A insônia deu uma trégua naquela noite, mas Naruto teria preferido passar a madrugada em claro. Assim que adormeceu, iniciou-se em sua mente uma série de sonhos conturbados que envolviam Sai, Sasuke e cenas pouco felizes de sua infância.

Angústia maior, no entanto, provocou-lhe um sonho incrivelmente real que veio no meio da noite, no qual revisitava a situação que vivera naquela tarde. O peso de Sasuke o pressionando contra o chão do quarto, o cheiro de sua pele mesclado com o de cigarro, os olhos negros fitando os seus a poucos centímetros. Em seu sonho, porém, invés da discussão veio o beijo. Um beijo lascivo, faminto, Naruto passou as mãos pelos braços do outro garoto, sentindo o calor e o toque de sua pele, subindo-as até sua nuca para alcançar a macies de seu cabelo. Sasuke começou a movimentar o quadril, friccionando-o contra o seu ritmadamente. Por mais que estivessem vestidos, a sensação do tecido foi se tornando quase insignificante, sentia perfeitamente o membro rígido dele pressionando o seu com estocadas contínuas. A velocidade foi aumentando e, soltando um lancinante e quase inaudível gemido na boca de Sasuke, Naruto afastou e flexionou ainda mais os joelhos, permitindo que o outro se movimentasse com mais liberdade sobre seu corpo.

Não soube ao certo por quanto tempo aquela tortura se seguiu até que acordou ofegante. Fantasia e realidade ainda muito líquidos em sua percepção inebriada pelo sono e atacado por uma onda de calor que não condizia em absoluto com a temperatura da estação, Naruto se deixou levar pelas súplicas de seu corpo e rendeu-se à ereção. De manhã, finalmente lúcido, a realidade o atingiu como um tapa. A mancha nos lençóis não permitia que mentisse para si mesmo sobre o que havia feito. Jamais havia chegado ao ponto de se tocar pensando em um homem, sequer tido sonhos tão sexuais envolvendo conhecidos, aquilo estava saindo de controle.

Naruto não queria gostar de meninos. Kohona não era uma cidade muito grande, praticamente todas as famílias mandavam suas crianças para estudar no internato havia gerações, de modo que tudo o que acontecia ali era sabido por toda a cidade em questão de semanas, e toda a cidade o conhecia, pois seu pai havia sido prefeito antes de falecer. Aceitação e compaixão não eram o forte daquele povo, como ele sabia melhor que ninguém. Também não fazia ideia de qual seria a reação de seu padrinho, Jiraya nunca fora muito presente e seu assunto favorito era mulheres. Certamente esperava que o afilhado fosse normal. E tudo o que ele queria era ser normal.

Fosse como fosse, era impossível continuar arranjando desculpas. Sasuke ocupava sua mente em tempo integral. Mesmo quando estava preocupado com outra coisa, a sensação da aura dele permanecia sutil em algum lugar de seu cérebro, como uma trilha sonora. Quanto mais tempo passavam juntos, mais se viciava em sua presença, em sua voz, em seu olhar. Já havia se pegado vezes demais pensando no jeito que ele falava os 'ch' ou em como ele mordia o lábio inferior enquanto escrevia, até mesmo a expressão que ele fazia quando o chamava de idiota havia arrancado um ou dois suspiros de Naruto em momentos de distração. E, depois daquela noite, não havia como negar que sentisse atração por ele. Aquilo estava bem longe de ser platônico.

Levantou-se e foi tomar uma ducha fria na esperança de que a água levasse embora aquela culpa que o fazia se sentir sujo. Era sábado, naquele dia seria liberado que visitassem a cidade novamente e, como a maioria dos alunos aproveitaria para ver os pais, Sakura o havia feito prometer que a faria companhia, pois queria ir ao shopping.

–Bom dia! - cumprimentou a garota com um sorriso quando o encontrou no café da manhã.

–Bom dia, tudo bem?

–Tudo ótimo, mal posso esperar pra respirar ar livre. Já tava ficando maluca presa nessa escola todo dia, você não?

–Tem razão, vai ser ótimo sair daqui por um dia, tirar uma folga de toda essa gente fofoqueira...

–Cadê o Sai? Ele não vai com a gente?

–Mudou de ideia, disse que prefere ficar aqui.

–Sozinho? Por quê?

–Deixa ele, Sakura.

A garota torceu os lábios e lhe lançou um olhar de lado.

–Tem alguma coisa acontecendo. Desembucha.

Ele mordeu a boca hesitante.

–Tá, eu conto, - disse quase sussurrando – mas quando a gente sair da escola. Aqui dentro, não.

