Então era isso. Ele havia mentido pra mim,todo aquele tempo. Todas as palavras,todos os momentos. A promessa. O nosso elo de confiança tinha se quebrado,e os cacos me feriam por dentro.

Eu não podia acreditar que ele estava ali,arriscando sua vida num maldito Racha.

João tentava falar comigo,mas eu não dava atenção. Tinha o olhar fixo nele,que parecia discutir com alguns caras. Em volta dele,tinham vários carros,numa estrada de terra. Havia bebidas alcoólicas em larga escala,bem como mulheres. As nuvens de fumaça de droga e dos escapamentos dos veículos se misturavam,formando uma mistura tóxica e me deixando tonta.

– Karina,você tá me ouvindo?

– T-tô sim. – Respondi em meio a tosse,meus olhos ardiam,o vento frio cortava minha pele e ricocheteava meus cabelos.

Quando dei por mim,meus pés já se moviam em direção a ele,que ainda não tinha notado minha presença ali.

– Pedro. – minha voz embargada saiu como um sussurro,mas audível para que ele pudesse ouvir.

Ele demorou alguns segundos para se virar para mim,talvez pelo susto por me ver ali. Eu não me importava. Quando finalmente nossos olhares se cruzaram,ele tinha uma expressão de surpresa e espanto.

– Karina? – quase gaguejou meu nome,em meio a tantos pares de olhos nos encarando.

Ele percebeu que João também estava comigo. Olhou para os caras mal encarados,assentindo que já voltava. Agarrou meu braço e me afastou dali.

– Qual é,Ramos? Não vai apresentar sua nova mascotezinha pra gente?

Ele ignorou a provocação e se aproximou de mim,agora com uma certa raiva.

– O que você tá fazendo aqui,Karina? – Gritou num som meio abafado.

Eu ri,nervosa e o encarei da mesma forma.

– A única pergunta a ser feita aqui é o que você tá fazendo aqui,Pedro! - Exclamei,sentindo as lágrimas deslizarem pelo meu rosto. Ele fez menção de secá-las,mas eu o afastei. – V-você mentiu pra mim....

– Não,eu não fiz isso esquentadinha..... – ele jurou,desesperado com as minhas afirmações.

Eu apenas neguei,desviando meu olhar do dele.

– O que você tá fazendo aqui? – Ele ergueu meu rosto,e eu espalmei minhas mãos em seu peito,sentindo seu coração acelerado. - Como me encontrou?

– Isso não importa.... – comecei,mas alguém me impediu de terminar a frase.

– O casalzinho já se resolveu ou vão querer uma ajudinha? – Um dos caras indagou especificamente pra Pedro.

Ele murmurou um ''já vai'' e o tal cara saiu de lá. Ele respirou fundo e tirou uma mecha de cabelo do meu rosto.

– Eu quero que você vá embora,K. – Afirmou contra meus lábios trêmulos. Eu neguei de imediato,e ele tentou me convencer. – Aqui não é seguro pra você...

– Ah claro,e pra você é. – Ironizei,deixando a raiva e o medo me dominarem. Meu coração batia descompassado,por imaginar o que poderia acontecer com ele. – Por favor,vem comigo.

Pedro ouviu seu nome ser gritado de longe e olhou para João,implorando para que ele me tirasse dali. João pareceu entender o recado e rumou a passos largos.

– Vem comigo,Ka. – Pediu,mas eu abracei Pedro,fazendo meu corpo gélido entrar em contato com o dele,encostando minha cabeça em seu peito. – Karina!

– Não torna tudo mais difícil,por favor... – sua súplica chegou até meus ouvidos,mas eu não queria saber daquilo. Minha visão já estava turva pelas lágrimas. Ele beijou minha testa e eu fechei os olhos.

Um cara alto e forte rumou em nossa direção,os punhos cerrados.

– Quer saber? Cansei dessa merda! Carniça,dá um jeito nessa vadia!

Pedro o encarou com raiva,e eu apertei nosso abraço,tentando impedir que ele piorasse a situação.

– Pode deixar que eu cuido dela. – João afirmou,se aproximando de nós.

– Eu tenho uma ideia melhor,Johnny. – Uma voz ecoou pelo lugar,e eu senti meu corpo arrepiar de medo.

– Por quê a loirinha não participa também? – Cobra sugeriu,e eu senti Pedro querer avançar sobre ele. – Ia adorar ter uma mascote linda assim do meu lado.... – Ele se aproximou e tocou em uma mecha de meu cabelo.

– Já falei pra não tocar nela seu imundo! – Pedro deu um tapa na mão de Cobra,e eu me encolhi com o barulho.

– E se ela quiser,o que você vai fazer? – Riu sarcástico,e Pedro desferiu um soco em seu rosto.

