja só o que o gato trouxe.

Com espanto, pôde enxergar fracamente seu próprio reflexo no lado oposto, segurando o lampião que já não iluminava bem. Pôde ver a massa indistinta de cobertores e roupas que trazia, pôde ver os contornos do baú e dos demais objetos que vira momentos atrás. Também pôde ver a silhueta de alguém, de ombros femininos delineados contra a luz parca.

Ouviu um sibilo irritado.

– Se afaste. – Ele não obedeceu, suas pernas estavam fincadas como raízes fundas ao chão. O que era aquele cintilar tão delicado, aquela maré lilás no ar? O que era aquela voz tão nítida quanto os relâmpagos selvagens na chuva? – Se afaste!

Não havia mais que a pobre chama da lamparina, as pupilas do jovem não puderam ver mais do que esboços de movimentos no breu, imagens desconexas no espelho ao fundo. Não estava coberto antes, por um tecido que um dia fora branco? A criatura recolheu uma sombra mais densa no chão, para cobrir-se como alguém que veste as próprias trevas.

O entendimento da situação não arrancou a confusão de si, nem aliviou a pincelada de adrenalina que lhe pintou o peito. A testa de Raed se franziu com cada fugaz pensamento que lhe vinha.

– Estava se olhando no espelho? – Havia cautela em sua língua, cuidado no sabor de sua voz. Ela não respondeu, obrigando-o a ignorar o desconforto no ambiente e prosseguir. – Não está muito escuro para isso?

Silêncio, então outro trovão.

– Eu consigo ver.

Reconhecia aquele tom, tinha uma terrível familiaridade com o timbre cortante que Alethia usara, pois geralmente era assim a sua voz quando havia dor em si. Era assim que se dirigia à ela quando acordava de um pesadelo que jamais o abandonava e punha a garrafa púrpura no canto mais profundo de sua bolsa.

– Li um pouco mais do diário. – Recostou-se no batente, sentindo-se torturado. Mesmo sem poder de fato ver seu corpo devido à escuridão, ele desviou o olhar da direção dela. – Auri morou aqui na Catedral; todos estes estranhos objetos que encontramos ou lhe pertenciam ou eram dos demais viajantes que também estiveram aqui. Auri recolheu todos, pois não tinha quase nada. Ficou claro pra mim que depois já tinha nem mais a sanidade, posto que anotou poemas e frases como quem está dividido entre mil e uma vozes dentro de si, cada um com seu eu, sua própria identidade, própria personalidade.

Engoliu em seco, pois ela não se movia, ou melhor, não parecia se mover. Com toda a Noite invadindo o cômodo, era difícil dizer.

– Auri era mulher, suas roupas estavam todas em seu quarto. Aqui neste depósito há somente restos dos outros, que bem servirão em mim. Trouxe isto para você, embora sejam roupas indignas para uma gênio.

Tentou sorrir ao jogar o bolo de tecidos para ela, mas seu riso murcho não foi correspondido. Ele não ouviu o esboço de seu humor colorir o ar, nem mesmo seu característico riso abafado, contido.

– Isso é só um corpo. Um corpo como todos os demais.

O ladrão lembrou-se da voz dela nas escadarias, chorosa pelo sangue que saía de seu pé esquerdo. Imaginou o corpo recém-feito da gênio carregá-lo antes disso. A travessia também fora dolorosa para Alethia?

– Sim. – Virou-se para ir embora, deixando-a sozinha e sem paz. Estava na hora dele ir para o canto mais profundo e esquecido da bolsa, embora insistisse no tom matreiro de suas palavras. - E ele se esvai igual nossa mente, igual nossos corações. Só nos resta a alma e olhe lá. Vai que você quer quebrar a minha.

Ar foi sugado dos pulmões da gênio num bafejo frio, o qual fora emoldurado por um sorriso cadavérico. Quis fazer isso em outra era e em outro alguém, mas... Ela apertou as roupas para si, como se pudesse preencher o vazio por dentro das costelas com aquele punhado de tecidos. Largou-as todas ao chão quando ele se foi.

Lenta, inclinou sua cabeça em direção ao espelho para observar a cristalina e humilhante imagem de si, sólida e quase humana. Suas costas nuas exibiam omoplatas sobressalentes, sua pele de cor antinatural jazia maculada por manchas meio amareladas, roxas e até mesmo de intenso preto. Nebulosas na epiderme. Tocou hesitante suas marcas, para logo contorcer seu rosto em pura dor. Resfolegou. Desintegrar-se não havia sarado todas as feridas, e ser arremessada em direção aos monólitos simplesmente esmagara suas costas. Demoraria a recuperar-se.

Enxergando perfeitamente na saleta, ela ajoelhou-se no piso e acariciou as roupas. Gostava de sentir a textura macia através da carne de seus dedos, quando estes estavam em carne, tanto que brincara com seu cabelo em ondas de brumas e alisou as barras e costuras que agora tinha para si. Estava suja demais para trajar algo novo, mas sentia frio também. Na indecisão, permaneceu nua por alguns instantes antes de vestir os trapos do manto de Raed.

As roupas e ela própria eram indignas para uma gênio.


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Notas finais do capítulo

~~ imagem só para causar hahah ~~



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