Sakura concordou com um aceno. Os dois terminaram de comer e foram para a fila do ônibus que levaria os alunos à cidade. Discutiam animadamente sobre o que os professores deviam fazer em seus dias de folga quando sentiu alguém cutucar seu ombro e virou-se para encontrar Sasuke. O olhar dos dois se encontrou e, naquele segundo, Naruto sentiu como se o tempo congelasse. Um formigamento começando de seu coração espalhou-se apressadamente por todo o seu corpo.

Sasuke respirou fundo e desviou o olhar, desorientado, antes de mirar Sakura.

–Aonde vocês vão? - perguntou parecendo ligeiramente irritado.

–Shopping – respondeu-lhe a garota – Vou fazer umas comprinhas.

–Tudo bem se eu for com vocês? O Suigetsu fez o favor de arranjar uma namorada – ele apontou mais adiante, onde Suigetsu enroscava-se indiscretamente com uma moça ruiva de seu ano, e lhes lançou um olhar de asco – Não quero ficar sozinho com aquilo.

–Aquela menina é sua prima, não é, Naruto?

Naruto estava seriamente desconfortável, não só porque estivera esperançoso de que um dia sem Sai ou Sasuke por perto lhe fizesse bem, mas também porque, assim que viu o rosto do garoto, lembrou-se do sonho – e do que houvera após – e entrou em uma silenciosa crise de vergonha e constrangimento.

–Mais ou menos, - disse num tom baixo, por medo de que a voz saísse trêmula se tentasse falar com clareza - ela é filha de um primo de segundo grau da minha mãe, ou algo do tipo.

–Não gosto dela. Enfim, posso?

–Pode! É claro que pode ficar com a gente! - disse Sakura alegremente – Vai ser ótimo, nós três juntos, como nos velhos tempos!

Sasuke torceu os lábios para ela num sorriso discreto, a troca de olhares lembrou a Naruto amargamente de que não somente os dois já haviam namorado, mas também que Sakura ainda tinha por ele sentimentos românticos. Como a garota se sentiria se soubesse que seu melhor amigo estava apaixonado pelo ex-namorado a quem ela tentava reconquistar havia mais de um ano? Certamente se sentiria traída, não? Isso não é coisa que se faça com melhores amigos. E lá vinha novamente o inescrupuloso sentimento de culpa.

Assim que saltaram do ônibus, Sakura enroscou-se no braço de Sasuke. A garota vinha mantendo a conversa praticamente sozinha, os outros dois apenas falavam quando requisitado, mas ela não parecia se importar. Vendo-os andando à frente, de braços dados como um casal, Naruto sentiu o estômago embrulhar. Como ele se sentiria se eles reatassem o namoro? Descobriu-se com um ódio quase irracional pela garota em vê-la oferecendo-se para Sasuke, teve o violento impulso de atacá-la, dizer o quão patética ela parecia insistindo em alguém que jamais se importou sinceramente com ela ou de simplesmente forçar-se entre os dois. Mas nada fez, engoliu aqueles pensamentos a seco como a um remédio, respirou fundo e desviou o olhar.

Apesar de tudo, estar na rua novamente era um alívio. Passava tanto tempo no internato que quase esquecia-se de que o mundo ficava do lado de fora daqueles muros. Ver faces diferentes ao seu redor, outras árvores nas ruas, outras pedras sob seus pés sempre lhe trazia uma sensação maravilhosa de liberdade. Queria sentir aquilo sempre, viajar pelo mundo, conhecer lugares diferentes, pessoas novas. Devia ser uma vida incrível.

–Naruto, se você ficar admirando a paisagem vai acabar ficando pra trás!

Sakura – já descolada do outro, para seu contentamento – o aguardava mais adiante com as mãos nos quadris em sinal de impaciência. Ao seu lado, Sasuke o lançou um olhar vago. Naruto correu para alcançá-los, decidido a não deixar que pensamentos ruins estragassem seu dia.

–O que você quer comprar no shopping?

–Queria comprar uns brincos bonitinhos, o meu favorito quebrou. Também preciso de uma agenda nova... Sabe o que a gente podia fazer? Passar no mercado e estocar uns chocolates, biscoitos e essas coisinhas pra comer a tarde na escola!

–Boa ideia, to precisando reabastecer minha geladeira.

–Acho tão incrível que você tenha conseguido levar uma mini-geladeira pra dentro do seu quarto! Você sempre consegue tudo o que quer – suspirou a garota admirada. Naruto pensou com amargura que se tivesse sido ele a cometer o delito, Sakura lhe daria um sermão e o aporrinharia por dias até que se livrasse do frigobar.