– Calma,Pedro. Fica calmo.... – o trouxe para mim e murmurei contra sua boca,minhas mãos em seu rosto,senti sua respiração entrecortada.

O tal Carniça tentou me arrastar para um dos carros,mas Pedro impediu.

– Ela não vai! – Gritou para quem quisesse ouvir. – João,por favor. – Tentou me arrastar para perto dele,e meu irmão me prendeu em seus braços.

– X –

A noite caiu num piscar de olhos,mas uma certa Julieta parecia não se importar com isso.

Bianca estava na Ribalta,ensaiando a peça com Henrique. Percebeu que durante o ensaio,ele a olhava de cima a baixo sem discrição,tentando provoca-la.

O menino era lindo e um bom ator,mas para ela,a frase terminava aí. Era bem verdade que seu relacionamento com Duca não era definido – ou aberto -,mas ela não se via com outra pessoa além dele.

– Pra mim já deu por hoje. Vamos embora,Bi? – Pediu Henrique,e ela assentiu.

– Vou trocar de roupa,já volto. – E pegou sua bolsa,rumando para o lado contrário ao dele.

Ela se despiu das vestes de Julieta que tanto amava e colocou as que estava antes. Arfou contra o dia quente,inclinando seu corpo e molhando seu rosto.

Quando se levantou,encarou o espelho com raiva.

– Você?!

– Gostou da surpresa,Bianquinha? – Ouviu a ex cunhada dizer,num ar de deboche.

– O que tá fazendo aqui,Priscila? – Indagou. Pegou a toalha e secou seu rosto.

– Você sabe muito bem o que eu quero. – Respondeu decidida. – E você vai ter que aceitar,senão.... – deixou a resposta no ar,fazendo-na lembrar que ela sabia de seu segredo.

– Diz logo o que você quer e sai daqui. – Ela não se deixou abater pela indireta. – Senão eu não respondo por mim.

Ela riu,ironizando as palavras de Bianca.

– E você vai fazer o quê? – Retrucou,com a resposta na ponta da língua. – Vai vomitar? Ah não....vai se cortar? Ou tem mais alguma opção?

– Cala a sua boca sua mal amada! – Bradou,sentindo o corpo tremer ao ver seu segredo ser revelado em alto em bom som.

– Fica tranquila,cunhadinha. O seu segredo tá bem guardado comigo. Eu não vou contar pra ninguém....É só fazer o que eu quero.

Ela já sabia o que a ex namorada do irmão queria,mas ainda assim perguntou.

– E o que você quer,sua infeliz? Meu papel na peça? – Ironizou.

– Olha,até que não seria ruim. Eu ia ficar muito melhor que você de Julieta. – Provocou. – Mas não é isso. Eu vou dizer uma vez só,e eu espero que você não esqueca: eu quero o Pedro de volta.

– Você não pode estar falando sério.... – começou,tentando ganhar tempo. – Ele não te ama! Você sabe muito bem disso.

– Eu te perguntei alguma coisa? – Gritou de raiva com a constatação de fatos. – Não me interessa,eu quero e ponto. E a não ser que você queira que seu irmãozinho saiba o que não deve,você vai me ajudar.

– Bianca? – Ouviu a voz de Henrique a chamar,e Priscila saiu dali,com um sorriso de vitória nos lábios.

No caminho pra casa – Henrique a levou de carro,ainda que ela tivesse insistido para que não o fizesse -,ela permaneceu calada. Pedia respostas para a noite,completamente perdida.

Quando o carro parou,agradeceu o companheiro de cena pela carona e saiu do carro. Entrou em casa e subiu direto para o quarto. Sabia que Pedro tinha saído e que os pais estavam fora naquela noite,tornando as coisas mais fáceis para ela.

Seu coração batia em ritmo descompassado,o ar lhe faltava e ela suava frio. Se antes ela tinha medo de que Pedro descobrisse seu segredo,agora seu medo era ainda maior,com a presença constante dos pais.

Ela não sabia ao certo quando tudo começara. Sempre gostou de atuar,já havia decretado que era isso que ela queria fazer para o resto da vida. Quando estava atuando,se permitia ser quem quisesse,e isso dava a ela uma sensação de liberdade.

Fora do palco,a situação era outra. Ela se sentia insegura e medíocre diante de das outras meninas,como se elas fossem melhores do que ela. Se agora ela tinha Karina,antes da loira chegar,ela não tinha alguém a quem ela pudesse chamar verdadeiramente de amiga.

E em casa,as coisas só pioravam. Seus pais viviam em pé de guerra,brigavam toda noite e ameaçavam se separar. Naquela mesma época,o irmão conheceu Priscila,e alguns meses depois estavam namorando.

Mas as coisas saíram do controle quando suas inseguranças começaram a afetar seu desempenho em cima do palco. Ela errava os textos,não tinha mais concentração e não lembrava nem um pouco a garota sonhadora e determinada que sempre fora.

