Intragável escrita por Secreta


Capítulo 4
Intragável


Notas iniciais do capítulo

Bem, gostaria de dedicar o capítulo à leitora Kah Tussand. Kah, ler seu comentário basicamente fez meu dia e me consolou saber que eu não sou a única passando por essas situações difíceis. Minha melhor maneira de retribuir é essa: postando logo e do melhor jeito que eu puder, de modo a tentar te deixar tão feliz quanto eu fiquei. =)

À Conselheira e Miss Cherry, o meu muito obrigada do fundo do coração.



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"A tigela serve jaggie, segundo ele, uma mistura nojenta de tomate podre, alho, abacaxi, cenoura e outros "condimentos". É deixada no fogo durante um dia inteiro, até virar uma gosma intragável, de gosto fortemente ácido. Servir jaggie para calouros da universidade era uma tradição entre os estudantes africâneres, de acordo com Pieter."

Folha de São Paulo, 25/11/2009

Significado de Intragável

adj.m. e adj.f. Que não se consegue tragar; difícil de engolir: refeição intragável.
Figurado. Cujo temperamento e/ou gênio são insuportáveis; maneira de
agir que demonstra intolerância; insuportável ou intolerável: sujeito intragável.

pl. intragáveis.
(Etm. in + tragável)

Estacionei o carro próximo à fraternidade - já escutando o som de música alta - e suspirei, indecisa. Anos haviam passado e eu estava metida novamente nessas situações. Grande evolução.

– Desistiu rápido, Reinheart - Chloe observou amargamente, lendo minha expressão de maneira errônea.

Estar confusa não é sinônimo de desistir.

– Vamos logo - retorqui amuada, tentando evitar a sensação de déjà vu e fracasso.

Enquanto minha colega de dormitório pulava fora da BMW, repassei mentalmente três vezes que a qualquer sinal de confusão ou incômodo eu iria embora. Seria tudo bem simples tendo meu carro ali e, de qualquer forma, não é como se fossem me obrigar a ficar até tarde.

Deixei o automóvel prata e, com um pouco de autoconfiança recuperada, segui Chloe até me encontrar dentro da fraternidade de Jimmy Renner.

Encolhi os ombros a cada rosto conhecido que avistava. Boa parte das pessoas que haviam me convidado para festas estava presente nessa e provavelmente se sentiria ofendida com minha vinda - depois de inúmeras ofertas declinadas por alegar não gostar muito de eventos festivos. Algo relacionado a meu suposto desprezo e arrogância, tão difundido por indivíduos que nem me conheciam, certamente grudaria em suas mentes.

A ideia da festa como elemento de distração me pareceu, pela primeira vez, ruim. Mais gente destilando ódio a mim não era uma das minhas ânsias. Contudo, o que eu estava esperando? Certo, eu havia pensado que os frequentadores da festa seriam mais parecidos com Chloe e seus amigos, mas, no fim das contas, era um evento produzido por uma fraternidade. Meio óbvio que tudo seria misturado numa gigantesca panela de álcool e sexo.

Respirei fundo e me concentrei. Não é como se eu fosse nova nesses ambientes, muito menos na arte de ser indiferente à opinião alheia. Devia certo crédito disso aos meus pais, pois, depois de tantos encontros e eventos beneficentes tediosos, sorrir e ignorar alfinetadas eram habilidades que eu exercitava com maestria - que o diga Chloe.

Falando sobre ela, em algum ponto eu a havia perdido de vista. Não que eu esperasse sua companhia - dois meses de ódio não evaporam com uma ou duas boas ações -, mas poucas informações sobre o local teriam me servido bem.

– Reinheart? O álcool afetou meu cérebro ou é você mesma em uma festa? - Ashley, uma das primeiras pessoas a ter tentado fazer amizade comigo, não perdeu a chance de me alfinetar.

A morena me fitava com seus olhos verdes sarcásticos, aguardando minha resposta enquanto suas amigas, provavelmente todas atletas como ela (Ashley Frew era a capitã do time de atletismo da Saint Louis) se controlavam para não rir. Observei o quão diferente de mim eram suas vestes: o vestido dela era preto e brilhoso, curto o suficiente para mostrar o belo par de pernas alongadas por saltos. A pele de Frew, antes imaculadamente branca, agora tinha um tom bronzeado, deixando evidente que a moça havia gastado algum tempo no sol.

– Eu mesma - sorri com altivez, utilizando meu estoque de indiferença e traquejo social.

Minha resposta surpreendeu Frew, que com certeza esperava uma reação defensiva. A morena tirou um copo de vodka das mãos de uma de suas amigas e me ofereceu.