–Consigo – concordou Sasuke com arrogância. Naruto revirou os olhos, mas a menina riu.

No começo do dia, Sasuke parecia seco e um tanto distante, mas ao longo da tarde, ele foi relaxando e se divertindo com a companhia dos amigos. Era mesmo quase como costumava ser anos antes, quando os três eram crianças. A única e gritante diferença era que, naquela época, não havia tantas preocupações em suas mentes. Principalmente com amor, ciúmes e a angústia incessante sobre o futuro que toda aquela situação provocava. Pelo menos, não para Naruto. E aquela diferença era fundamental.

Depois de comprarem chocolate quente num café próximo, os três sentaram-se em uma praça ao fim de tarde, sob a luz melancólica do pôr-do-sol invernal. Relembravam de coisas engraçadas que viveram juntos no ensino fundamental quando Sasuke de repente transferiu toda a sua atenção para seu celular.

–Tenho que ir – anunciou após alguns minutos digitando – Preciso fazer uma coisa antes de voltar pra escola, vejo vocês depois.

Sem cerimônia alguma, Sasuke ergueu-se do banco e saiu apressado, mal olhando para os outros dois antes de ir.

–O que foi isso? - reclamou Sakura.

–Boa pergunta – Naruto encarava boquiaberto a figura de Sasuke aos poucos diminuindo conforme se afastava, até que o garoto virou a rua e desapareceu atrás de uma construção.

–Aonde será que ele vai? Deve estar indo fazer a mesma coisa que faz quando foge da escola, não?

–Acho que sim – respondeu Naruto frustrado – Ele nunca fala disso, não importa o quanto eu tente.

–Será... - começou Sakura pensativa – que ele tá se encontrando com alguém?

Naruto sentiu um sobressalto com a ideia.

–Não! - respondeu um pouco alto demais – Quero dizer... Acho que não, ele tem até se reaproximado de você, não tem? Por que ele faria isso se tivesse saindo com outra pessoa?

Tentou ao máximo disfarçar o rancor na voz, sentia-se parcialmente responsável por ter feito Sasuke voltar a falar com Sakura, tagarelando sobre como ela era incrível a todo instante.

–Eu sinto que ele não liga muito pra mim – suspirou a garota com pesar – Não sei porque ele voltou a falar comigo, ele mal olha na minha cara enquanto conversa. Sabe aquela hora que você foi no banheiro? Eu tentei puxar assunto com ele, mas ele catou o celular e começou a digitar. Até pensei que pudesse ser algo importante, dei uma espiada pra ver o que era, ele tava mandando uma mensagem pro Suigetsu, escreveu “vc é uma cachorra” e encheu do emoticon do cocozinho sorridente.

Naruto sufocou uma risada pelo nariz, fazendo um barulho engraçado e arrancando o riso de Sakura também.

–Não tem graça! - ela reclamou com um sorriso triste – Ele liga mais pra você do que pra mim.

Os dois se silenciaram pensativos, ele sentiu um misto de alegria e repreensão ao pensar no que a amiga disse. Naruto reparou que duas mulheres de meia idade vinham andando pela praça, teve a incômoda sensação de que estavam olhando em sua direção. Não daria muita atenção a isso, mas não pôde deixar de escutá-las conversando conforme aproximavam-se.

–... o filho do prefeito?– dizia uma delas.

–Meu filho estuda com ele, disse que ele era florzinha – Naruto sentiu a garganta secar.

–Que horror! Mas se ele for mesmo, por que ele tá com uma moça?

–Quem sabe ele é indeciso.

–Coitado do pai dele se estivesse vivo pra ver uma coisa dessas...

Sakura pegou sua mão e apertou com firmeza.

–Naruto, não dá bola pra isso – disse-lhe em voz baixa.

–Eu to legal – ele assegurou, apesar dos ares de frustração – Acho que já acostumei.

A garota mordeu os lábios por um instante, estalou a língua e deu um longo suspiro.

–E o Sai? O que tá acontecendo entre vocês?

Ele ergueu os olhos para a amiga e a encarou em silêncio, ponderando sobre o que devia omitir e o que devia dizer-lhe. Sasuke era uma parte essencial da trama e temia que ela notasse uma peça faltando no quebra-cabeças, mas não sentia-se preparado para abrir seus sentimentos para alguém.

–Ele se declarou pra mim – o queixo da garota caiu – Falou que é o jeito que eu sorrio, que eu sou a pessoa mais maravilhosa que ele já conheceu e mais um monte de coisas lindas. Isso na quarta-feira.

–Quarta?! E aí?