Ela então começou a ter crises de ansiedade,independente do que estivesse acontecendo a sua volta. Era verdade que ter irmão e Duca por perto ajudava um pouco - ela não sabia o que teria sido dela se não os tivessem por perto -,mas era só os dois se afastarem para a falta de ar e a palidez voltarem,tornando a sua vida um inferno na Terra.

Ela se sentia angustiada e sozinha. Estava perdida e não tinha coragem de pedir ajuda.

Foi então que a ideia lhe veio a mente. Estava na cozinha,lavando a louça. Pela distração,acabou quebrando um copo. Viu o filete de sangue escorrer pela sua pele alva,mas não fez nada para estancar o líquido escarlate.

Sua pele ardia pelo corte brusco,mas ela resolveu ignorar a dor,sentindo-na de outra forma. Pegou uma faca e subiu para o quarto,entrando no banheiro e trancando a porta. Alguns momentos depois,sua pele estava marcada com cortes. Quando voltou a si e percebeu o que havia feito,chorou. Um choro ressentido e que estava entalado na garganta.

Sozinha. Ela estava sozinha.

Ela prometeu para si mesma que não voltaria a fazer aquilo,quando Priscila – sabe se lá como – descobriu seu segredo. Mas,naquele momento,depois de tudo o que passara,ela não conseguira evitar.

Feriu sua pele sem pudores,se entregando a sua maior fraqueza. O piso branco do banheiro estava preenchido pelas gotas vermelhas,que molharam seu rosto quando ela tentou – inutilmente -,secar suas lágrimas.

Estava fraca e um pouco zonza,sua respiração era falha e sua visão estava turva pelo choro copioso. Tentou se levantar para pegar o álcool – que traziam a sensação torpe da dor de volta -,mas acabou batendo a cabeça no armário.

A última coisa que se lembrou foi de ouvir uma voz conhecida a chamar do andar de baixo,antes de a escuridão dominar seus sentidos.

– X -

– Pedro.... – eu soluçava,meu corpo tremia sem pudores,alguns fios do meu cabelo pregados em meu rosto úmido.

Ele colou sua testa com a minha,fechando os olhos assim como eu.

– Eu vou voltar pra você. Eu vou voltar,ouviu bem? – Eu apenas assenti. – Eu prome....

– Não prometa se não vai cumprir,Pedro. – Respondi,um pouco amarga,sem me afastar dele.

– Me desculpe por isso. – Implorou,roçando seu nariz no meu. – Eu só tava tentando te proteger,mas pra variar eu falhei,não é? – Riu fraco,e eu arregalei os olhos. Do que ele tentava me proteger?

Ele me olhou por uma última vez e se afastou. Assentiu positivamente para um dos caras,que o guiaram para o ponto de partida.

Me soltei de João e sai em disparada atrás dele. Meu coração saía pela boca,mas eu não me importava. Quando finalmente consegui encontra-lo,eu o vi entrando no carro,dando partida. Em questão de segundos,ele já havia sumido.

Senti João se aproximar de mim,me abraçando de lado.

– Karina,vamos embora daqui por favor. – Implorou,mas eu não cedi.

– Eu já disse que não vou sair daqui sem o Pedro!

Eu acompanhava suas voltas com atenção,para não perdê-lo de vista. Sentia meu coração cada vez mais apertado,mas eu murmurava para mim que era só preocupação,e que nada aconteceria com ele.

E este foi meu ledo engano.

Ouvi um choque brusco,fazendo todos voltarem a atenção para o local. Eu estava longe,mas podia ver claramente a explosão em um dos carros,que logo atingira os outros.

– PEDRO! – Eu gritei,deixando o desespero finalmente me dominar por completo.

O fogo se alastrava com maestria,a fumaça negra logo empesteava o ar. Meu corpo tremia,e eu duvidava se conseguiria me manter em pé se João não estivesse me amparando.

Eu precisava vê-lo. Fiz menção de me soltar,mas João me impediu.

– João,por favor... – implorei,quase sem voz. Minha mente gritava para encontra-lo. Viver sem ele não era mais uma opção. Nunca seria.

Consegui me soltar e saí correndo atrás dele,mas minhas pernas tremiam,não pareceram concordar com minha mente,e eu parei no meio do caminho.

– Karina... – Ouvi João me chamar,e eu apoiei a mão na minha testa,completamente zonza.

– João... – tentei chamar,minha respiração estava falha. Tentei me apoiar nele,mas não tive forças. – V-vai atrás dele....m-me ajuda.

Senti meu mundo girar,e a escuridão me acolheu. Minhas pernas fraquejaram e eu caí,sem dar chances de João me amparar. A última coisa que ouvi foi a voz dele me chamar,antes de me entregar aquele breu,inconsciente.