– Pegue. É seu presente de boas vindas à Saint Louis de verdade. - Declarou, embora a antiga dona do copo estivesse visivelmente irritada com o gesto.

Pensei em recusar a bebida diante do desconforto da garota, mas contrariar Ashley pela segunda vez e em ambiente inóspito não era uma opção. O olhar firme da atleta sobre mim parecia gritar isso.

– Obrigada - agradeci da melhor maneira que pude.

– Olha só quem apareceu, rapazes! - Disse uma voz masculina conhecida e eu tive que conter, a muito custo, a vontade de revirar os olhos.

Era só o que me faltava: ter que manter uma conversa agradável com Michael Yards e os outros caras do time de basquete. Por um momento, um único e singelo momento, desejei que Crawford tivesse batido neles o suficiente para deixá-los de molho por mais tempo.

Não obteria meu desejo, obviamente, mas ao girar os calcanhares na direção deles e encontrar uma marca roxa - quase desaparecida, mas ainda ali - no rosto de Yards, senti-me quase igualmente satisfeita.

– Essa frase está muito na moda, pelo visto - foi meu comentário inevitavelmente irônico.

As risadas espalharam-se pelos rostos dos homens.

– Quem ousou roubar minha fala? - Michael replicou, sem perder o bom humor. Provavelmente isso tinha algo a ver com o copo de vodka quase vazio em suas mãos.

Ele já devia ter ingerido álcool suficiente para ficar, pelo menos, alegrinho.

– Eu - Ashley respondeu em um tom provocativo, postando-se a minha frente.

Yards sorriu, ajeitando o corpo musculoso e o cabelo loiro antes de lançar olhares sugestivos à capitã do time de atletismo. Eu realmente precisava presenciar a cena?

– Finalmente te achei, Reinheart!

Pela primeira vez na vida, senti o ímpeto de dar um abraço de tirar o fôlego em Jimmy Renner.

– Vamos, ainda preciso te mostrar o local - disse, puxando-me enquanto acenava vagamente para os outros presentes.

Alguém, no entanto, segurou meu braço, fazendo-nos parar. Virei a cabeça e encontrei os olhos cinzentos de Michael Yards.

– Te vejo por aí, Cat? - O modo como meu apelido soou nos lábios daquele estranho me enojou.

Quem havia dito a ele que tínhamos intimidade para isso?!

– Sim - murmurei friamente, evitando uma cena.

Bêbados não costumavam ser muito positivos em relação a recusas, principalmente se o homem em questão fosse o capitão do time de basquete da universidade.

Quando desvencilhei-me do aperto de Yards, Renner não fez questão de me mostrar os ambientes de sua fraternidade. Em vez disso, guiou-me por alguns corredores até achar seu irmão bebendo solitariamente uma cerveja, Chloe mexendo furiosamente no celular e Crawford encostado a uma parede com uma ruiva atracada a si. Se eu não tivesse uma extensa prática de traquejo social, teria corado com a visão das mãos pálidas de Julian apertando grotescamente as nádegas da mulher, que, por sua vez, emitia gemidos. O intervalo de tempo em que havia me mantido fora dessas festas de fato me fizera esquecer o quão... Embaraçosas algumas situações podiam ser.

Ou eu simplesmente ficava bêbada demais para notar.

– Vocês dois, deixem o sexo pra depois da vitória. Eu trouxe a solução para nossos problemas - Jimmy disse, chamando imediatamente a atenção de Chloe e Tommy para si.

Crawford demorou mais alguns segundos para desvencilhar-se da ruiva e reagir a minha presença. Quando o fez, desejei que ele tivesse transado a noite toda com a mulher - bem longe de mim.

– O que porra essa garota tá fazendo aqui? - Rosnou furioso, fazendo-me respirar dez vezes até amenizar minha vontade de mandá-lo à merda.

Engoli o ímpeto junto com uma boa parte da vodka no copo que havia sido me dado anteriormente.

– Ela pode nos ajudar - Jimmy retorquiu, embaralhando os dedos nas pontas vermelhas de seu cabelo castanho.

– Ajudar? - Os olhos negros de Crawford encheram-se de desprezo. Tomei outro gole de vodka, enfiando minhas reações de volta aos confins do meu corpo. A ideia de me atingir só traria satisfação a um babaca como aquele.

Nesse ponto, Chloe e o gêmeo mais quieto dividiam nervosamente suas atenções entre mim e Julian. Fiz um esforço tremendo para continuar transpirando indiferença.