–Quinta-feira eu tava meio chateado, aí nós fomos no meu quarto conversar um pouco e ele me beijou – Sakura levou as mãos à boca, seus olhos estavam completamente arregalados – E aí então ele me pediu em namoro.

–O quê? Quando você ia me contar de tudo isso? – ela exclamou exageradamente – Já faz dois dias e nem te ocorreu contar essas coisas, assim, minimamente importantes pra mim?

–Eu to contando agora!

–Ai meu deus, e aí? O que você disse?

–Eu disse que não podia, que eu não me sinto assim por ele, eu ia me sentir péssimo de aceitar.

–E ele ficou bravo?

–Ficou. Ele geralmente não se abala por nada, sabe? Mas dessa vez ele ficou realmente irritado comigo, deu pra ver, nem olhou na minha cara quando saiu do quarto.

–Tadinho...

–Pra ser sincero, eu fiquei bem assustado com tudo o que ele fez, tava com uma cara de psicopata quando pediu pra eu namorar com ele que cruz credo! Soou meio manipulador, também “os outros te fazem mal, eu vou te fazer bem, me ame”.

–Coitado, ele gosta de você! Você não dorme, não vai bem na aula, tá deprimido desde o começo do ano... Não é a toa que ele tá preocupado!

–Bom, agora ele tá isolado na biblioteca de cara fechada com o mundo.

–Deve estar desenhando.

–Hm?

–Ele deve estar desenhando. Ou lendo, mas ultimamente eu tenho visto ele desenhar mais do que ler.

Naruto parou aturdido e apenas encarou a garota por alguns segundos.

–Ele desenha?

Sakura ergueu as sobrancelhas.

–Vocês são colados desde o começo do ano e você nunca viu ele desenhando?

–Não! Quando que ele desenha?

–De tarde! Ele ama desenhar! Fica na biblioteca todo dia rabiscando, quase toda vez que eu vou lá, ele tá fazendo um desenho novo. Ele é muito bom, por sinal.

Naruto se sentiu atordoado, teve a súbita realização de que havia contado quase tudo sobre si para o garoto logo no dia em que se conheceram e, enquanto isso, tudo o que sabia sobre Sai era que havia crescido na Europa. Pensando melhor, a sessão da biblioteca em que estavam quando ele o beijou pela primeira vez era a sessão de artes, ele tinha nas mãos um livro de ilustração. Sentia que o conhecia como ninguém, que a intimidade que haviam criado ao longo daqueles quase quatro meses era absoluta e apogética, mas estava errado. Sakura sabia mais sobre Sai do que ele e aquele fato o deixou incrivelmente incomodado.

–Vamos voltar – disse desalentado. Já não se sentia tão bem em estar fora da escola, Sakura compreendeu e levantou-se do banco. A noite já havia caído e o frio estava começando a ficar rigoroso.

–É meio irônico – suspirou Sakura com um olhar melancólico enquanto caminhavam – Eu estou apaixonada por alguém que não retribui meus sentimentos e você não consegue retribuir os sentimentos de alguém que tá apaixonado por você. Que bela dupla de encalhados que nós formamos.

Naruto forçou uma risada, mas sentia um calafrio no estômago de pensar no que a garota diria se soubesse que secretamente disputava a atenção de Sasuke com ela.

–Assim... Só pra saber, não fica bravo comigo... - ela lhe lançou um olhar interessado.

–Não vou ficar – garantiu Naruto já antecipando mentalmente o que ela perguntaria.

–Você falou que ele te beijou de novo antes de te pedir em namoro... – ele confirmou com a cabeça – E você deixou?

Naruto torceu a boca relembrando a cena com certo pesar.

–Um pouco, sim, mas eu não deixei ir tão longe quanto da primeira vez.

–Mas você beijou de volta.

–É.

–Você não é hétero, né?

Naruto deu um profundo suspiro e sacudiu a cabeça vencido.

–Acho que não.

Sakura sorriu carinhosamente e enganchou seu braço no dele, Naruto retribuiu o sorriso timidamente e logo voltou a olhar para frente pensativo.

–Eu gosto de mulher, – choramingou num tom justificativo – mas eu acho... que gosto de homem também.

–A única coisa que me importa – ela disse com sinceridade – é que você esteja feliz. Você é meu melhor amigo, não gosto de te ver sofrendo por causa disso. Você é mesmo uma pessoa muito especial, sabe, não é a toa que tem gente se apaixonando por você por aí.

Sentindo as bochechas queimarem, Naruto riu encabulado. No meio da tempestade, era extremamente reconfortante saber que tinha alguém no mundo em quem confiar, um porto seguro. Podia não estar passando exatamente pelo melhor momento de sua vida, mas, pelo menos desta vez, não estava sozinho.