– Será que ela sabe que tudo isso não passa de um teatro? - Crawford me fitou, falando devagar e perigosamente envenenando cada uma das palavras. - O convite para essa festa, o tratamento amigável... Ela sabe que tudo o que vocês querem é a BMW emprestada para o racha de hoje à noite?

Congelei.

Então era isso? O comportamento e o convite foram farsas para conseguir um interesse maior? Petrificada como estava, mal acreditei na ironia de ter vindo a essa festa para esquecer todos os jogos emocionais a que era submetida e acabar envolvendo-me em mais um.

– Não contaram pra você, não é? - Julian sorriu maquiavelicamente. Notei que havia deixado a máscara de indiferença cair diante da surpresa. Oh, aquele filho da puta se aproveitaria disso inquestionavelmente. - Estão tentando conseguir seu carro emprestado porque um merdinha que compete com a gente destroçou o meu. Sua amada BMW sendo dirigida por mim em um racha ilegal... - Fez questão de amplificar a tortura.

Olhei para os gêmeos e Chloe, desolada. Nenhum arrependimento, nenhuma negação... Que idiotice a minha!

Girei os calcanhares e apressei o passo. Quanto antes desse o fora dali, melhor.

Sentia-me a mais humilhada dos mortais e decidi que Nova York e a habitual desgraça familiar teria sido bem menos dolorosa que a atual situação: enganada e humilhada por estranhos! Os quatro babacas provavelmente estariam rindo de mim enquanto me esforçava para deixar a fraternidade o quanto antes.

A dor e a raiva eram tão grandes que eu não me dava ao trabalho de pedir desculpas por meus tropeços ou esbarrões nas pessoas que curtiam a festa. Dane-se o que pensariam sobre mim, dane-se tudo! Meu traquejo social não seria ativado comigo em um estado tão deprimente.

Quando achei que nada poderia ficar pior, uma voz soou atrás de mim, alta o suficiente para boa parte dos presentes na sala de estar da fraternidade escutarem:

– Aqui não é o aquário em que você foi acostumada a viver, Reinheart - Crawford soltou. - Então fique longe de pessoas como nós. Chore uma semana calada em seu travesseiro e torre a grana do seu pai em compras, garanto que a sensação ruim passa - me zoou, fazendo boa parte dos presentes rirem. De mim. De mim! Senti vontade de chorar diante de tanta humilhação, mas isso era o que Julian queria: que eu fosse frágil e previsível.

Congelada em algum lugar perto da porta de saída, senti minhas mãos se fecharem em punhos e percebi que ainda segurava o copo com vodka. Suspirei, absolutamente cansada de ser racional.

– Vamos brindar à primeira viagem de Catarina Reinheart ao mundo real! - Convidou, sorrindo maquiavelicamente enquanto erguia seu próprio copo.

Não entendia porque ele me odiava tanto. Não que Crawford fosse um amor de pessoa, porque nem os amigos ele conseguia tratar bem, mas me humilhar desse jeito...

Por quê?

Vi alguns babacas levantarem seus copos e decidi que era o suficiente. Chega disso!

Girei os calcanhares furiosa e marchei na direção de Crawford, segurando meu copo de vodka com força. Quando me aproximei o bastante, atirei todo o líquido restante em seu rosto, silenciando imediatamente toda a sala de estar da fraternidade. As pessoas que antes haviam levantado seus copos, agora os abaixavam rapidamente, perplexas. Senti algum tipo de satisfação e alívio até Julian começar a rir. De mim.

– Que original! - Zombou. - Onde você aprendeu essa técnica, livros de romance? - Arqueou as sobrancelhas, provocando-me.

Crawford só não notou que havia passado dos limites e que sua ideia sobre minha fragilidade era bem errônea - até certo ponto.

Dessa forma, sorri sarcasticamente enquanto jogava o copo em algum ponto distante de mim e soquei seu rosto impulsionada pela raiva que me consumia.

– Talvez um bem-vinda de volta fosse melhor no meu caso? - Sugeri, minha voz constituindo um poço falso de ingenuidade.

Dane-se o que pensariam e se eu estava agindo como anos atrás. Agora pessoas intragáveis como Crawford pensariam duas vezes antes de tentar deduzir coisas sobre mim.

Sorrindo, dessa vez completamente satisfeita pelo choque estampado na cara de todos, deixei a fraternidade em direção a minha BMW, pronta para dirigir até qualquer lugar que me ajudasse a digerir os acontecimentos.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Não? Deixa um comentário me contando! Vai me animar a escrever mais e melhorar, além de me dar uma luz sobre como a história está chegando até vocês. Aparece, vai =)



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